17 de outubro de 2014

O espelho de Mogli. Olivier Schrauwen (Mmmnnnrrrg).

Quando mencionámos o novo projecto deste artista, Arsène Schrauwen, conhecíamos já a versão original deste livro, Le miroir de Mowgli, mas foi com surpresa agradável que descobrimos ter sido produzida esta nova versão, publicada em Portugal. Ela difere da primeira em termos de formato, ligeiramente maior agora (ver nota final), pela técnica de impressão (correcção: ver comentários) e, consequentemente, pela cor (onde no original duas cores se complementavam – um amarelo mais torrado e um azul mais claro, dando origem a pontos de encontro de um vívido verde – aqui usa-se antes um laranja e um azul mais comedidos, levando a um ambiente mais sóbrio). (Mais) 

As quatro primeiras páginas abrem para um jovem selvagem – mito a que a história do The Jungle Book pertence, mas terá outros “primos” - numa selva tropical encontrando-se com um orangotango. Macaqueam-se entre si, sendo complicado perceber quem inicia as acções e quem as imita, levando somente a estruturas de páginas simétricas, com a diferença das criaturas cumprindo os gestos. Após uma mão-cheia dessas imitações, o autor mostrar como o filamento que os separa entre vinhetas se pode ultrapassar, e rapidamente eles passam a ocupar um espaço comum. Descobrimos depois que o orangotango era fêmea, e que estava grávida. Nada nos permite dizer que a gravidez é da responsabilidade do humano (muito menos a ciência), mas este parece aceitar esse papel com bonomia e gosto. Mas é sol de pouca dura quando o lobo (Raksha, a mãe?) se lhe junta, mostrando uma união impossível de entender pela mãe símia. Segue-se uma fuga com fim trágico. Mogli parece assim inscrever-se num mundo totalmente apartado do dos animais: nem presa nem predador, nem de uma espécie nem de outra, a segunda parte do livro lança-o numa incessante e obsessiva busca por companhia e uma nova família. Vários momentos o lançam contra reflexos e ilusões, uns mais dramáticos que outros, e alguns deles desviando-o também do que imaginaríamos ser as emoções humanas: quando se depara com um esqueleto de um pequeno símio, supostamente o do “filho”, não se emociona, as aborrece-se.

É curioso que este Mogli encontre um orangotango, e não um chimpazé. Se é este último aquele que mais próximo está do ramo do homo sapiens sapiens, é aquele outro que, num determinado imaginário aparentaria uma melancolia quase reflexiva do homem, e até por, historicamente, ter sido a sua descoberta que deu início a investigações mais racionais e controversas sobre a possibilidade da ligação do homens aos ditos primatas inferiores. O espelho de Mogli pode ser visto então como uma espécie de reflexo sobre o papel do homem no papel biológico a que cada vez menos pertence. Falar de adaptação aqui não faz qualquer sentido, sendo o assunto comum entre o livro de Schrauwen e o de Kipling uma mera coincidência sem mecanismos de grande importância. É apenas uma jogo superficial para as criações também superficiais – formais, cromáticas, de estrutura – do livro em si. Mas há outras questões profundas. Não abdicando do humor, da fantasia e as revisitações de géneros que parecem já tipificar a linguagem e abordagem deste autor, há algo aqui da natureza humana que é procurado e tornado mais ou menos claro, mesmo que de uma forma também ela tão distorcida quanto um espelho deformador. A natureza narrativa ou mesmo linear do livro oferece a possibilidade de uma “aventura”, de um percurso, ou até mesmo um progresso, à la Hogarth, cuja referência também surgiria como tutelar se tivermos em conta que a aventura deste Mogli o leva, depois da procura, à obsessão, seguido da loucura e finalmente ao eclipse total. Isto é, quando o seu reflexo, tantas vezes adivinhado em superfícies, ganha corpo próprio, e o remete a renovar os gestos do início, oferece-lhe também a hipótese, literal, de mergulhar em si mesmo, o que lhe anula a presença nas páginas do livro.

O oráculo de Delfos continha duas lições inscritas no seu portal: “conhece-te a ti mesmo” e “nada em excesso”. Será possível que o auto-conhecimento também poderá ter um excesso? Será esse excesso aquele atingido por Mogli? Eis uma possível interpretação de um exercício visual, narrativo, estrutural mas também filosófico, na banda desenhada, magnífico da parte deste autor.
Nota final: imagens retiradas do blog da editora.

6 comentários:

MMMNNNRRRG disse...

não é risografia!
e pedias imagens para o post..
hasta
M

Pedro Moura disse...

Pensava que me tinhas respondido que sim, mas provavelmente fiz mal a pergunta. Está corrigido. Se puderes enviar imagens melhores, substituo estas. Obrigado!
p

MMMNNNRRRG disse...

essas específicas ou outras quaisquer?

Pedro Moura disse...

Como te der mais jeito, obrigado, mas pelo menos a capa e aquelas onde a simetria é mais evidente...
Pedro

MMMNNNRRRG disse...

http://gentebruta.blogspot.pt/#!/2014/08/026-o-espelho-de-mogli.html

então e que tal se fosses aqui sacar invés de fazer esses scans terríveis?

jísuz!
M

Pedro Moura disse...

Já está, obrigado!