5 de julho de 2016

Guadalupe. Angélia Freitas e Odyr (Polvo)

Dividido em cinco capítulos, com mini-capítulos extra, Guadalupe centra-se numa road trip da protagonista homónima, que viaja deste a Cidade do México até a Oaxaca, para sul, para enterrar a sua velhota avó Elvira, viajando com o seu tio Minerva. Mas como esse mesmo género pretende, o que se cria é uma circunstância de focalização constrita em termos de espaço (paradoxalmente) e de tempo (linear) para que nos foquemos sobretudo nas dinâmicas mutantes entre as personagens ao longo do evento-motivo, e como elas se formam por factores externos. (Mais)

A organização da narrativa é muito simples e até cândida, sendo este um pequeno relato centrado, e não distendido. Se a intriga lança mão de uma acção que abarca um longo trajecto e uma história que remonta a décadas, é para melhor se rebater na contemporaneidade, e ver aí uma resolução de crises passadas numa felicidade apenas hoje possível. Se bem que não haja propriamente uma exploração melodramática do que “não era possível”, para tecer diatribes ou elogios à sociedade em geral, não deixa de se poder ver Guadalupe como uma espécie de grito de Ipiranga mais fácil de dar nos nossos tempos.

Como não podia deixar de ser, questões de sexualidade e de sexo (ou género sexual) estão na linha da frente do livro. Não cremos que o facto da argumentista ser uma mulher seja facto suficiente ou explicativo de uma qualquer atenção particular, mas é sem dúvida um factor a ter em conta numa história com uma protagonista feminina que tenta cumprir uma promessa que fez a outra figura feminina na sua vida, e foi educada por um crossdresser (se é que podemos usar este vocábulo de forma “neutra”), o qual trabalhara num clube nocturno em que fazia espectáculos vestido de mulher, e aparenta ser homossexual [seria possível uma leitura paralela com o tio Gabriel de Zazie no metro?], antes de abrir a sua libraria ambulante. Para mais, a própria homossexualidade latente da personagem mais velha abre então a discussão da expressividade tornada possível numa sociedade contemporânea, lá onde ao valor da tradição e da religião criava escolhos ou obstáculos por vezes mortíferos (se ainda não são hoje realidade).

Ainda assim, os autores não tornam a sua narrativa numa tirada documental ou programática. Não estão interessados em criar um contraste jornalístico entre realidades – expressividade sexual livre da parte de uns indivíduos contra o conservadorismo de outros (uma maioria, pelo menos política). Não, Guadalupe é antes uma obra de celebração positiva. Aparentemente, Angélica Freitas utilizou a sua mesma matéria experiencial no México não apenas para escrever esta colaboração com o artista Odyr mas também um volume de poesia, essa sim mais combativa em nome das mulheres daquela sociedade: Um útero é do tamanho de um punho, onde podemos ler versos como “uma mulher é uma construção /…/particularmente sou uma mulher/de tijolos à vista”. O feminismo é então uma dimensão basilar e eléctrica em Guadalupe, mas onde o programa político surge sob a forma de uma constatação de facto da felicidade e liberdade das personagens, e não de uma trama de sofrimento e confronto dramático. E se tema houver redutível a poucos termos, seria mesmo o da liberdade da identidade, livre de quaisquer limitações pré-arranjadas.

Por isso, pelo contrário, os autores tiram partido de uma dimensão “juvenil” permitida pela banda desenhada, ou os seus géneros mais conhecidos, já que existem linhas de desenvolvimento paralelo dos pensamentos das personagens, que podem ser interpretados como “não-verdadeiros” na economia da narrativa, e que bebem de imagens feitas mas produtivas da banda desenhada de super-heróis para essa faceta “imaginada”. Porém, há também uma dimensão de fantasia que está presente de modo claro na narrativa, de forma “real” na diegese, uma vez que temos acesso a acções envolvendo fictícios deuses antigos Mexica-Aztecas (Xyzótlan e Popolancomelatle) e os seus acólitos sobrenaturais, cogumelos psicotrópicos (igualmente fictícios) e as Muxes, figura antropológica e real da cultura zapoteca, de pessoas biologicamente nascidas como homens mas que se vestem e que vivem como mulheres. O tio Minerva, de Guadalupe, assume na fase mais tardia do livro esse papel, mas transfigurado por poderes fantásticos, à la super-herói, recordando leitores de The Invisibles da personagem de elementos similares, Lord Fanny.

Não nos esqueçamos que este é um livro de autores brasileiros sobre personagens mexicanas, mas não há qualquer exploração superficial de imagens feitas, ou atalhos de representação. Ainda que haja uma preocupação em deixar claras as contradições ou sobreposições típicas de qualquer sociedade em que o desenvolvimento pós-industrial e pós-capitalista convive com substratos rurais e tradicionais (a frase feita “sociedade de contrastes” pode ser empregue praticamente a qualquer canto do mundo), Freitas e Odyr deixam espaço suficiente para o que leitor compreenda estar a seguir a história singular destas personagens, e não de cifras do “México eterno” ou coisa que o valha. Mesmo que haja atalhos que possam não corresponder ao mais exacto dos olhares fotográficos.

O desenho de Odyr [Bernardi], como já o havíamos mencionado quando de Copacabana, aparenta-se com o de um breve e leve esboço que se lança num caderno, mantendo essa frescura, que todavia revela solidez graças às linhas grossas e manchas densas em alto contraste, de figurações decididas e expressivas. Uma vez que existem episódios extra-narrativos (apartes, fantasias, sonhos, etc.), algumas composições apresentam-se de forma menos convencional para apresentarem outras formas de distribuição da informação.

Nota final: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro.  

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