3 de julho de 2017

4 títulos Sociorama. AAVV (Casterman)

A propósito de Chantier Interdit auPublic, explicámos o contexto de produção e publicação dos títulos desta colecção, Sociorama, que, dizendo-o de modo simplista, são adaptações de trabalhos de cariz académico na disciplina da sociologia. Daí que se compreenda que as capas revelem não somente o nome dos autores artísticos que lavraram estas bandas desenhadas, mas igualmente o dos investigadores, de forma a que se sublinhe a precisão e instrumentos dessa pesquisa original. Alguns desses trabalhos foram já publicados em volume, outros existem ainda sob a forma de teses universitárias. Seja como for, são resultado da instrumentação teórica, prática e desenvolvida no campo, em ambos os sentidos, disciplinar e de contacto com o terreno, desse saber das ciências humanas, que, de uma maneira ou outra, reflecte uma verdade de experiência das pessoas com quem contacta. Sendo os objectivos gerais da sociologia a compreensão do indivíduo e dos grupos que possa completar inseridos na tessitura social e externa, não se trata tão-somente de entrevistas a esses mesmos indivíduos, mas à criação de toda uma contextualização global que tanto integra como destaca a experiência que se está focando. (Mais)

No entanto, se os trabalhos originais serão acompanhados de todo um instrumentário que consolida as observações, premissas e conclusões dos sociólogos, a adaptação à banda desenhada, pelo menos na natureza dos objectivos desta colecção, procuram que se apresentem essas mesmas ideias sob uma forma mais narrativa, fluida, atreita à experiência das personagens que observamos. Não estamos no campo de autores de banda desenhada que procurem estratégias visuais e de composição que possam integrar outros modos de apresentação de dados, como estatísticas, gráficos, dados, isto é, uma forma ensaística, se assim se pode dizer. Fora introduções com dados, pequenos pontos de partida contextualizadores, enquadramentos, a narrativa segue-se ao rés da experiência de uma personagem, que servirá de foco a tudo o que se discute e aprende. Em alguns casos, trata-se de um trabalho de investigação social que segue a técnica chamada de “observação participante”, em que o investigador partilha o mais próximo possível a integração profissional, vivencial e social do problema que pretende observar, como são os casos de Marlène Benquet em Encaisser! Enquête en immersion dans la grande distribuition e de Muriel Mille em Produire.

Tendo um formato de livro, quase de bolso, as estratégias de composição são com efeito simplificadas. Mesmo que tenhamos autores com uma larga experiência artística, muito expressiva e própria, como é o caso de Anne Simon, de Encaisser!, os autores escolhem aqui usualmente uma assinatura gráfica muito célere, simplificada, quase de esboço ou apontamento, com três a quatro vinhetas, tornando então a leitura rápida, efectiva, de uma grande legibilidade, aumentando o grau de popularização destes discursos.

Os quatro volumes a que tivemos agora acesso tratam dos temas que passamos a descrever sumariamente. O livro de Simon segue os passos de Benquet enquanto empregada de caixa registadora de um grande rede de supermercados (chama-se “Batax”, mas o símbolo leva a adivinhar tratar-se do Carrefour), e o seu consequente envolvimento com a organização desse mesmo trabalho e os sindicatos. O que se aprende é a estratificação brutal das hierarquias e estratégias de distribuição de trabalho, responsabilidades e informação, confirmando-se a noção de que o capitalismo sabe muito bem “dividir para conquistar”. A própria relação com alguns dos sindicatos revela jogos de bastidores político-económicos que tornam impossíveis aos trabalhadores individuais quaisquer mecanismos de defesa e justiça social. Cria-se um ambiente opressivo e quase inumano nessas relações de trabalho, apesar da imagem externa ser sempre a de uma grande família e uma gestão equilibrada e justa para todos. Basta pensar na forma como, nos dias de hoje, parece que a palavra “empregado” desapareceu para dar lugar a “colaborador”, criando uma ilusão de que o assalariado tem um maior peso nos processos de decisão e organização do trabalho (não tem).

Baseando-se no estudo Chirurgiens au féminin, de Emmanuelle Zolesio, Sous la blouse, adaptação de Marion Mousse, bebe de toda uma série de entrevistas, observações directas, estudos de estatísticas para fazer um retrato sociológico da distribuição de mulheres nos serviços de cirurgia. Um desenho inicial é muito claro, ao demonstrar que existem cerca de 60% de candidatas às profissões médicas, percentagens que vão diminuindo à medida que subimos nas hierarquias hospitalares até chegarmos a somente 1% de mulheres como chefes de serviço... Se esses números não são suficientes e não mostram todas as dimensões, é certo, já dizem muito em si mesmo. Mousse transforma isso numa sucessão de pequenos episódios, experiências, rememorações, encaixadas umas nas outras, e sempre enquadradas com comentários imbecis dos colegas homens em torno, preocupados com as “dificuldades” que as suas colegas mulheres podem ter face a certa situação, ou pura e simplesmente subsumindo qualquer conversa a oportunidades de assédios sexuais. Se bem que parece que o ambiente das cirurgias convida a uma linguagem e humor desabridos, como uma forma de protecção contra o que se experiencia e faz nas salas de operações (serrar ossos, abrir corpos, bombear sangue, mexer em órgãos, etc.), há sempre uma distribuição de poderes que mal se oculta nessa mesma linguagem. No entanto, a organização geral do livro centra-se na figura de uma estudante, Julie, e o seu percurso desde a entrada como “externa” até à sua primeira conquista profissional, trazendo como recompensa final a esperança de que as mulheres possam conquistar, com efeito, o resultado dos seus esforços profissionais, sem mais.

La plus belle la série é a única investigação que ainda não foi publicada como tal, existindo somente sob a forma de tese (Produire, de la fiction à la chaîne), de Muriel Mille. Adaptado por Émile Harel e Paul-André Landes (argumentista), seguimos as tarefas de uma jovem argumentista a trabalhar para uma telenovela de longa duração, Plus jolie la vie. Mais do que organizar os elementos narrativos e pessoais das personagens desse mesmo programa, o livro vai desdobrando-nos à frente toda a cadeia produtiva, envolvendo questões burocráticas, financeiras, mesclando tensões criativas e imperativos económicos e profissionais. Ao mesmo tempo é um estudo do impacto e significação cultural deste tipo de produções televisivas, que vive numa permanente fronteira entre o que é legítimo e digno culturalmente, o ofensivo e pornográfico (sobretudo quando confrontados com os reality shows, de que se vêm forçadas a aproveitar elementos), os desejos voyeurísticos do “grande público” e as discussões éticas que poderão surgir pelo confronto quer com a recepção teórica destes programas quer dos próprios envolvidos na sua criação (que podem, bastas vezes, sempre pessoas com uma sólida formação intelectual superior, mas vão embater neste embrutecimento). São curiosos os diálogos entre a argumentista, que defende a “Marselha” da telenovela, tornada um “cenário no qual todos se possam identificar” e na qual “ancorados na realidade, estamos super atentos aos temas sociais”, e um jornalista freelance que procura desmontar esse “realismo” como uma manipulação. Particularmente pesado em termos de diálogos e interacções entre as personagens, e não apagando o humor e prazeres recônditos que estas telenovelas podem suscitar em qualquer um, há uma sábia construção das personagens e destas vidas. A intercalação entre os processos de escrita e as cenas finais, inclusive as hipotéticas e corrigidas, havendo mesmo momentos em que se mistura a “realidade” das personagens e uma “ficção projectada”, torna-se uma das estratégias mais curiosas e quase metatextuais do livro.

La banlieue du 20 heures, adaptado por Helkarava, é, a título pessoal, e restringindo-nos ao seu tópico, o mais interessante dos trabalhos. Traduzível como “Os subúrbios do noticiário das 8”, o estudo de Jérôme Berthaut foca a maneira como os meios de comunicação social constroem uma ideia, conceptualização e foco de certos bairros sociais como “problemáticos”. Se a acusação de “Fake news” está hoje na ordem do dia em sectores da direita, a verdade é que a suposta liberdade do jornalismo sempre foi balizada, senão encurtada, por interesses exteriores à verdade ontológica que deveriam perseguir. Baseado sobretudo num trabalho de observação da redacção da France 2, e em reportagens em torno de bairros como Moleenbeek, em Bruxelas, testemunhamos como é menos importante o captar as vozes genuínas, múltiplas e matizadas das populações locais do que posicionamentos políticos específicos que venham confirmar desde logo os “lugares-comuns” que se esperavam e não apenas confirmam como reforçam os discursos dos poderes em torno. Ao mesmo tempo vamos compreendo os jogos de cintura e de hierarquias internas a uma redacção, que espelham mais as pressões dos interesses económicos e políticos dos accionistas do que uma suposta ética profissional. Os momentos mais dolorosos expressam-se no retrato dos jornalistas mais conscienciosos, sempre negados nos seus projectos mais democráticos, e depois acusados de “suscetíveis” por ficarem aborrecidos por essas mesmas negações (uma realidade que, no momento em que compreendemos entrosar-se na identidade feminina da jornalista, ganha ainda outros contornos, e aquela palavra um instrumento de opressão, mesmo quando proferido por outra mulher).

Estes modos de divulgação científica poderão nutrir-se de contornos por vezes demasiado simplificadores, subsumindo tudo a estratégias naturalizantes e narrativas para transmitir as realidades sociais complexas que haviam sido estudadas. No entanto, não se pode negar que é esse mesmo objectivo popularizador da colecção e, assim, são projectos que conseguem atingi-los. Dirigidos a um público bastante alargado, este é um dos “usos” ou “traduções” em que a banda desenhada se afigura, na verdade, como particularmente feliz.

Nota final: livros recebidos da editora, a quem agrademos.

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