4 de agosto de 2016

A vida oculta de Fernando Pessoa. André F. Morgado e Aleandre Leoni (Bicho Carpinteiro)

Ainda há pouco havíamos emergido de uma obra de longo fôlego que pretendia, de uma forma ou outra, devolver, pela e na banda desenhada, a vida e obra de Fernando Pessoa, na sua mais complexa estratificação, sem abdicar, no entanto dessa mesma complexa rede de travessias. Enfrentar a vida de um homem já é tarefa árdua, quanto mais a de tentar ainda responder, de alguma forma, com uma (só) forma, com distância, a sua obra literária. Sobretudo se ela própria é variegada e complexa. Há outros métodos, todavia, aparentados com o corte de Alexandre do nó górdio. A vida oculta de Fernando Pessoa é, de certo modo, o uso de uma célere e certeira lâmina nessa matéria vasta. (Mais) 

Este livro subsume toda a vida e mesmo a obra literária de Pessoa a uma aventura centralizada num género muito em voga. Descobrimos que Pessoa não é mais do que um fumador e caçador de zombies, e o qual tenta amenizar a mágoa de matar estas pessoas escrevendo, a cada passo mimando uma voz que corresponderia, em personalidade e nome, a essas mesmas vítimas de uma tarefa sem fim. Integrando numa hipotética sociedade secreta, o livro quer dar a entender que existirá um universo maior de referências fantásticas nas quais Pessoa é somente o protagonista deste volume, mas sem que essa rede se torne explícita, ou sequer segura.

No fundo, este Fernando Pessoa acaba por se inscrever naquele género a que Dog Mendonça & Pizzaboy pertencem, a da mistura entre o género do horror, um tratamento de aventuras adolescentes, jogos de citações que ganham uma dimensão anedótica e humorística, e uma qualquer dinâmica rápida. Porém, onde a obra de Filipe Melo tira partido de toda uma bateria de elementos consabidos e leves, criando uma opereta juvenil consistente no seu propósito de entretenimento e escapismo, Fernando Pessoa parece querer revestir-se de uma intenção mais grave, soturna e significativa para com a vida real do poeta e até mesmo a sua obra. O problema é se consegue atingir esse fim.

Quase todos os diálogos são tecidos utilizando citações dos escritos de Pessoa, com o cuidado de “atribuir” a cada personagem separada, como se os heterónimos correspondessem a pessoas reais, textos de proveniências específicas. Se há momentos em que as personagens parecem poder, num texto realista, tecer axiomas ou tiradas poéticas, tornando assim a poesia num tipo de discurso em que a prosódia e o ritmo escapariam a uma “representação diária”, a verdade é que os autores optam por utilizar os escritos de Pessoa como campo para colher toda e qualquer situação. Até mesmo quando uma personagem implora de joelhos pela vida, como é o caso de Álvaro de Campos, as palavras que lhe saem são as das composições poéticas.

Em termos de construção emocional, há igualmente alguns desequilíbrios. Fernando Pessoa, nem nenhum das outras personagens, é particularmente simpática e merecedora da preocupação dos leitores, e são bastos os momentos em que as relações entre as personagens não são exploradas de maneira a que compreendamos as atitude entre uns e outros, como a tal sociedade secreta e o próprio Pessoa, ou a necessidade que ele tem de matar os homens infectados, a razão pela qual acaba por simpatizar mais com um do que outro, e, a cena final, toda a relação com Ofélia, que menos do que “ambivalente” (uma virtude) é antes “vaga e incompleta” (um problema de estrutura narrativa, a nosso ver). Há como que episódios que ficaram por contar que poderiam ter providenciado a argamassa a ligar os episódios desconjuntos que se sucedem.

Assim, o divertimento da obra mantém-se, na sua permanente fuga para a frente com a anedota de termos um Pessoa caçador de zombies, mas rapidamente esse humor se dissipa na falta de uma estrutura mais sólida e que sustentasse um universo de referências mais marcante. Além disso, mesmo aceitando as regras do género popular, fica a sensação de que não vem iluminar particularmente uma hipótese diferente (e quão diferente!) de ler Pessoa.

O desenho de Alexandre Leoni é de uma abordagem entre o legível gráfico, o desenho de animação digital e a modelação 3D. Os instrumentos de expressão são relativamente simples mas suficientemente claros, e revelam, pelo menos, um bom sentido de caracterização de personagens, na noção mais clássica de design em territórios de gaming, por exemplo. Mas a composição de página relativamente simplista, a gestão enfraquecida das acções entre si, o que dificulta mais claras relações entre essas acções, e a escolha de colorir tudo sob uma densa pátina escurecida que ainda dificulta mais a visualidade geral (problemas muito semelhantes aos que ocorrem em relação a Os Vampiros, na verdade, até no uso de fundos negros e a fraca distinção entre cenas diurnas e nocturnas), torna o conjunto menos feliz do que poderia ser.

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