13 de novembro de 2017

No caderno da Tangerina. Rita Alfaiate (Escorpião Azul)

Dividido em quatro breves mas concentrados capítulos, esta curta narrativa de umas 80 pranchas recupera alguma da candura do ambiente da infância e as fantasias que se criam em torno do desconhecido e da aventura. Passado numa pequena escola de província, à qual chega uma nova estudante, Tangerina, que parece guardar um segredo, o jovem Spike tenta ultrapassar as claras defesas sociais montadas pela rapariga, para poder compreender um “monstro” que ela desenha obsessivamente no seu caderno, e que ela diz ter escapado de um sonho e precisa de ser re-capturado. (Mais) 

Elaborando-se uma espécie de variação sobre elementos reminiscentes de contos tradicionais, de uma certa linha da animação japonesa, séries de televisão e de narrativas de horror, No caderno da Tangerina pode provavelmente oferecer dois níveis imediatos de leitura, sendo o primeiro o literal e o segundo o psicanalítico. O primeiro remeteria este livrinho para o género da fantasia negra, mas sem jamais cair no horror profundo, tratando-se de algo que poderá ser lido por leitores mais jovens, e que lhes permitirá enfrentar emoções ainda estranhas, novas mas ao mesmo tempo fascinantes, precisamente pelo perigo que prometem. Nessa sentido, haverá aspectos de épico, de aventura, de heróico na maneira como Spike se “atreve” a aproximar de Tangerina e até “atravessa a floresta” atrás dela, recuperando toda uma série de estruturas narrativas clássicas. Não há propriamente um combate, evitando-se assim papéis tradicionais do “rapaz-herói” e da “rapariga-protegida”, mas tampouco uma inversão básica dessa fórmula, transformando anyes a estrutura actancial do livro numa refrescante diferença. Até certo ponto, poder-se-ia dizer que há até algum grau de irresolução ou ambivalência na forma como a intriga se “resolve”, e é isso o que alavanca a próxima leitura.

Apesar de não se estender de forma alguma a novela familiar quer de Tangerina quer de Spike para a sua esfera familiar. A atenção da narrativa fica circunscrita às relações passadas na escola, no recreio e nos descampados para lá da cerca, mas o leitor arguto poderá tentar lançar de imediato possibilidades interpretativas que o levará a crises mais profundas. Tratar-se-á o monstro de uma tradução possível de um trauma? A um nível metafórico, somente, simbólico e partilhado pela empatia de Spike para com Tangerina, ou estaremos mesmo face a uma desarrumação a nível psicológico? E o que pensar precisamente dessa empatia tão significativa entre Spike e Tangerina, que mais se pauta por uma cumplicidade não-dita, e até negada pelos mesmos, do que discutida verbal e logicamente? A aliança entre os protagonistas torna-se uma das pedras de toque desta pequena e primeiraobra da autora.

O desenho de Rita Alfaiate é algo devedor à mangá, mas de uma forma difusa, quase “natural”, sendo mais fruto da própria natureza da aprendizagem ou dos contornos mais usuais dos jovens artistas do que de uma decisão consumada. Há uma certa urgência, simplicidade, descomprometimento no desenho de Alfaiate que tem a ver com uma certa atitude “de caderno escolar”, o que não deixa de ser apropriado. E apesar das estratégias de simplificação (ausência de cenários e/ou isolamento das personagens nas vinhetas, apagamento das texturas nas figuras, rapidez das artes-finais), a autora guarda determinados momentos para ancorar bem a acção em lugares bem demarcados e cheios, e há mesmo algumas vinhetas que mostram antes uma lavra expressiva, com a grafite, aparo ou caneta seca, ou uma acumulação de efeitos de cinzentos, que reequilibra aquela simplicidade numa mais vincada presença gráfica. E tudo isso com uma atenção especial para com a tensão narrativa em curso, e não, de forma alguma, ao acaso.

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