27 de setembro de 2016

Afrodite, quadrinhos eróticos. Alice Ruiz, Paulo Leminski et al. (Veneta)

Esta é uma antologia de várias histórias curtas que foram criadas ao longo dos últimos anos da década de 1970, no Brasil, numa série de revistas mais ou menos irmanadas num mesmo selo editorial (a Grafipar, de Curitiba), e que haviam sido criadas por ímpeto e trabalho da dupla de argumentistas que se encontram na capa. Quer Ruiz e Leminski são respeitáveis escritores, poetas e agentes da cena intelectual brasileira do tempo da ditadura e, como oficiais da palavra, lavraram-na para as mais diversas disciplinas. Ora, é no seio da vida diária e alimentícia, digamos assim, que Ruiz se viu envolvida em algumas das novas revistas que pretendiam abrir novos caminhos feministas por entre as publicações da época. Por instância do autor Cláudio Seto, ogrande “samurai” dos quadrinhos brasileiros, Ruiz começou a escrever roteiros (eróticos e de terror para diversos projectos) para pequenas bandas desenhadas, sendo seguida pelo seu companheiro e vida e letras, Leminski, nessa tarefa. (Mais) 

É portanto em títulos como Rose, Maria Erótica, Neuros, e Aventuras de Quadrinhos que vão surgindo pequenas histórias de 3, 4 ou por vezes mesmo 7 páginas, das mais diversas naturezas. Esta colecção, prefaciada pela própria Alice Ruiz, explicando em larga medida o contexto assinalado acima, foca sobretudo em todo aquele material que pode ser, como o é, descrito como “erótico”. Esta última palavra não pode ser entendida somente como pretendendo dar conta de histórias titilantes cujo objectivo seria a excitação carnal do leitor, se bem que esse factor está sempre presente, ora por representações de sexo, ora pelos belos corpos desnudos de algumas personagens, mas por vezes também por colocar o sexo e a nudez ao serviço de outros efeitos ulteriores, ao se cruzaram com outros géneros literários, nomeadamente o do terror, da ficção científica, e sempre, ou quase sempre, roçando outros temas mais abrangentes, desde a ecologia, o feminismo e a crueldade humana.

Com efeito, algumas das histórias pouco teriam de erótico, já que terminam em choques inesperados, quase sempre mostrando dever algo de estrutural às fórmulas destiladas até à perfeição pela EC Comics na década de 1950 e que pautariam quase toda a produção de “shockers” nas décadas vindouras um pouco por todo o lado.

Apesar de haver uma maior prestação de Ruiz do que de Leminski, estas 24 histórias revelam, a um só tempo, as afinidades entre ambos os autores mas também as suas diferenças. Leminski talvez demontre um maior humor negro nas suas histórias, quase sempre deixando as figuras femininas na mó de cima. A preocupação ecológica, por exemplo, é patente em duas histórias, uma delas com uns contornos filosóficos e poéticos que são particularmente comparáveis com o celebrado episódio “The Rite of Spring”, da saga de Swamp Thing de Alan Moore et al., a outra adiantando em muito certas fantasias em torno dos nativos do Amazonas e cruzando-os com uma ficção científica libertária muito em voga naquela década, quer nos Estados Unidos, França como Portugal e Brasil. Já Ruiz sublinha várias vezes o seu interesse numa espécie de pedagogia lúdica-erótica, ao introduzir muitas das figuras da mitologia greco-romana através de pequenas biografias em que os papéis dos deuses são sublinhados pelas suas qualidades eróticas, remetendo, sem dúvida, para o valor que esse conceito teria na filosofia platónica, por exemplo.

Sendo trabalhos de colaboração, não será surpreendente ver aqui uma verdadeira procissão de muitos artistas, alguns dos quais particularmente celebrados, como o já citado Seto, mas também Flávio Colin, Julio Shimamoto, ou o ilustrador Rodval Matias. Vemos também o que poderão ser os primeiros trabalhos de um Mozart Couto, a caminho da sua veemente arte à la Buscema. Infelizmente, existem algumas prestações menos felizes mesmo de alguns destes artistas, ou participações de outros artistas mais medíocres. No entanto, seria interessante analisar com cuidado as estratégias visuais e compositvas de cada qual, uma vez que existem vários momentos que “datando” o trabalho, não lhe retiram qualquer rigor ou maravilha.

Uma vez que a fonte das imagens não é, muito provavelmente (ou sempre) a arte original dos artistas, e tampouco os fotolitos empregues nas publicações da época, algumas das histórias sofrem uma reprodução menos sólida de fac-símile. Seto é um autor que tira partido da dupla página e, trabalhando num formato mais barato que permitia às pranchas “sangrarem” nas margens interiores, a sua transposição para um formato mais nobre, do livro, cria uma barreira visual mais alargada que não estaria prevista, mostrando, uma vez mais, como muitas vezes os formatos são parte intrínseca do acto criativo.

Dito isto, como sempre, os actos de recuperação de material visto como “secundário” para o novo modo de circulação “respeitável” da banda desenhada, são mais que bem-vindos, nem que seja para aumentar os conhecimentos dos leitores interessados e repor justiças históricas.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

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