5 de outubro de 2017

Hanuram, A fúria. Ricardo Venâncio (G. Floy/ComicHeart)

Este é o primeiro projecto de monografia apresentado pela parceria da G. Floy e a ComicHeart, depois do primeiro volume do antológico The Lisbon Studio Series, pretendendo uma oferta de banda desenhada contemporânea portuguesa que possa apelar a um largo público interessado em abordagens mais populares, imediatas, narrativamente clássicas e claras. Materialmente falando, trata-se de um objecto de luxo, com todos os pormenores de um álbum, num formato que remete para os “prestígio” ou “deluxe” do mercado norte-americano, e apresentando um número de páginas suficiente para satisfazer a leitura, ainda que crie mais apetite do que o sacie, imaginando-se (ou sabendo mesmo) haver possíveis desenvolvimentos. (Mais)

Ricardo Venâncio já havia apresentado esta personagem ao grande público em várias ocasiões, como por exemplo um pequeno desdobrável, histórias curtas, “promos” na internet, exposições, mas este volume será certamente a apresentação mais alargada possível a um público bem mais significativo.

Se podemos dizer que o livro reúne três histórias, a verdade é que haveria algum desequilíbrio nessa interpretação. Afinal de contas, temos uma espécie de introdução que instaura o grande mito de criação do “mundo” que o autor idealizou, e introduz a personagem numa acção simples. Ocupando 6 páginas, as quatro primeiras traduzem por imagens a grande viagem dos deuses primordiais Anuar e Rauna, a emergência do cosmos, do tempo, da Terra e suas criaturas (numa amálgama e decalque de vários mitos euro-orientais), e as segundas uma espécie de demonstração sumária das capacidades guerreiras do protagonista. No final do volume apresenta-se uma história curta de 4 páginas, que havia sido publicada anteriormente em inglês, e que é uma espécie de anedota curta, muito próxima do humor típico do Hellboy de Mignola, misturando elementos de fantasia e horror para criar um efeito de surpresa pelo divertimento. No entanto, não é um contributo decisivo para a construção de Hanuram, quer no que diz respeito à sua personalidade quer à sua destreza. É a história central, portanto, que recupera o sub-título do volume, de 28 páginas, que apresenta o sumo do volume.

Hanuram é um guerreiro com características curiosas, pelo seu porte, não necessariamente musculado, a sua careca, e o facto de estar enclausurado numa armadura dourada (daí o cognome). De certa forma, recordará Volstagg, por exemplo, mas apesar desse tratamento pouco convencional, Ricardo Venâncio parece querer ofertar-nos um guerreiro implacável e invencível, não fossem as suas aparentes fraquezas (para já, o álcool). Não sendo ainda suficiente para compreender todos os contornos da personalidade da personagem, já que ela interage construtivamente com poucas outras, e quase não estabelece diálogo com nenhuma (na verdade, parece que toda a “faixa verbal” terá sido acrescentada posteriormente, havendo uma vontade original de explorar as possibilidades da banda desenhada “muda”), acreditamos que de facto haverá contornos de humor a explorar num futuro hipotético. Fica portanto a sensação de que A fúria não deixa de ser sobretudo um volume introdutório a um projecto de worldbuilding que poderá vir a desdobrar-se.

Em 2009, o autor havia-nos ofertado o primeiro volume de Defier, uma saga que não teve continuidade, mas Hanuram herda toda uma série de características, sobretudo em termos de género, dinâmica das cenas de acção e de composição de páginas, ainda que mais dextras. Algumas páginas têm um número pequeno de vinhetas, optando-se por estratégias de arranjo muito equilibrado, mas Venâncio controla esses efeitos, como esta em que a vinheta central poderá ocupar um momento temporal tanto interno como externo às cenas circundantes.

Outros aspectos são bem distintos, começando pelas cores digitais, as quais, se são mais vívidas, e ricas, não deixam de deixar visíveis a gestualidade dos traços primários, dando uma patina imediata de sketchbook muito interessante, mas também deixando que algumas cenas “negras” ou “nocturnas” tomem conta em demasia da figuração. Esta última titubeia ligeiramente por o autor utilizar estruturas “ósseas”, digamos assim, similares para todas as personagens, tornando-os aparentados uns com os outros, independentemente das restantes características físicas serem bem diferentes. Em parte, isso terá a ver com a “assinatura gráfica” de um artista, mas isso leva a que haja uma relativa limitação na expressividade dos rostos apresentados, sejam eles humanos, deuses ou até as criaturas fantásticas que se colocam no caminho de Hanuram.

Ricardo Venâncio coloca todas as três peças, seja como for, numa espécie de in media res (como já o havia feito anteriormente), com Hanuram “a caminho”. Não sabemos de onde parte nem o que pretende alcançar, mas há algo na sua movimentação que o coloca numa rota de colisão com os grandes deuses deste mundo. A fúria é assim um início auspicioso e perigoso para a personagem...

Nota final: agradecimentos aos editores, pela oferta do volume.  

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