20 de novembro de 2014

Compêndio de geometria clitoridiana. Mattia Denisse (Galeria Bessa Pereira)

A angariação deste pequeno objecto, que parece revestir-se de uma natureza descartável, para esta constelação mínima de livros-de-artista, poderá, à luz das anteriores publicações, soar deslocado, um desvio demasiado grande para uma força agregadora, um salto demasiado abusivo de um gesto concentrado. Poderá, mas a natureza fluida que queremos ajuizar nestes mesmos objectos terá de permitir que, mesmo na existência de uma imensa torrente central, cujas margens pareçam perenes e unidireccionais, haverá sempre espaço para afluentes, lagoas, reentrâncias, desvios, baías, pântanos, mangais, com toda a espécie de vegetação e vida animal, por vezes demasiado movente para que se a consiga catalogar. Ou pior, tanto movente que no momento da sua catalogação, já se mutou em formas novas.

É precisamente isso o que nos parece ocorrer sempre que nos deparamos com os gestos de Mattia Denisse. (Mais) 

Poderíamos dizer tão-somente que esta publicação é a brochura que acompanhou uma exposição de desenhos na Galeria Bessa Pereira, intitulada Histórias assimptotas do homem sem cabeça, da mulher geométrica, do macaco e da morte. A capa desdobra-se num “mapa” da galeria, identificando as peças expostas por núcleos e títulos singulares. Cada núcleo tinha uma disposição geográfica (geométrica?) no interior da galeria, e identificado no mapa por uma cor, também poderia convidar a uma interpretação de que constituiriam “ciclos” particulares (tais como aqueles que tentamos identificar em Gonçalo Pena). Mas queremos concentrar-nos nesta “brochura”: ela contem um conjunto de desenhos que estavam presentes na exposição, a saber, nove, dispostos ao longo do pequeno caderno, com um deles ocupando o spread central; o texto que preenche a sua parte de leão é uma entrevista ao autor, sub-titulada “Conversa acerca de uma nova geometria”.

Com tal descrição, as coisas até parecem simples, e sem grandes complicações, mas se o fosse, não estaríamos a navegar pelas águas tumultuosas e sem afeição pela abordagem trivial aos embates possíveis entre a escrita, o desenho, a projecção do pensamento e o esforço além-categorial que se podem exercer. A entrevista trata-se de um exercício de auto-ficção algo complexo. Baseia-se numa entrevista real (com Catarina da Ponte), para criar a figura de “Arthur Dessine” entrevistando Mattia Denisse, mistura excertos dos seus escritos (recordemos que Denisse, para além de artista visual, decididamente conquistou o território do “literário”, mesmo que explodindo-o), dos seus diários do Brasil, elege as linhas de fuga do discurso ensaístico, biográfico, filosófico e especulativo como elementos passíveis de mesclas inusitadas, e constrói uma espécie de manifesto sobre o qual se arvora o projecto aqui trazido a lume. Esse projecto é apenas um conjunto de desenhos? Voltamos, como no caso d'As ilhas desertas, a falar dos desenhos como pontos de acesso a projectos posteriores, a representações de uma dimensão externa àquela que habitamos com os nossos corpos, serão desdobramentos sucessivos também eles de uma pesquisa poética contínua?
Os desenhos em si, em termos materiais e técnicos, são relativamente consistentes: lápis de cor sobre papel, perguntamo-nos se papel da mais nobre qualidade, e todos em formatos mais ou menos próximos, ligeiramente maiores que o A4, mas sem estandardização absoluta. A do centro é bem maior, e disso faz jus a reprodução.

A existência do texto e dos desenhos (ou esta selecção, já de si de uma selecção maior) num só objecto, que se auto-intitula Compêndio, parece querer prometer uma organização, um sentido de lógica que advém da sua coordenação e ordenação, mas a qual será permanentemente negada.

Recordemos que o título da exposição indica a existência de “histórias”, mas “assimptotas”. Este adjectivo, referente à geometria, explica referir-se a uma “linha recta disposta em relação a uma ramificação infinita de curva de modo que a distância de um ponto da curva a esta recta tende para zero quando o ponto se afasta indefinidamente sobre a curva” (Priberam). Esperando que a nossa compreensão seja suficiente, e não errada, por entre o emaranhado da ignorância pessoal, isso significa que é uma linha que se aproxima de um limite determinado mas sem jamais chegar a ele. Por um lado, poder-se-ia dizer que é um movimento tangencial, por outro, se duplicado (sob o signo de “texto” e “imagem”), duas linhas assimptotas constituem uma hipérbole, de órbita aberta. São pequenos movimentos de deslocações que criam toda a estranheza dos textos e desenhos do autor (tal como o pequeno movimento que leva de “Denisse” a “Dessine”).

“Diz” o autor, na entrevista fictícia: “...para os caçadores de planetas, um sol que oscila no espaço como um pêndulo é o indício da existência de planetas que o circundam. A oscilação é produzida pela influência da atracção que os planetas exercem sobre ele. É a partir desse sinal que os caçadores intuem a existência de astros ainda invisíveis e é a partir dele que os procuram”. Tal qual estes outros caçadores, o caçador de sentidos (lógicos, policiados, categorizáveis) tem de procurar no movimento aparente e sensível – as palavras escritas, as figuras desenhadas, as acções representadas – que é ofertado no livro a presença de “mundos outros” que se adivinham mas nunca se capturam.

É começando com pequenos passos, aparentemente triviais, que nos aproximamos de uma compreensão maior da “coisa”, mesmo que esta não venha jamais a ser conhecida completamente, já que “não temos nenhuma concepção do absolutamente incognoscível” (Eco, Kant e o Ornitorrinco). Dos nove desenhos aqui reproduzidos, apenas o central não mostra dois corpos (humanos, ou humanóides, ou passíveis de antropomorfização) em relação um com o outro. Os protagonistas indicados no título da exposição vão estando presentes: nesse spread, o “homem sem cabeça” vasculha a vegetação terrena em frente dessa enorme árvore, talvez um carvalho, estendo a mão em direcção a um movimento ou um objecto invisível (mas, possivelmente, à luz de uma interpretação sexualizada, como fazemos abaixo, se reinscreva a figura feminina na imagem). O seu título é “La Belle Indifférance: A árvore”. A expressão francesa parte de um termo nascido na psicanálise, em Pierre Janet, para dar conta de uma espécie de atitude descontraída face a uma qualquer extraordinária disfunção física, provocada pela psique (o exemplo é a da “cegueira histérica”). Quer dizer, face a um acontecimento desses, como perder literalmente a cabeça, a pessoa age com total naturalidade. Isso remete então, no campo literário, esta(s) personagem no Absurdo(s), ainda que Denisse queira que as suas produções possam ser vistas menos como exercícios de mera estese, mas como uma forma de moldar alternativamente exercícios reais e profundos sobre questões da natureza humana, o que incluirá a forma como cartografamos o universo.

Abordar todas as questões mencionadas na entrevista, e os caminhos que ela encetam, levaria praticamente a uma reprodução de todas essas mesmas palavras, que vão caminhando para a tal “nova geometria”, encaixada nas acções tentadas pelas interacções destas personagens, espaços e objectos, mas essa é apenas uma realidade que aqui fica sob a forma de convite aos novos leitores.

Em cinco imagens, essa personagem, já sem cabeça ou ainda sem cabeça, gira em torno de uma mulher, em vários estádios de relações sexuais que têm também o seu quê de ritual mágico e pânico (à la Arrabal-Jodorowsky). Numa delas não há sinal de sexo, é certo, mas há um retorno a um primitivismo, na pose e na forma como se prepara uma fogueira, mesmo no centro de uma sala recheada de livros. Negando-se, de certa forma, a civilização que nos rodeia, como se se confirmasse que sob o homem se encontra ainda (ou para sempre) a besta – um dos desenhos tem por título “signo símio”, apontando a essa possibilidade de uma hierarquia evolutiva e moral, tentada igualmente em O espelho de Mogli - , recordando uma cena de The Time Machine (a versão cinematográfica, na impressionante cena em que o viajante desfaz uma fileira de livros num ápice em pó). Noutra, a inicial no volume, a mulher faz o pino, nua, e o homem rega o seu sexo (a vegetação surge sempre sexualizada - atente-se particularmente à grande árvore do spread - , se não houver mesmo a potencialidade, à la Klossowki, que é citado de modo explícito, de tudo sexualizar, mesmo a pose mais hierática, mesmo o objecto mais isolado). Encontramos também a presença, usualmente secundarizada, como um co-adjuvante, um bobo de corte, um macaco de rabo comprido segurando uma máscara, um chimpanzé brincando com um outro de peluche, quase numa representação especular, um orangotango pensativo frente a um volume aberto de geometria, com outras personagens em torno. Mascando um ramo cheio de folhas ainda verdes, olha-nos, no fim deste curtíssimo volume, como se nos exigisse uma resposta a todas as perguntas que se foram acumulando ao longo da sua leitura. Os traços de Mattia Denisse acumulam-se e encavalitam-se, procurando pouco efeitos de virtuosismo e ilusão, mas permitindo que a recta que marca a tábua passe por cima da página do livro, que as tramas da camisola e das calças do homem ao fundo ecoem as do sofá, que se hesite na curva do pé da mulher, que não se termine o reflexo do esqueleto sentado. Haverá, porém, resposta possível? E unívoca?

Nota final: agradecimentos a C.C. e A.G. pela “captura” do Compêndio.

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