3 de julho de 2016

A Girl on the Shore. Inio Asano (Vertical Comics)

Como tem ocorrido tantas vezes em relação à banda desenhada japonesa, ou sobretudo no que diz respeito à sua recepção ocidental, Asano é um daqueles autores que numa primeiríssima fase ganhou proeminência sobretudo nos círculos das scanlations, mas rapidamente conseguiu assegurar um lugar numa circulação mais oficial e comercial, com traduções em inglês e francês das suas obras. Ao contrário de duas ou três gerações atrás, não precisamos de esperar décadas para ter acesso a traduções e edições cuidadas dos importantes autores contemporâneos desse país (de outros, o esforço continua). Oscilando entre séries extensas e histórias em volumes isolados, A Girl on the Shore pertence à segunda categoria e vem confirmar o autor como a voz da sua geração no que diz respeito a uma representação da melancolia urbana e da sufocação emocional da juventude japonesa (ou global). Algo que, de resto, parece ser uma característica de alguma literatura japonesa contemporânea, como se o afã daquela sociedade obrigasse a uma resposta quase apática. (Mais) 

A leitura deste livro pode ser feita em isolamento, naturalmente, mas a sua compreensão num contexto mais alargado mostra Asano, a um só tempo, a regressar aos seus temas usuais, e a estremar algumas das dimensões desses temas. De um modo geral, pode-se descrever Asano como um autor “realista”, ou pelo menos “naturalista”, que quer sublinhar através da sua abordagem “mangá clássica” – personagens estilizadas, neste livro menos histriónicas, mais regulares, contra cenários incrivelmente pormenorizados, num trabalho intenso, senão ímprobo, do encontro entre a fotografia e a manipulação digital e trabalho de desenho, como se pode constatar pelo documentário de Urasawa sobre Asano – e um aturado burilar dos diálogos o mais credíveis possíveis, um mundo que nada tem de extraordinário. Pelo contrário, aquilo que mais se destaca é a profunda banalidade, ainda que sombria, da realidade ofertada por estas páginas.

Não significa isto que Asano dispense dimensões fantásticas, sobrenaturais ou fantasiosas, explorando mesmo por vezes algum tipo de princípio genérico. A consideração da sua obra oferece uma panóplia de diversidade interna que demonstra as indagações de que o autor é capaz, a partir de um centro nevrálgico, para chegar a múltiplos tratamentos desse tema ou temas. Esse centro temático ronda sempre as franjas da vida de personagens muito jovens, adolescentes ou jovens adultos, algo perdidos em relação ao mundo adulto que se lhes avizinha, e é o tumulto de emoções contraditórias, do entusiasmo à angústia, da melancolia à euforia, de que os seus encontros são constituídos. Nijagahara Holograph (publicado pela Fantagraphics, mostrando a “distribuição da atenção” que este autor tem por vários sectores), What a Wonderful World/Un mode formidable, Solanin (adaptado ao cinema pelo estreante Takahiro Miki num filme prenhe de emoções sem jamais atingir o melodramático, e mostrando que não é apenas de super-heróis que se pode falar quando se fala de cinema e banda desenhada), a magnífica construção de um lentíssimo mas profundo Bildungsroman anticlimático com Goodnight Punpun/Bonne nuit Punpun, e as antologias de histórias curtas La fin du monde, avant le lever du jour e Le quartier de la lumière são os títulos que compõem essa constelação coerente, e onde a introspecção, mesmo quando não se expressa verbalmente – não há propriamente monólogos – é o que pauta o ritmo das páginas.

A Girl on the Shore mantém-se totalmente no mundo realista, nem procurando efeitos de representação surreal (a personagem Punpun, por exemplo, parece somente um esboço de um pássaro contra desenhos ultra-realistas) nem construções em que a coincidência tenha um papel preponderante (como ocorre em Solanin e Nijagahara Holograph). O livro centra-se na relação entre os adolescentes Sato Koume e Isobe Keisuke. Mas não se pode dizer que sejam um casal de namorados. This is a not a love song, apetece trautear com os P.I.L. A nubilíssima Koume, como tantas outras raparigas da sua escola de província, tem uma paixoneta pelo bad boy da vila, Misaki, mas este acaba por apenas estar interessado em estrear sexualmente o máximo que consegue das ninfetas que o rodeiam, assim como andar a laurear a pevide. Depreciada, apoucada, degradada, Koume acaba por encontrar uma espécie de redenção da sua própria sexualidade e vida ao eleger o rapaz “esquisito” da sua turma, Keisuke, como uma espécie de sex toy. Igualmente ferido na sua vida familiar (um irmão que se suicidara, pais ausentes, todas as manias ao seu alcance), Keisuke tem uma atitude de indiferença para com a escola e o mundo em geral, e a forma como ele próprio inicia a exploração sexual com Koume acaba por parecer pouco entusiasmada e nada passional, e simplesmente de abandono. A Girl on the Shore é o relato dessa descoberta, colocando no centro do palco as cenas explícitas de sexo dos dois jovens.

Todavia, este não é um livro hentai ou pornográfico (se se exceptuar o facto, controverso, de ser um livro para adultos sobre sexualidade de menores… mas também o será Romeu e Julieta). Se as cenas sexuais são explícitas e “próximas”, não escondendo qualquer dos pormenores do que os jovens experimentam (com algumas excepções da censura típica da banda desenhada japonesa em usar espaços em branco para certas partes anatómicas), o objectivo dessas mesmas cenas não nos parece ser as de titilar o leitor, a de criar o “frenesim do visível”, como diz L. Williams, isto é, um afecto que diz respeito ao prazer das personagens e o nosso próprio desejo. Os diálogos que Koume e Keisuke levam a cabo nesses encontros, cada vez mais intensos em termos físicos mas sempre emocionalmente distantes, ou quase sempre, pois eles próprios levantam os obstáculos que permitiriam essa outra proximidade, tornam esses actos numa espécie de vingança de cada um face ao mundo, e uma curiosidade mútua quase clínica. “Sexo com amor é uma ilusão”, diz o rapaz. Ele lá saberá. É nessas dimensões, todavia, que Asano é um autor atento, uma vez que esses encontros, esse abandono, e essas defesas emocionais sabem a real.

Com efeito, this is not a love song, e nos momentos em que pareceria que se poderia formar algum tipo de relacionamento mais profundo entre os dois adolescentes, quer um quer o outro parecem ter o dom de saber o que dizer para magoar o outro e criar ainda mais distâncias. No fundo, se calhar, até é uma espécie de romance, mas cujo desfecho é tortuosamente doloroso e até estúpido. Porém, não é mesmo assim que funciona a adolescência? Ou, não é o amor sempre um acto de adolescência, onde a lógica e a razão não têm lugar e acabamos por criar antes mecanismos para magoarmos o outro que mais desejamos?

Gostaríamos de recuperar algumas das considerações a propósito e This One Summer/Finalmente o Verão, uma vez que também A Girl on the Shore elege um Verão (abarcando o fim de um ano lectivo e o início do seguinte) como o seu palco territorial, confundindo assim uma divisão “natural” do calendário societal numa unidade de descoberta psicológica e física, emocional e sexual das suas personagens. Dessa feita, a história não apenas segue os dois jovens, mas antes todos os grupos em que eles se integram, sobretudo o escolar, permitindo ao autor assim estudar ao mesmo tempo as dinâmicas locais e culturais destas personagens, criando ecos da relação de Koume e Keisuke noutras relações, criando tensões familiares, comentários sobre a cultura e sociedade japonesas, redes intertextuais mais ou menos perceptíveis, sobretudo com a geração de Tatsumi…

Como dissemos atrás, o desenho de Asano, no que diz respeito à figuração humana, é estilizado, mas ele possui uma capacidade de atentar às mínimas alterações de um rosto (reforçado pelas estratégias de composição dos planos visuais, das sequências, etc.) para ser capaz de expressar emoções não-ditas, subtis e que afectam as inferências dos leitores face aos acontecimentos e atitude das personagens. O mesmo poderia ser dito do uso das paisagens, de vinhetas “sem acção”, enfim, daquilo que McCloud chamou de “transições de ambiente a ambiente” e que o próprio sublinhava serem usadas com maior incidência na mangá. De uma página para outra, o autor pode colocar construções dinâmicas, palavrosas, intensas, ao lado de um olhar panorâmico e silencioso sobre paisagens desabitadas e de largos horizontes. Como autores que sabem tirar partido de todas essas especificidades expressivas e estruturais, a “história” não é apenas composta por eventos e palavras, mas esses ritmos entre todos os elementos. Aliás, a leitura distraída dos diálogos poderá dar a sensação de que se tratam das trocas mais inconsequentes possíveis, que apenas se mantêm na superfície. Quando Keisuke se aproxima finalmente de uma espécie de “confissão” emocional da sua atitude perante o suicídio do irmão, volta atrás para despachar o tema com uma qualquer piada idiota. Deve-se, portanto, ler nas entrelinhas para compreender o que as personagens desejariam antes dizer, mas o que dizem nelas é na verdade um angustiante silêncio impotente. 

Nota final: agradecimentos a G. Martins, pelo empréstimo do seu volume, e à editora,pela oferta do livro; ainda, a M. D., por nos ter colocado na senda dos documentários de Urasawa. 

Sem comentários: