29 de dezembro de 2016

Oupus 6. AAVV/Oubapo (L’Association)

Este livro vem assinalar, de certa forma, um aniversário “redondo”, uma vez que os primeiros passos do movimento Oubapo, ou Ouvroir de la Bande Dessinée Potencielle, ou “Ateliers da Banda Desenhada Potencial”, foram dados há um quarto de século, tendo dado a uma colecção de volumes por esta editora, colectivos e projectos individuais, mas igualmente workshops um pouco por todo o mundo, com ou sem os seus agentes originais, discussões académicas, estratégias integradas na produção “normal”, etc. Influenciados pelo mais famoso movimento literário da Oulipo, a Oubapo tenta criar formas de trabalho que partem não tanto de uma “ideia diegética” ou “representacional”, mas antes de uma qualquer formulação estrutural, formal, que deve ser resolvida depois. Um jogo de regras pré-estabelecidas que depois se deve solucionar. Um labirinto construído pelos próprios ratos que devem escapar (Queneau). Tudo palavras dos intervenientes… Em larga medida exercício de salão, não deixa ainda assim de provocar um pensamento reflexivo sobre esta arte em particular, acto de extrema importância quando esta linguagem corre o risco de parecer “demasiado familiar”. (Mais)

Com efeito, existirão muitos leitores que pensarão que a banda desenhada somente pode existir num sentido narrativo ou representacional. “Tem de dizer alguma coisa” ou “contar uma história”, impedindo-a de ter uma respiração tão livre quanto outra disciplina estética qualquer. Quer dizer, deixá-la ser verdadeiramente arte, com o seu jogo livre entre a razão e a imaginação, como Kant indicava, e não confinada às categoriais já expectáveis. Aliás, se o novo objecto se vem encaixar de forma demasiado clara nas categorias que já conhecemos, em que sentido é que as faz abrir? Como se a exploração formal, artística, estética fosse compreendida como estéril, e não como uma reflexão particularmente acesa de si mesma. Enfim, uma pobreza intelectual, a nosso ver, pensar assim.

De resto, e como tão bem aponta Matt Madden no seu próprio site, toda a banda desenhada (enfim, poder-se-ia dizer que toda e qualquer arte) emerge sempre no seio das suas próprias restrições: materiais, formais, sociais, económicas, etc. A questão está porém em identificar formas lúdicas de maior “aperto” para com isso conseguir atingir outros modos de libertação. Já numa outra ocasião havíamos feito a comparação com uma camisa-de-forças. Por um lado os movimentos ficam restringidos, mas por outro obrigarão a pessoa a imaginar como se mover, como encontrar uma elegância de movimentos nessa limitação. Muitas são as metáforas passíveis de comparação.

Pensemos numa, algo arriscada e falha, como todas as comparações, mas que poderá explicar o valor diferencial desta via de criação. O compositor Béla Bartók tem uma série de 153 peças sequenciais para piano que fazem confluir toda uma série de desafios para intérpretes desse instrumento, começando em estruturas muito simples e progressivamente tornando-se mais complexas, desde manobras de principiante a peças de concerto. Basicamente são um complexo, rico, método pedagógico do piano, de uma inteligência estrutural insuperável. Essas composições estão juntas sob o título Mikrokosmos. Cada um desses exercícios permite explorar toda uma série de problemas ou questões específicos, como os das posições correctas dos dedos, as depressões dos pedais, estilos (regionais e históricos), simetrias, entrelaçamentos, modos, e aspectos teóricos, evitando armadilhas facilitistas, como melodias simples ao ouvido, ou “traduções” da linguagem musical em algo mais simples. Há mesmo quem descreva Mikrokosmos como um método que desenvolve a capacidade auditiva através da vista e não do ouvido, melhorando assim essa mesma capacidade. Por outras palavras, obriga a que se evite percorrer caminhos expectáveis e já-familiarizados pelas categorias preexistentes, para convidar a “ver com olhos de ver” ou melhor, “ver com olhos de ler” (para reempregar uma expressão de Domingos Isabelinho, que havia, e bem, corrigido uma frase proferida quando do Verbd).

Ora, é esse o cerne dos resultados dos esforços da Oubapo. 

Depois de Journal Directeur, uma experiência de 5 artistas em que partiram da realidade material de um jornal específico (uma edição do Le Libération) para dele libertarem peças de banda desenhada, que consequentemente poderiam ou não ser lidos como comentários sobre a realidade social a que diziam respeito e da qual emergiram, este outro volume tem uma qualidade mais programática, uma vez que nasce de uma maneira mais organizada de pensar os seus exercícios. Étienne Lécroart, a partir mas desviando-se do primeiro “Bouquet de contraintes” com que Thierry Groensteen tentara organizar e sistematizar os jogos possíveis da Oubapo (publicadas em Oupus 1, e bebendo de experiências extra-oubapianas um pouco por toda a história da banda desenhada), apresenta aqui uma “Tabela aproximativa de limitações”, que tanto agrega experiências passadas individualmente como outras que depois foram tentadas e conquistadas por um exército de autores. Essa tabela, apresentada sob a forma figurativa de uma árvore, tanto organiza os exercícios “originais” como o balanço “histórico”. Este volume, na verdade, é apenas uma selecção dessa nova produção, mas nas suas mais de 200 páginas, encontraremos muitos e diversos trabalhos de Killoffer, Alex Baladi, Andréas Kündig, Jochen Gerner, Lewis Trondheim, Anne Baraou, Étienne Lécroart, Jean-Christophe Menu, Matt Madden, Ibn Al Rabin, François Ayroles, e Gilles Ciment, quase todos eles apresentando exercícios específicos, inéditos ou não, em colaboração ou individuais, nascidos de encontros ou de decisões e pesquisas solitárias.

Além desta nova lavra, o volume apresenta ainda uma pequena história do movimento, contada de forma oblíqua, claro, e outros documentos de apoio e informação. A parte final, de uma grande importância mas projecto impossível de finalizar, é uma pesquisa sistemática de formas “oubapiannas” fora do movimento em si. “Plágios”, enfim, se bem que não somente “por antecipação”. Vasculhando por entre a produção de banda desenhada dos últimos (dez?) anos, o dossier preparado por Lécroart e Madden sublinha aqui experiências de alguns suspeitos do costume, como Chris Ware, Marc-Antoine Mathieu, Ruppert & Mulot, Jason Shiga, Richard McGuire mas igualmente autores tais como Ludovic Rio, Shintaro Kago, Rafael Coutinho, e Stéphane Blanquet, todos eles tendo provocado segmentos ou projectos inteiros que parecem ter nascido deste tipo de abordagem “pela forma”, apesar de não serem membros oficiais do movimento (sendo que um artista apenas se pode tornar membro por decisão do demais, sem que seja necessário ser informado antecipadamente). Desta forma, vemos igualmente uma perspectiva aberta, que abarca projectos extra-banda desenhada, ou passíveis de serem englobados, como as “Pictologias” de Matteo Civaschi e Gianmarco Milesi, e um número de fanzines ou livros-objecto. Um balanço lato, inteligente e provocador, gesto esse que faz sempre o cerne da importância deste projecto. 

Esta barrigada de exercícios poderá levar a uma certa indigestão, uma vez que a leitura por atacado de exercícios, nem sempre todos respeitando com exactidão as regras a que se propõe, ou levando a resultados menos brilhantes, ou apenas a preenchimentos dos papéis a que se predispõem, etc. pode levar a um certo cansaço. Mas o estímulo da Oubapo está para além (ou será aquém?) da leitura efectiva dos resultados. Está na própria ideia de acção, de provoca-acção. É a crise que trazem aos princípios supostamente essenciais da banda desenhada – a narratividade, a sequencialidade, a figuração, a coerência temática ou estilística, a teleologia do significado verbalizável, a própria noção de enunciado (se bem que, semioticamente, exista sempre), etc. – que torna este (e os outros volumes) em pasto teórico e prático e ontológico a esta arte.

Contudo, seria possível, houvesse oportunidade para ler cada exercício individual, erigir uma crítica da subsunção quase sempre assegurada de todo e qualquer exercício a legibilidades narrativas. Isto é, parece muitas vezes que o fantasma da narrativa tem de ser imposto em toda e qualquer estrutura, não havendo muito espaço para explorar outro tipo de estruturações formais. Salva-nos, todavia, Gerner, que com as suas “recradages” – isto é, reaproveitamentos de pormenores de vinhetas de certos clássicos da banda desenhada – cria redes de comparação imagética e composicional com toda uma história da arte, que inclui a pintura, o cinema e a literatura, mas acima de tudo prevendo outro tipo de “leituras” desta mesma disciplina.

Como os próprios editores-autores pretendem, as “peças” advindas da experiência Oubapo não é tão-somente um produto derivado da banda desenhada, como o seriam t-shirts, tote bags ou lancheiras ou até mesmo cartas de jogar. Noutro contexto, é possível que a fabricação de cartas de jogar, dominós e dados com as figuras de personagens retiradas de projectos de banda desenhada fossem apenas produtos laterais, derivados, de exploração comercial. Mas o que os autores da Oubapo tentam cumprir é uma experiência de expansão de estruturação material da própria banda desenhada através desses novos formatos ou meios. Assim sendo, os dados (Coquetèle), o dominó (Domipo) e até mesmo uma espécie de Scrabble (Scroubabble) devem ser vistos enquanto exemplos de banda desenhada “expandida”. Como escreve Côme Martin, estes objectos acabam por participar de ambas as naturezas – banda desenhada propriamente dita e produto derivado – se bem que possam trazer crises ao “prazer lúdico da leitura”, assegurado em qualquer texto, oubapiano ou não. Mantendo-se no papel, todas as peças deste novo volume da Oupus (alguns, na verdade, escapam de vários modos) fazem abrir possíveis caminhos desse desenvolvimento. A imitar, portanto. 

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