24 de novembro de 2016

Outro Mundo Ultra Tumba. Rodolfo Mariano (auto-edição)

Apesar de não conter uma lombada, este volume de mais de quarenta páginas, todas elas ocupadas por matéria gráfica-narrativa, constitui-se um verdadeiro álbum, apresentando uma narrativa organizada em torno de um só núcleo. Conforme havia sido prometido em As Crónicas da Cemitéria, há todo um universo de referências que é repetido, como se o autor trabalhasse sob a noção de “tema-e-repetição”, ou algo que equivalesse à metáfora de melodias sobre um tema. De novo vemos o regresso da figura antropomórfica da morte, ora sob a imagem de uma encapuzada de gadanha ora sob a de uma caveira, guitarras clássicas, espadas, ampulhetas e garrafas falantes, e personagens advindas de um caldo genérico de high fantasy e sword & sorcery: guerreiros cimérios, princesas sedutoras, druidas, criaturas maléficas, corvos, e acrescentando-se a este bestiário criaturas do espaço, como Chewbaccas ferozes. (Mais) 
 As conversas entre esses tais objectos abrem espaço a que a caveira partilhe histórias antigas com os companheiros de horas perdidas, e são essas histórias-dentro-da-história que ocupam a parte de leão da narrativa, numa estrutura clássica. A primeira é de natureza trágica, entre um baladeiro mágico e a sua amante, e a outra mais cómica, sobre uma alma aprisionada no corpo de um rouxinol, mas sempre bebendo de um mesmo substrato. O que é curioso é que, mesmo nestas fórmulas que parecem genéricas e apresentadas de modo rápido e sumário, Rudolfo Mariano acaba por criar uma curiosa mitologia, densa, senão mesmo um apanhado de uma matéria que poderíamos imaginar como sendo passível de desdobramento em múltiplos volumes. Se bem que crie redes de ligação quer com mitos cristãos (a queda dos anjos rebeldes e a criação do abismo) quer com histórias mais ou menos reconhecíveis (desde Tolkien à Marvel), Outro mundo acaba por erigir um universo muito particular. Tendo em conta ainda que estas personagens que emolduram as narrativas são recorrentes nos trabalhos de Mariano (em trabalhos publicados noutros locais e mesmo online), acreditamos que a longo prazo estejamos perante um verdadeiro monumento de worldbuilding.

Visualmente, estamos perante uma aturada e paciente monumentalidade, de facto, em que o horror vacui opera como princípio, não havendo canto onde não estejam presentes densas tramas ou jogos de linhas criando texturas, que tanto servirão para construir objectos sólidos (as paredes de granito dos castelos e montanhas, as nuvens pesadas no céu, os arranjos florais de relâmpagos) ou efeitos de moldura e decorativismo que são tão simbólicos como ambientais. As histórias surgem em páginas engalanadas de forma paciente e específica, trazendo uma certa onda de Arts & Crafts ou à la Ivan Bilibin, pós-metal, porém.

Em termos textuais, o autor também cria situações deliciosas, encontrando um estranho equilíbrio entre uma linguagem dramática, épica e formulaica, como se espera deste tipo de aventuras e géneros, e uma abordagem mais descontraída, como se de facto se tratasse de um contador de histórias amistoso falando com um público à mão de semear.

Apesar do seu aparente universo contido, em torno do terror, do heavy metal, do épico sci-fi/high-fantasy, a verdade é que o autor demonstra que haverá espaço para um desenvolvimento muito curioso e quase universal de histórias comoventes, divertidas e tremendas com estas suas personagens. E seja dos cantos mais afastados do universo ou dos abismos mais profundos dos avernos, todas elas partilham características que conheceremos bem, ao redor de um fogo e de uma par de cervejas. 

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