26 de junho de 2016

Superman: American Alien. Max Landis et al (DC Comics)


Em outras ocasiões tivemos oportunidade de revelar algum tipo de acompanhamento que fazíamos de séries mainstream de super-heróis em continuidade, o que ainda se mantém, ainda que de modo menos visível do que se pensaria pelos textos aqui publicados. Maior atenção, todavia, é dada a projectos que surgem como “one shots” feitos fora dessa mesma continuidade, que dessa forma se permitem explorar de modos mais interessantes as potencialidades das variações do género. Foi o que aconteceu, por exemplo, com títulos de Batman ou dos Vingadores. Apesar de termos iniciado igualmente uma abordagem de um outro projecto com o Super-homem, apenas agora surge a oportunidade de sermos mais específicos. (Mais) 

Superman: American Alien é uma série limitada de sete comic books, todos eles escritos por Max Landis, que é conhecido como argumentista de cinema e de filmes curtos no Youtube, alguns dos quais relacionados com a cultura de super-heróis. É dessa produção que surgiu o filme Chronicle, realizado por Josh Trank em 2012, que conseguia criar uma dinâmica de grupo entre as personagens suficientemente interessante e intrigante de uma maneira que o realizador não repetiria com o seu Quarteto Fantástico. O outro projecto mais conhecido é, talvez, The Death and Return of Superman, que faz uma desconstrução divertida e inteligente dos problemas narrativos da saga da morte dessa personagem. A razão pela qual incluímos estas referências é porque esses dois projectos demonstraram duas características no trabalho de Landis, que o levariam a esta série: por um lado, o seu conhecimento geek mas informado pela experiência humana das personagens de super-heróis, tornando-o capaz de compreender o lado do quotidiano, das emoções do dia-a-dia, as motivações humanas; por outro, a sua capacidade em criar módulos dinâmicos suficientemente interessantes para criar interesse em torno de personagens que, as mais das vezes, apenas vivem aventuras atrás aventuras dentro de moldes demasiado familiares.

American Alien tem uma estrutura curiosa. Cada comic book pode ser lido como uma história autónoma e é desenhado por um artista diferente. Além disso, trata-se de um percurso que, mais do que recontar a história da personagem, prefere antes contar episódios-chave na inflexão do seu caminho desde o jovem filho dos Kent nos EUA rurais até ao herói famoso cosmopolita do universo DC.

Façamos um rápido resumo e listagem desses comic books. O primeiro intitula-se “Dove” e é desenhado por Nick Dragotta, o artista da extensíssima e expectavelmente convoluta série de western sci-fi East of West, escrita por J. Hickman; segue-se “Hawk”, com Tommy Lee Edwards, cuja bibliografia inclui os “wet dreams alternativos” de Bullet Points, com J. M. Straczynski, e Marvel 1985, com M. Millar; “Parrot” é desenhado por Joëlle Jones, autora do divertido Lady Killer, com J. S. Rich; seguiu-se “Owl”, desenhado pelo etéreo Jae Lee, sobretudo conhecido pelas suas icónicas ilustrações; depois “Eagle”, com Francis Manapul, artista mais jovem e afecto ao mainstream de super-heróis; segue-se “Angel”, com Jonathan Case, que escreveu e ilustrou The New Deal, uma leve mas clássica trama policial-social na gay New York dos anos 1930; e, finalmente, “Valkyrie”, com o artista Jock, da excelente série de terror Wytches, escrita por S. Snyder. Landis teve portanto acesso a uma bateria de autores que têm estado a produzir trabalho com sucesso crítico no interior da indústria norte-americana, e estamos em crer que tirou o melhor partido das características de cada um para a natureza dos episódios respectivos.

Com efeito, Dragotta emprega o seu estilo que mescla a suavidade e a estilização para a história mais inocente e comovente da vida do pequeno Clark, com um certo tom dos filmes “family sci fi” dos anos 1980. As linhas mais cheias e sobrepostas de Edwards servem um episódio também de juventude, mas bem mais negro, em que surge a consciência do seu poder sobre-humano e os limites a que se deve impor. Jones, tendo uma levez dinâmica e sensual, encontra Clark a fazer-se passar pelo playboy Wayne num iate tentador, e a aperceber-se de quem ele não é. Uma vez que o episódio de Jae Lee faz com que vários ícones do mundo diegético desta personagem se cruzem, apresenta toda uma série de poses e composições dramáticas, trazendo a constelação de Lois Lane, Lex Luthor, Jimmy Olsen e Bruce Wayne/Batman juntos pela primeira vez. Manapul, sendo alguém detentor de uma assinatura gráfica mais convencional e próxima do que se pode chamar um (muito alargado) “house style”, serve na perfeição para o momento em que o Super-homem assume uma espécie de oficialidade, mas ao mesmo tempo procura compreender como é que ele pode ser mais eficiente numa sociedade algo cínica. Case é óptimo para um episódio que mais parece centrado na vida urbana de jovens numa saída nocturna do que na mais típica natureza dos super-heróis: e o que parece ser uma discussão simplesmente entre amigos da adolescência acaba por firmar a natureza do protagonista (algo que se repete de Chronicle). E Jock, com as suas linhas nervosas e excedentárias, consegue carregar a responsabilidade de um paradoxalmente violento e apaziguador desfecho da série, que serve de bombástico ancoramento do super-herói no seu universo mais familiar.

Estas meras descrições não são suficientes, todavia, para dar conta de como Landis tira partido sobretudo dos diálogos entre as personagens para fazer emergir a importância e inteligência das suas personagens. Inteligência no sentido delas serem capazes de pensar por si próprias e vasculharem as suas consciências, mudando de acordo com a forma como são influenciados ou informados pelos eventos em que se envolvem ou pelas pessoas com quem convivem. Assim, na continuação da série, vamos vendo como Clark/Kal-El parte de uma ideia difusa de uma “missão” e “responsabilidade” que tem perante o mundo graças às suas características, mas as vai aperfeiçoando à medida que é confrontado com todos os episódios. Não quer isto dizer que não haja cenas de conflito clássico e físico entre super-herói e super-vilões (pelo menos duas vezes, com o Parasita e Lobo), mas a concentração da série está num crescimento interno.

Além do mais, existem momentos curiosos em que Landis tira partido do universo expandido, mas de uma forma calma e “realista”, o que é quase uma lição para certas estratégias forçadas para esse mesmo efeito que outros autores seguem. Adicionalmente, os primeiros comic books têm ainda uma história adicional em uma única página, desenhada por outro artista (a saber, Matthew Clark, Evan Shaner, Mark Buckingham e Steve Dillon) que expandem o quadro de referências, sempre focando episódios paralelos e formações dos seus inimigos fantásticos.

Como se compreenderá, ao contrário da série All-Star Superman, de Grant Morrison e Frank Quitely, há menos a ideia de um “arco narrativo” coeso do que a sucessão de pequenos momentos autónomos, mas que se podem encaixar na vida longa da personagem. Se nos recordarmos de toda a complexa relação de cada nova versão com as questões de continuidade e reformulações, sabemos que a história desta personagem cuja origem remonta a 1938 atravessou toda uma série de fases, mais ou menos integradas nos seus contextos históricos ou que, pelo contrário, procurou trabalhar contra a corrente. É assim que podemos falar dos “Super-Homens” de Siegel e Shuster, de Weisinger, de Schwartz, de John Byrne, etc. É a relação com esse mesmo historial que dá às revisitações das origens uma natureza paradoxal de recursividade e diferença. Se Byrne mostrou uma cultura kryptoniana a-emocional, Morrison e Quitely quiseram mostrar um herói totalmente positivo e solar, M. Waid e L. Yu, com Superman: Birthright, elaboraram uma fábula que se associava tentativamente com temas relevantes da contemporaneidade, e G. Johns e G. Frank, com Superman: Secret Origin, criaram um épico clássico.

Landis não quer reinventar a roda, nem “revelar” segredos. É como se trabalhasse nos interstícios dos episódios “já conhecidos”, não deixando porém de mostrar “como se conheceram x e y”. Cada comic book, portanto, pode ser visto como uma micro-narrativa (e nessa fórmula, é refrescante ler uma história completa e satisfatória de 24 páginas) que não apenas apresentam acontecimentos ou episódios discretos entre si, mas peças que se encaixam, sobrepõem, envolvem uns nos outros. Landis apresenta-nos um jovem integrado nas culturas do seu tempo (o nosso, este, o de agora), inocente mas não ingénuo, atrapalhado mas não tolo, preocupado mas não descontrolado, dedicado mas ponderado. Um Super-homem que pensa, enfim, com os amigos.

Num momento em que as duas grandes editoras do mainstream de super-heróis cada vez mais se concentram (sobretudo a DC) na gestão centralizada das histórias por um comité que resguarda toda a produção subsumindo-a planos unitários, não deixam de surgir com alguma frescura estas excepções que, pelo contrário, tiram partido do que dever-se-ia fazer: contar as melhores histórias possíveis com estes elementos, não estando demasiado preso a desenvolvimentos pensados por outros autores, mas pelo menos buscando uma integração num arquivo mais vasto e geral das personagens.

Nota final: agradecimentos a C.F.F., pelo empréstimo da série. 

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