6 de outubro de 2016

Colecção Novela Gráfica II. AAVV (Levoir)

Nota de intenções: tendo traduzido dois volumes desta colecção, assim como escrito o prólogo de dois outros, temos uma associação profissional a esta colecção.
Tendo terminado esta colecção, e não tendo tido oportunidade antes de falar sobre ela, esperamos que ainda sejam pertinentes estes comentários, uma vez que a colecção continuará disponível quer através da rede do Público quer, mais tarde, no mercado livreiro. As ideias apresentadas a propósito da primeira colecção são ainda válidas para esta segunda. Compreendendo-se que o mundo editorial em Portugal, no que diz respeito à banda desenhada, ainda não se encontra num estado óptimo, sobretudo no que diz respeito à sua recepção e circulação, a aposta em apresentar de rompão toda uma série de títulos é uma estratégia válida. De certa forma, é mesmo uma maneira de revalidar alguma da sua história, aumentar exponencialmente os títulos disponíveis de entre os “clássicos”, os “desconhecidos” e os “contemporâneos”, e, de resto, trazer algum grau de diversidade à sua maneira. Não sendo possível esquecermos os gestos, tão diferentes mas sustentados e programáticos, de editoras como a Polvo, a Chili Com Carne e a Kingpin Books, selos mais pequenos mas também buscando coerências várias, como a El Pep, o Clube do Inferno, a Libri Impressi, os projectos comerciais sólidos da Devir, da Goody e da G.Floy, os gestos mais ou menos isolados de editoras generalistas com apostas na banda desenhada nacional e internacional (Bertrand, Parceria A. M. Pereira, Tinta da China, Teorema, Gradiva, etc.), a paisagem é suficientemente variada para albergar e acomodar os propósitos destes projectos da Levoir. (Mais)

Por comparação à primeira colecção, poder-se-á dizer que há um peso menor no que diz respeito à impressão de conjunto, já que na colecção anterior, apenas um volume, dos doze, parecia escapar à ideia de “autores famosos e historicamente importantes” (o de Beyruth, que remetia até para um universo de referências ausente em Portugal que a Polvo tem tentado corrigir com a sua colecção de autores brasileiros). Mas a configuração desta segunda colecção pauta-se por outras linhas. Dos quinze volumes desta segunda leva, temos uma distribuição distinta. Se definirmos “clássicos” como livros que já apresentam uma distância histórica considerável e tiveram um papel fundamental e influente no que se seguiria no seu campo, restrito ou não, temos acesso a X livros dessa natureza: V de Vingança, as histórias de Valentina, a Garagem Hermética, Fogos e Murmúrio e Exércitos do Conquistador. Se considerarmos que esta colecção pode também providenciar-nos acesso a livros muito recentes, estreando-os no mercado nacional, então A asa quebrada e Presas fáceis são bem-vindas. Um outro papel que poderá desempenhar é o de dar a conhecer autores ou obras que não são particularmente conhecidas entre o público português. É nesse campo que os livros de Zeina Abirached, de Baker e Zezelj, de Barreiro e Risso são algo surpreendentes. E há depois um esforço em dar a conhecer livros com algum sucesso internacional, nos seus vários momentos históricos, e que seguramente encontrarão o seu alargado e variado público, acrescentando-se assim as referências aos veteranos Joe Kubert e Bryan Talbot, o celebrado autor espanhol Paco Roca, os gémeos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá e o repetente Jiro Taniguchi. Se a diversidade de género não é ainda a desejável, em termos geográficos temos alguma diversidade, assim como termos geracionais e seguramente que em termos de género e de humor e estilo.

Sobre os processos de escolha e a forma como esta é balizada quer por limitações físicas, financeiras e legais quer por parâmetros editoriais, falámos alargadamente, pelo que reiteramos a ideia de que nos parece um exercício algo fútil em exercer fantasias de selecções hipotéticas ou alternativas. É certo que olhando para esta selecção, poderá até surgir uma certa ideia de “conforto” em termos físicos e temáticos, mas não convém deixar de ter em mente os princípios materialistas necessários, sejam os que têm a ver com a materialidade dos livros (e a possibilidade de não ultrapassarem um preço médio e a de serem distribuídos com um diário) sejam os que têm a ver com o retorno financeiro. Gostaríamos de ver A saga de Xam publicada entre nós? Claro que sim. Neste veículo? Seria ridículo.

Dito isto, e sendo-nos difícil escrever alargadamente sobre cada título, repetiremos o exercício de pequenas notas sobre cada volume, esperando ser o suficiente para os nossos leitores, mas remetendo para textos mais alargados, tecidos quando das publicações originais. A ordem é meramente alfabética dos autores.

V de Vingança. Alan Moore e David Lloyd. Tal qual a colecção anterior, ela é iniciada com um livro que, não sendo consensual na sua recepção, teve um papel indubitavelmente fundamental na forma como alteraria o entendimento das potencialidades temáticas da banda desenhada a uma escala alargada. Com uma forma de produção algo atabalhoada, iniciada na revista Warrior no auge do Thatcherismo, V for Vendetta poderá ser descrito como uma fantasia anarco-romântica de vingança contra os maiores abusos político-económicos do regime liberalista britânico da sua época, que lançara uma grande parte da população para situações desesperantes. Alan Moore, que começava os seus primeiros passos como um escritor capaz de entrosar os princípios genéricos da banda desenhada juvenil escapista com preocupações realistas e associadas de modo directo ao mundo que o rodeava, vai avançando, não sem titubeações, na sua exploração do que se consegue fazer com a banda desenhada fantasiosa em relação a essa mesma realidade. Se toda e qualquer produção de cultura, popular ou erudita, está imbuída em ideologia, e para mais, a popular gosta muitas vezes de disfarçar a sua ideologia afirmando estar fora dela, Moore pura e simplesmente torna a ideologia de V o mais clara possível (patente nas longas tiradas, discursos e maiêutica com Evey), de forma a explicitar o caminho para a destruição da distopia do seu mundo diegético. Com efeito, essa destruição chega, mas sem que se apresente o reverso utópico, ou se enraíze qualquer “solução”, o que torna este livro numa espécie de espelho que os leitores da sua época deveriam levantar aos seus próprios rostos. Como todos os espelhos, porém, ele funciona igualmente para os tempos futuros. Para mais comentários nossos sobre a obra, ver aqui. (A tradução deste livro foi feita por nós).

A asa quebrada. Antonio Altarriba. Tendo escrito o prólogo para este livro, é nele que elaboramos uma mais densa rede de considerações sobre a relação entre o acto de memória do escritor, Altarriba, e a forma como um livro pode servir a um só tempo de exercício de recuperação, homenagem e redenção de uma culpa. Se A arte de voar era “o livro do pai”, também acrescentamos, Altarriba perfaz um gesto idêntico ao de Bechdel em Fun Home Are You My Mother? ao criar consequentemente “o livro da mãe”, que até certo ponto complementa, corrige e fecha o anterior. São livros que têm de ser lidos em conjunto, por mais diversa que seja a natureza de ambos, não somente por criar uma malha de uma mesma família, mas porque revelam facetas diferentes da mesma (?) História de Espanha. É curioso notar igualmente como, não se tendo alterado os instrumentos estruturais, visuais e figurativos de Kim, como não se alterou o lavrar da palavra de Altarriba, o seu propósito se altere profundamente pelo humor e espírito da obra, em A asa quebrada de um modo apenas à superfície tranquilo mas mal contendo a tormenta psicológica que moldou a vida da mãe do autor.

A história de um rato mau. Bryan Talbot. À distância de mais de vinte anos, e depois da publicação, posterior, de obras por autoras tais como Lynda Barry, Phoebe Gloeckner e Debbie Dreschler, que abordam o mesmo tema de forma autobiográfica, directa, crua e subtil, poderá parecer algo deslocado que um autor britânico, homem, crie uma história sobre uma vítima de abusos contínuos sexuais incestuosos, e numa narrativa algo concentrada em que a resolução esteja acessível e acabada. O trauma surge perfeitamente identificado, de contornos mais ou menos domesticados, e a protagonista, Helen, consegue conquistar a sua ultrapassagem. À luz dos estudos do trauma, e até mesmo a ficções ou projectos autobiográficos na banda desenhada consequentes, poderá parece-nos então que a ficção de Talbot é demasiado arrumada e elegante em termos narrativos e dramáticos. Mas como o próprio autor recorda no posfácio, estávamos ainda longe de um panorama em que a banda desenhada mainstream tratasse precisamente destes temas de uma maneira que não criasse uma distância tremenda em relação ao que “deveria ser” a banda desenhada. O entrosamento da ficção em torno da vida e obra de Beatrix Potter torna todo o projecto num exercício intertextual digno de nota, e o próprio processo de construção da intriga e da matéria visual, se poderá apresentar algum ou outro desequilíbrio, é ainda assim notável pela sua tentativa ética de ancorar a sua existência na mais palpável das realidades. Um livro que, apesar da sua elegância de resolução, apresenta aspectos difíceis, A história de um rato mau não deixa de confirmar um princípio psicológico profundo, a de que fantasia não é tão-somente um escapismo e defesa negativo, mas antes uma plataforma que reforça a personalidade e permite a esta enfrentar e construir a própria realidade. (A tradução deste livro foi feita por nós).

Daytripper. Gabriel Bá e Fábio Moon. Tendo escrito sobejamente sobre este livro quando da sua edição original, a esse texto remetemos. Apesar da qualidade sentimentalista algo desusada do volume, que o torna aparentado a um desses romances contemporâneos nos escaparates, ele tem lugar nessa circulação que pretende ver a “novela gráfica” ou o “romance gráfico” como a confirmação dos mesmos problemáticos patamares confortáveis.

Valentina. Guido Crepax. Um volume que coleccionasse todas as histórias desta personagem seria incomportável, além de que teria de englobar igualmente material narrativo que não a tinha como protagonista mas lhe havia dado origem. Assim sendo, e no seguimento dos esforços, que contaram com a colaboração de Manuel Espírito Santo, que levariam à edição em curso pela Fantagraphics, este volume reúne um conjunto de histórias que poderá servir de excelente introdução a novos autores daquela personagem que mais colocaria Guido Crepax num mapa de inovadores da banda desenhada europeia no final dos anos 1960. Uma das vantagens deste volume estar integrado neste grupo de títulos é a forma como evita, tal como experiências anteriores da publicação do autor italiano em Portugal, de o subsumir ou reduzir a um “autor erótico”. Não se pode negar essa dimensão, naturalmente, mas se Milo Manara ou Magnus, para nos atermos à banda desenhada moderna italiana, são autores que têm excepções magníficas e celebradas na sua obra mas poderão ser descritos como nomes que criaram a sua fama pelo erótico, ou se Serpieri e quejandos não escaparam jamais de uma mediocridade a ela reduzida, Crepax deve ser pautado pela sua inventabilidade gráfica, a sua capacidade de reestruturar as formas de pensar a organização de uma página e do tempo da narrativa, enfim, como alguém que pensou de forma intensa a própria labuta da banda desenhada. Além do mais, o erotismo de Crepax, ao contrário de todos esses autores, está na senda intelectual, libertina e politicamente progressiva de um Bataille ou Klossowski, mesmo que a matéria narrativa se atenha a clássicos do libertinismo como Sade, Sacher-Masoch ou Desclos. Se não perde a qualidade de “um objecto de desejo”, Valentina reforça esse papel pela sua capacidade máxima de “sujeito”.

Exércitos do conquistador. Jean-Pierre Dionnet e Jean-Claude Gal. No início de 1975 tinha início em França uma das revistas fundamentais da modernidade da banda desenhada naquele país, mas também além-fronteiras, a Métal Hurlant. Fundada por Jean-Pierre Dionnet, argumentista e crítico de banda desenhada, e logo apoiado pelos artistas Moebius e Druillet, este pequeno grupo editorial que faria o primeiro corpo da Les Humanoïdes Associés tinha acima de tudo o desejo de explorar o género da ficção científica, mas como ele estava a ser entendido naquela década, quer em termos literários (Ballard, Herbert, Moorcock) quer cinematográficos (Kubrick, Godard, Marker, Rilla) quer mesmo na banda desenhada, na era pós-Losfeld (Barbarella, A Saga de Xam, Pravda, etc.). De uma forma livre de limitações de tamanho, instrumentos expressivos ou abordagens estilísticas, a revista pretendia trazer temas “maduros” (leia-se, muitas vezes, sexo e drogas), mas também a possibilidade de fazer outros cruzamentos. É precisamente nesse sentido que este volume, que mais tarde faria parte da série Epopeias Fantásticas, se alia ao género conhecido por sword and sorcery, mas para explorar contornos bem distintos daqueles de um Conan ou Kull. De facto, o mundo diegético em torno do herói Arn é uma espécie de mundo primitivo à la Ciméria do famoso personagem de Howard, em que as espadas, os cavalos, as altas torres de pedra, as ocultas cavernas sombrias e a magia negra são os ingredientes que o povoam. Mas alimentado por toda o conhecimento da literatura contemporânea da sua época, o desencanto e cinismo europeu tintam esses mundos de fantasia com uma melancolia e pessimismo que impede compulsar estas páginas somente na busca de uma saga épica e heróica. Os desenhos de Gal, mais devedores à escola dos grandes ilustradores naturalistas norte-americanos que as linhas estilizadas dos seus colegas franceses, são de uma aturada e rendilhada obsessão pelo pormenor (mais salientada pelo preto-e-branco original que as cores que suavizam os contrastes), criando densas texturas de sombras e objectualidade nas suas imagens, capazes de ombrear as fantasias de um Buscema, com os quais partilharia o gosto pelas posições dinâmicas, teatrais e anatomicamente correctas e pela fantasia de capa e espada.

Terra de Sonho. Jiro Taniguchi. Antologia de relatos curtos, os quatro primeiros relacionáveis até certo ponto pela coincidência de personagens, também havíamos escrito sobre este livro na sua edição francesa, assim como o prólogo para este volume. Se bem que mais disperso, como é de esperar, em termos temáticos ou de acção, Taniguchi revela aqui a sua conhecida capacidade de observação daqueles aspectos quase inócuos e invisíveis à visão mais distraída. Mais, é aqui mesmo que ele treinou essa observação e prática, de uma mangá que coloca quase em suspenso a ideia de intriga e caminho para a resolução narrativa, do que a ambientação e o crescimento interno das personagens (emotivo, cognitivo, intelectual, religioso até), providenciado pela rede interrelacional que estabelecem. Irmanando-o com autores como Cosey ou Comès, em que os não-ditos acabam por ganhar um peso considerável nesse crescimento, reiterar o nome de Taniguchi não pode ser visto como uma “repetição”, mas antes como um acesso coerente a um autor importante.

Fax de Sarajevo. Joe Kubert. Kubert é um autor celebrado, entre outros géneros, pelas suas bandas desenhadas de guerra, com Sgt. Rock à cabeça. Mas estamos longe de um autor que, como Harvey Kurtzman ou Oesterheld e Breccia, décadas antes, haviam explorado o lado humano, falho, fraco e até mesquinho dos envolvidos na guerra, sejam eles descritíveis como “agressores” ou “agredidos”. Bem pelo contrário, foi sempre seu território a heroicidade dos seus protagonistas, mesmo quando quis revelar facetas menos positivas. Este volume é uma sua tentativa em criar uma espécie de abordagem realista e até de reportagem, ao “traduzir” em imagens os relatos que o seu agente Ervin Rustemagic lhe enviava via fax, preso na cidade acossada pelo exército sérvio. Mas num panorama em que existia já o trabalho de Joe Sacco, e o próprio género do jornalismo em banda desenhada, em retrospectiva, se começava a formar, Kubert demonstra neste livro uma das vias pelas quais o desenvolvimento encontra imediatamente as suas limitações: afinal de contas, não se pode falar aqui de deontologia ou de verdade, uma vez que as distorções narrativas, figurativas e estilísticas de Kubert não fazem parte do instrumentário expectável e inevitável, mas antes das suas próprias fórmulas utorais, que nos lançam a géneros mais convencionais (pense-se no que faria posteriormente em Yossel). Relato por procuração, quase também nos poderia recordar o projecto de E. Guibert sobre as memórias e vivências de Alan Cope, mas onde a obra do autor francês suspendia o melodrama em nome de uma compreensão poética de um quotidiano, Kubert, como não pode deixar de ser, coloca o drama no centro do palco, por vezes mesmo quase até ao limite da suportabilidade da painxploitation.

Luna Park. Kevin Baker e Danijel Zezelj. Fãs de séries como Boardwalk Empire, Deadwood, The Sopranos encontrarão sobejas razões para apreciar a forma como Baker estrutura este romance. Por um lado, poder-se-ia dizer que Luna Park se constitui enquanto uma ficção historiográfica entrosada num denso thriller mas também um romance de amor melancólico e quase desesperado entre Alik Strelnikok e Marina. Por outro, há uma atenção particular para com um quotidiano quase trivial da classe criminosa de Coney Island, a máfia russa, e uma preocupação em assegurar que compreendemos a rede social que a sustenta e move. Mas estas duas faces – a espectacular e de género e a trivial – vai ser derrotada por uma outra ordem de realidade. Alik é visitado por traumas da guerra, ou diríamos antes, pelos crimes de guerra perpetrados por Alik na Chechénia, os quais se tornam uma camada que o vai cobrindo como um fantasma na consciência, e o vai colocando em territórios cada vez mais afastados da realidade. Através da droga, do álcool ou mesmo das fugas providenciadas pelos sonhos, Alik acede a uma espécie de memórias de outra vida, lançando a intriga para revisitações a vários momentos da história da humanidade, ora mais associado à cultura russa ora criando elos à ideia da eterna guerra. Lentamente, então, aquilo que parecia uma narrativa realista e gritty do crime urbano, em torno de questões como as da honra e lealdade, paixão nacional e amor carnal, responsabilidade e desejo, entra num campo de contornos em maior fluxo, entre a fantasia negra, o sobrenatural e o onírico. Uma comparação possível seria com a série Zero, escrita por Ales Kot e desenhada por uma pequena companhia de artistas. Tal como esta série, Luna Park tem um início que parece perfeitamente ancorado num género literário conciso, balizado e linear, para lenta mas seguramente penetrar territórios bem mais desarrumados, oníricos e livres, e que nem sempre mostram preocupações de re-naturalizar as suas fugas de sentido. Naturalmente, a arte entre o diáfano e o esfumado de Zezelj encontra-se aqui como o veículo perfeito para esta estrutura de fronteiras móveis e dúbias, quase opiácea. Na edição original, as cores ocres e plúmbeas de Dave Stewart eram raramente visitadas por um débil azul eléctrico ou o vermelho do sangue, que assinalavam os choques da memória assaltada do protagonista. Aqui, estando apenas a preto-e-branco, sublinham a qualidade de aço do artista croata.

Fogos e Murmúrio. Mattotti e Kramsky. Este volume reúne dois livros que, quando foram publicados, foram de um impacto significativo. Graças à revista brasileira Animal, muitos dos leitores portugueses tiveram acesso a toda uma geração de autores italianos dos anos 1980, inclusive este autor que se parecia abandonar a fabulosos devaneios cromáticos e abordagens pictóricas a pastel e pincel, quase sem preocupações em fomentar uma consolidação naturalista. Há claramente um trabalho que tira partido da deambulação gráfica, mais do que da planificação narrativa. Aliado ao seu companheiro e escritor Kramsky, com quem formara toda uma série de relatos curtos tão absurdos e oníricos quanto intrigantes, tece em Murmúrio uma história maior, mas pautada pelos mesmos elos desobrigados e num processo próximo àquela da Garagem Hermética de Moebius. Falar de história de amor é uma possibilidade, mas de exploração fantasmagórica é outra, em que personagens mágicas, misteriosas e simbólicas criam, como sempre, uma mais-valia que, mesmo que a leitura linear não pareça revelar um sentido, trará uma forma holística final. Já Fogos, trabalho a solo e anterior, e possivelmente o título que construiu o nome do autor italiano, apresenta-se como uma novela mais coesa, e até linear, em torno de um oficial militar que “goes native” numa misteriosa ilha, parente daquela de Próspero, “cheia de ruídos”. Dizemos linear se nos atermos, claro, aos “eventos” recontáveis numa sinopse. Mas Fogos não pede isso, antes quer que tenhamos atenção às formas sinuosas como esses tais ruídos, vozes, reflexos, brilhos, e trevas se insinuam no espírito do marinheiro Absinthe e lho abrem para uma outra realidade que não a da vigília. Novela iniciática tanto para o personagem quanto para o leitor, esta é uma oportunidade única para conhecer um dos ditos mestres da cor directa (se bem que não nos devemos esquecer do seu barroco trabalho de linhas finas, como O homem à janela, que por cá saiu pela Fenda no final dos anos 1990).

Presas Fáceis. Miguelanxo Prado. O título é estimulante porque é desde logo paradoxal. Tratando-se de uma novela policial com vítimas e vilões, a primeira pergunta que se nos coloca é quem serão as “presas”? Se num primeiro momento se responderia se tratarem das vítimas dos assassinatos, rapidamente os papéis invertem-se e passamos a reconsiderar a que tipo de “facilidade” diz respeito o título. Ainda que afastado do humor cáustico do primeiro absurdo que deu nome a Prado, mas igualmente distante de um certo ambiente delicodoce das suas últimas obras – portanto fortalecido por um uso sóbrio de uma figuração sólida e um preto e branco discreto - , o autor galego cria aqui talvez a sua obra mais realista, no sentido de criar efeitos de referencialidade directa com o seu contexto nacional e contemporâneo, tecendo uma história em torno dos muitos idosos que perderam as economias de uma vida, inclusive as pensões, em nome das negociatas dos bancos em aplicações tóxicas (algo comum em Portugal ao conhecido caso dos “lesados do BES”). Não deixando de ser uma moralista novela de vingança, o autor coloca no palco uma fantasia que muitas vezes, provavelmente, alimentamos nas horas de vigília ou em comentários inpensados e passionais quando somos confrontados com essas notícias. Quase totalmente relatado da perspectiva dos dois policiais que estão a tratar do caso das misteriosas mortes de vários funcionários de bancos espanhóis, mas com pequenas desarrumações, Presas fáceis acaba por ser menos um “whodunnit” do que uma interrogação do nosso posicionamento moral face à situação, ao crime e à pena. Por isso, em relação a esta última, a irresolução é a única resposta.

A Garagem Hermética. Moebius. Iniciada nas páginas dos primeiros números da mítica revista Métal Hurlant, um autor que por esta altura procurava desfazer-se da sua pele de “desenhador de westerns”, a de “Jean Giraud”, encontrava numa ficção científica livre e psicadélica (Arzach) o caminho para a sua reinvenção autoral, enquanto Moebius. Ora “A garagem hermética” começou o seu caminho como um mero exercício de descompressão, de escrita ao acaso, com o autor a criar uma nova página sem ideia do que havia feito no mês anterior e deixando a responsabilidade da criação de uma teleologia narrativa ao leitor. Todavia, rapidamente nos apercebemos que o autor começa a domesticar as personagens lançadas para o movimento meramente mecânico da trama, e começam a surgir muitos dos ingredientes que vão compor a carreira futura do autor, quer a solo quer em companhia de escritores (acima de tudo a saga do Incal, com Jodorowsky). Um número quase incomportável de personagens, alterações das inscrições das personagens nos campos dos “heróis” ou dos “antagonistas”, substratos simbólico-religiosos sob uma patina de tecnologias avançadas, conceitos místicos alucinados, ligações secretas ao nosso mundo real, e citações a outros universos diegéticos (como a apropriação de Jerry Cornelius). Surpreendentemente, é precisamente a descoberta de que o “herói” é o Major Grubert que faz girar todo o valor da narrativa, muito tempo antes dos exercícios que, mais tarde, no cinema, “revelam” que toda a história que testemunháramos era um truque ou distorção de percepção. A garagem torna-se assim, em termo históricos, uma espécie de espelho que demonstrava a possibilidade aos autores de se libertarem de propostas narrativas lineares ou lógicas, ainda que seja ela mesma algo domesticada.

Inverno do Desenhador. Paco Roca. Tendo escrito igualmente de forma alargada sobre este livro na sua edição espanhola, remetemos os leitores a essas considerações. Acrescentemos apenas que, haja sucesso com os autores espanhóis desta colecção, que isto possa ser um incentivo à tradução e entrada da produção de banda desenhada contemporânea (ou moderna) espanhola (e galega, e catalã, e valenciana, etc.) entre nós, um pouco à semelhança da Polvo em relação à produção brasileira.

Parque Chas. Ricardo Barreiro e Eduardo Risso. Este livro terá sido eleito seguramente por ser um das primeiras prestações que colocariam o nome de Eduardo Risso no radar da atenção dos leitores de banda desenhada. Se bem que ele tenha assegurada uma comunidade de fãs pelo seu mais contemporâneo estilo de uma abordagem em altos contrastes expressivos (recordemos Eu, Vampiro, publicado em Portugal) mas a nosso ver significativamente inferiores aos dos seus mestres),é curioso vê-lo aqui a trabalhar num registo mais naturalista, vincado pelo uso de gradientes fotorealistas com a grafite para esculpir corpos entre o anatomicamente correctas e já uma pequena fuga por uma estilização melodramática. Em larga medida, recordará também um primeiro Liberatore, ou até um Manara do tempo de Giuseppe Bergman, ou até de um Solano López. Se citamos Manara e López, não é por acaso, já que o Eternauta, Bergman e ainda Corto Maltese surgem em cameos fantásticos, que justificam a própria teia criada pela narrativa (e que influi uma camada metatextual digna de um Gaiman ou Morrison). Parque Chas é o nome de um bairro real de Buenos Aires, o qual, pelas suas características urbanísticas, lhe tem criado a fama de labiríntico. Ora, o protagonista é uma espécie de armchair detective, e habita estes contos curtos agregados entre si pela demanda central, de uma forma quase sempre delegada. Interessado pelas histórias estranhas, à la Quinta Dimensão, mas tocando outras esferas genéricas também, que passaram e se passam no bairro, vai escutando várias pessoas num café local, dando-nos a nós acesso visual a esses relatos. Todos os quais permitem sempre, como é expectável, uma leitura de cariz sócio-político. Mas aos poucos vamos compreendendo a existências de personagens recorrentes, que vão criando a ideia de uma teia mais centralizada, e na qual o protagonista se torna com efeito o personagem principal em termos de acção. A intriga principal tem uma espécie de fim suspenso que funcionaria melhor para aumentar a ambivalência, sustentada, de todas as histórias, mas é seguida por uma coda, um episódio maior, que tenta criar um fecho absoluto, e que muito sinceramente piora a qualidade da escrita e da natureza do resto do livro. Quase apeteceria (como tantos outros projectos “revisitados” mais tarde pelos seus autores, como ocorre igualmente em “glórias antigas” da música, talvez) que não tivesse existido essa revisitação. Ainda assim, nesse primeiro sentido, a estrutura narrativa recorda aquela que o próprio Risso seguiria em 100 Bullets: histórias aparentemente singulares revelar-se-iam depois parte de uma trama como um todo. Uma estrutura algo clássica em alguns casos da cultura popular, uma fórmula quase sempre empolgante e recompensadora aos leitores aturados, e que não deixa de tornar este volume numa adição excelente à biblioteca acessível em português.



A Dança das Andorinhas. Zeina Abirached. É bem possível que possamos descrever desta autora como uma pálida imitação da força política de Satrapi, como já havíamos aventado a propósito do seu último livro emfrancês. Não sendo o primeiro, este é, porém, o livro que a colocou no mapa. E se terá sido colocado a circular na esteira do espaço estreado pela famosa autora iraniana, como se tivesse aberto uma categoria que agora importava preencher comercialmente (e isso não é de todo descabido), não quer isso significar que as especificidades expressivas e temáticas de Abirached devam ser sistemática e totalmente pautadas à sombra de Satrapi. Enquanto autobiografia, é natural que se revista de traços idiossincráticos, que importa descobrir, quer na voz quer na prestação gráfica (um tanto ou quanto mais assinalada por decorativismos). Como já havíamos dito nessa outra ocasião, há uma maior candura, decerto, neste livro do que em Persepolis, evitando-se os contornos políticos de forma mais directa. Se bem que falar da Guerra do Líbano não poderá jamais ser inocentado de um posicionamento político. Mas A Dança das Andorinhas é um livro concentrado, afinal: um só dia, um só edifício. À la A vida, modo de usar, mas sem a densidade oulipiana, trata-se de um passeio por perspectivas e consciências que burilam uma imagem multifacetada face aos mesmos acontecimentos, e demonstram como as alianças quotidianas podem servir de antídoto ao desespero, em que a solidariedade das emoções servem de escudo efectivo à impressão da criança protagonista.

Sem comentários: