18 de novembro de 2014

3 livros de artista. 1: The Cabinet of Dr. Alice. Alice Geirinhas (Stolen Books)

Introdução.
Queremos aqui agregar num único olhar três objectos distintos. Esta operação de colocar lado a lado estas três publicações não deixa de exercer um certo abuso, uma vez que elimina certos pormenores singulares de cada um destes projectos para os conjugar de acordo com um qualquer princípio que julgamos ser-lhes comum, um princípio que poderia ter o nome fluido de “livro de artista”. Se bem que cada um mereça uma leitura individualizada, e uma ponderação dos seus instrumentos e elementos que os singularize, e não crie a ilusão de familiaridade, estamos em crer que a sua consideração conjunta poderá sublinhar questões pertinentes partilhadas por todos. (Mais) 


Os livros de que queremos dar conta são The Cabinet of Dr. Alice, de Alice Geirinhas, Monkey Trip, de Gonçalo Pena, e, “menos que um livro”, Compêndio de Gometria Clitoridiana, de Mattia Denisse. Todos eles têm um grau de intervenção mais ou menos diferenciado da parte do artista. Isto é, se partíssemos de um ponto de vista definidor, estaríamos em apuros, já que as definições de “livro de artista” são não apenas múltiplas como por vezes contraditórias entre si. Basta pensar que se por um lado se podem considerar “livros de artista” aquelas produções mais baratas e multiplicadas que a tornam mais acessíveis, precisamente espelhando uma vontade político-económica de democratização da parte dos artistas (recordemo-nos da possibilidade de encontrar em Twentysix Gasoline Stations, de Ruscha, um primeiro gesto nesse sentido) – e aí o projecto de Denisse estaria mais próximo dessa natureza -, por outro poder-se-ão sublinhar antes objectos cuidados em termos de feitura e intervenção editorial-material do artista – possivelmente sendo o de Alice Geirinhas o que mais cumpriria esse papel. Assim sendo, se nos ancorássemos a essas definições demasiado cingidas, perder-se-ia talvez a hipótese de os mencionar sequer num só fôlego. Todavia, este é um território bastante amplo e mutável nos seus contornos absolutos, como já havíamos debatido a propósito de Tarefas Infinitas e outros objectos.

Além disso, a formação de tais categorias depreende de imediato um processo de hierarquização, naturalmente, e a mais do que um termo. Comercialmente, um “livro” de artista é mais caro do que um “catálogo”, mesmo que este segundo possa vir a ganhar um valor de maior raridade num futuro mais ou menos próximo, e dependendo da circulação e valorização do próprio autor. A recepção crítica, nos mais diversos canais abertos a isso, também será mais sensível para com um objecto de maior circulação normativa do que outro menos imediato. E, finalmente, a inscrição desses mesmo objecto no percurso do autor dependerá largamente de factores idiossincráticos do autor em si. É essa relação imediata que nos interessa explorar em primeiro lugar.

Materialmente falando, nenhum destes objectos pretende escapar à noção e materialização mais usual de “livro”. Se podemos encontrar em Cabinet valores de produção materialistas mais sofisticados e caros do que nos outros casos, ou em Compêndio um desprendimento assinalável e compreensível, não há propriamente uma procura por formas que coloquem em crise a ideia do “codex”. Temos páginas, cadernos, encadernação, e até mesmo toda uma série de complementos livrescos expectáveis: banadas, sobrecapas, no caso do livro de Pena, uma encadernação que separa a capa da lombada, reforçada de forma distinta, no de Geirinhas o acompanhamento de um poster serigrafado com uma imagem produzida em linogravura/scratchboard, no de Denisse a capa que se transforma em poster/mapa da exposição. Nada disso coloca em crise a estrutura física e, logo, conceptual, do livro.

Com efeito, o livro, ou “codex”, pode parecer-nos indiscutivelmente uma categoria que se tem mantido ao longo de séculos, de uma tal forma que poderemos pensar que se trata de um objecto/conceito imutável. Mas isso não é totalmente verdade, se bem que as inflexões sejam internas ao objecto, relacionadas com as suas circunstâncias sociais e económicas, materiais e de práticas. Por exemplo, compreender o livro como meio, veículo, estrutura e enquadramento revelará que ele terá tido desde o seu início funções sociais bem distintas, assim como lugares mais ou menos privilegiados numa paisagem mediática sempre cambiante. Livros para uso de missionários e livros para monarcas, livros de uso diário para estudantes ou de preces para nobres, livros de instruções de ilustração de livros e livros de rituais esporádicos. Nos dias que correm, isso não é diferente. Não deixa de ser por exemplo matéria de curiosidade de que num momento que a dita revolução digital parece tomar cada vez mais espaço em determinadas áreas – a académica, a jornalística-informativa, alguns tipos de entretenimento -, haja igualmente um aumento de agentes que criam livros com um particular brio para com a sua dimensão material, e as formas alternativas de circulação e recepção. Precisamente o caso das publicações que nos interessam agora ler atentamente.

The Cabinet of Dr. Alice. Alice Geirinhas (Stolen Books).
Comecemos pelo livro mais “livro de artista” de um ponto de vista “comercial”. Existindo apenas 50 exemplares, oferecendo uma serigrafia, este é uma espécie de repositório de imagens que acaba por construir (ou reconstruir) uma biografia imaginária da artista. Não é tanto uma recolha de imagens da autora, como já o fizera em Alice (de 1999), mas é já uma extensão de uma espécie de retorno à memória pessoal das imagens, como havia feito em Repulsa, ainda que no seio desse outro projecto concertado.

Encontramos aqui desenhos da artista, alguns dos quais são daquela produção que se lhe reconhece em termos formais e materiais, produzidos em scratchboard, mas outros produzidos a esferográfica ou marcadores baratos, talvez mais recuados em termos cronológicos (da sua adolescência? Infância? Primeiras experiências expressivas?) ou então fruto de exercícios de descontração, rabiscos de apoio ao pensamento. Mas também encontraremos imagens “encontradas” ou “apropriadas”, sob a forma de fotocópias, digitalizações, de imagens de toda a sorte de qualidades gráficas: de livros infantis, bonecas de papel para vestir, ilustrações de tabuadas e contos tradicionais, guardas de livros de receitas, capas de livros, folhas de publicidade, um excerto de um texto em espanhol de laivos conservadores para com a mulher, e a sempiterna Crónica Feminina. Estamos em crer mesmo que Alice Geirinhas se poderia reapropriar desse mesmo título para despejar os seus sentidos únicos sobre este seu livro. É claro que ao optar por Cabinet, a artista pretende não apenas associar-se ao famoso filme de Robert Wiene, e à ideia de uma “caixa” onde está guardado uma espécie de cadáver adiado e profético, mas também a todo o conceito da história das ciências e da arte das wunderkammer, espaços de armazenamento muito pessoais, que procuram coordenar os objectos mais díspares sob uma visão individualizada que incute sobre esse “caos” categorial um qualquer princípio organizativo, nem que seja precisamente o convívio no mesmo espaço. Esse título traz um certo prestígio e uma aura elevada, mas a sua natureza perscruta na verdade um território mais circunscrito, a prisão dos papéis domésticos impostos à mulher. Em bastos casos, a leitura dupla, quer dizer, das duas imagens que são apresentadas lado a lado, obriga-nos a desembaraçar sentidos latentes nas imagens originais que no diálogo proposto se tornam evidentes.

Todavia, esse convívio é aqui reforçado, se assim se o pode dizer, em termos temáticos. Vemos algumas afinidades entre essas imagens: corpos fragmentados e que exploram questões de multiplicação e corte dos corpos, a domesticização e depois a animalização da mulher, maquilhagem e a maternidade, vista das mais diversas facetas. Mesmo a imagem do conto do “macaco de rabo cortado”, se aparentemente não parece ter nada que ver com essas preocupações feministas, permite essa leitura se entendermos os pormenores do conto, o acto de auto-mutilação perpetrado pelo macaco por dar ouvidos a opiniões externas e aos contínuos gestos de tentativa de substituições, que se abririam às mil maravilhas a leituras psicanalíticas, sobretudo as lacanianas. Luce Iragaray, numa entrevista, explica como culturalmente há uma predominância do visual sobre todos os outros sentidos, a qual levou concomitantemente a uma “perda de materialidade dos corpos”, e como isso espelha uma distinção entre os géneros, uma vez que o investimento escópico “não é tão privilegiado nas mulheres como nos homens” (tema o qual seria estudado por muitas outras teóricas importantes da relação do feminismo com as artes, de Judith Butler a Laura Mulvey, entre outras). Sob o signo dessa consideração, não é propriamente surpreendente que haja uma tendência em focar imagens de rostos, expressões de felicidade, além do aspecto óbvio de ser uma colecção de imagens (algumas das quais com pequenos rabiscos textuais, num caso o excerto).

No que diz respeito à artista enquanto autora de banda desenhada, de uma geração compreendida sobretudo do final dos anos 1980 (sob a forma de alguns dos fanzines mais significativos da época) e a década de 1990, Alice Geirinhas produzia trabalhos que se poderiam agregar em campos mais ou menos alargados que poderiam ser chamados de “novelas do mundano”, “crónicas do feminino” e nalguns casos mesmo de “autobiografia”. Seja como for, ao lado de autoras como Ana Cortesão, Isabel Carvalho, Mimi e uma mão-cheia de outras, Geirinhas é uma autora para quem a afirmação da identidade feminina tinha de passar necessariamente por um posicionamento crítico e até mesmo de conflito contra certos princípios dominantes, papéis expectáveis, já que esse diálogo se fazia no seio de uma sociedade que ainda escapa a um certo marasmo social, cultural e moral. É curioso notar, por contraste, que muitas das autoras portuguesas actuais (Amanda Baeza, Hetamoé, Joana Estrela, Joana Afonso, etc.) trabalham já desprendidas dessa necessidade de afirmação – ou cujos instrumentos são bem distintos - , o que é em si mesmo uma conquista tornada possível pelo trabalho explorado anteriormente. A pequena e pessoal wunderkammer que aqui nos é dada por Alice Geirinhas ainda respira no seio dessa lógica de afirmação, através da apropriação e re-empregos das imagens subsumidas a um tema mais ou menos coeso. 
Nota final: agradecimentos à Stolen Books, pela oferta do livro.

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