27 de abril de 2016

La république du catch. Nicolas de Crécy (Casterman)

Este é mais um desses projectos que poderá ser entendido como de crossover, no sentido em que não é apenas um projecto de produção transnacional como onde duas linguagens supostamente distintas se nutrem uma da outra para criar um espaço de encontro. Com efeito, se se acreditar que existe uma divisão clara entre a banda desenhada ocidental, mormente francófona, e japonesa (não existe), poder-se-iam arrolar características antagónicas ou diversas para depois nos surpreendermos com a sua passagem. Todavia, essa seria uma visão redutora e não de continuidade e de cruzamentos recorrentes. Ainda assim, aceitar-se-á que os modos de produção e circulação da banda desenhada, em termos gerais, é algo diferente entre esses dois países, o que influencia algumas das práticas, mesmo ao nível do desenho, mas seguramente que na forma de comunicação com o público. (Mais) 

Este não é o primeiro projecto em que um autor francês é convidado a contribuir com material original para uma publicação japonesa, sendo os nomes de Baru e de Baudoin pioneiros nessa relação, já para não falar de Frédéric Boilet, que assentou arraiais naquele país durante largos anos. Neste caso, foi a revista mensal Ultra Jump que convidou de Crécy a criar uma longa narrativa (mais de duzentas pranchas) que respondesse aos elementos usualmente procurados nesse título shonen. É desta maneira que o autor francês, já habituado a criar histórias com personagens bizarras, adaptou a sua assinatura a alguns princípios narrativos e de prestação a essa vontade.

La république du catch é um desses objectos que muito dificilmente se poderia descrever como sendo somente de “fantasia”: existem elementos fantásticos, impossível, ficcionais, mas ao mesmo tempo eles tecem-se em torno de uma aparente trama realista, presa às circunstâncias do mundo real, o que apenas aumenta ainda mais a estranheza desses elementos. Nesse aspecto, Crécy não está distante de muitos dos praticantes da mangá shonen contemporânea. A história centra-se num pequeno personagem algo patético, um homenzinho mínimo, chamado Mario, que mal disfarça a careca com os poucos fios de cabelo compridos. Trabalha numa loja onde vende pianos, mas os quais não sabe tocar. Nessa mesma loja habita, parece, um pinguim, virtuoso desses mesmos instrumentos, e que toca divinamente Bach, Prokofiev, Debussy, etc. Esta loja encontra-se numa Nova Iorque mítica, mais construída por trechos de ficção do que da realidade social. E é uma cidade dominada pelos espectáculos de luta livre (wrestling ou, em francês, catch), o mais coloridas e teatrais possíveis. Mas há mais. Estes lutadores são todos a força da máfia italiana-americana que controla a cidade, cujo líder é, na verdade, um bebé dotado e inteligente, por sinal, sobrinho de Mario. Isto significa que inadvertidamente, o pobre protagonista é arrastado sem querer para uma luta intestina em nome de propriedade, poder e economia.

A acção que empurra Mario a uma aventura que não lhe condiz levá-lo-á a atravessar a barreira do “mundo real” (apesar de já termos um pinguim pianista) para a esfera do fantástico, no qual não apenas encontrará um inimigo mas, sobretudo, os seus aliados: todos os fantasmas das fraquezas humanas, desde o de um ciclista que perdeu todas as competições em que entrou, a uma peruca animada feita do cabelo que várias pessoas se viram obrigadas a vender para sobreviver, e uma mulher-fantasma que acumula todas as doenças conhecidas ao ser humano... entre muitos outros que depois surgirão.

De Crécy baseou-se para estas criaturas nas famosas figuras dos yokai, que de modo algo redutor podemos descrever como muitas das figuras advindas da crença shintoísta de que não haverá objecto que não seja animado por um espírito interior, por sua vez capaz de ganhar um “corpo”, mesmo que fantasmático. Ora Crécy dá corpo, portanto, a toda uma série de fraquezas humanas que, unidas, e depois mobilizadas em torno do pobre Mario, ganham um novo fôlego nas suas vontades de decisão e missão.

Em termos actanciais, não estamos perante uma obra demasiado complexa. Bem pelo contrário, o autor tira partido das estruturas mais clássicas e expectáveis dirigidas ao público mais jovem, envolvendo inclusive uma figura de interesse amoroso, a Bérénice, lutadora e promessa de campeã de luta livre, que é o imenso e quase inalcançável objecto de desejo de Mario, e sua perdição. Dizemos quase, pois os eventos instalarão grandes dúvidas na pessoa de Bérénice, na equação em que se encontra entre os “seus” - esbirros do líder mafioso, o bebé Enzo – e torná-la-ão possivelmente numa arma ainda mais temível, depois do combate final entre os lutadores e os fantasmas.

A obra ainda possui outros elementos que parecem estender a história para outros desenvolvimentos, sobretudo emocionais (a comovente história da origem de Enzo e as implicações que tem com a sua “família”), e termina de uma forma clivosa, súbita e suspensa, que faz acreditar haver uma promessa de continuidade, mas ao mesmo tempo permitindo que sse não-final seja estranhamente satisfatório na sua abertura.

Como seria de esperar, de Crécy tira partido da sua linha fluida e plasticamente mutável para, ao explorar a necessária celeridade de execução a que o ritmo de publicação da mangá exige, conseguir cumprir não apenas os prazos necessários como igualmente de uma certa dinâmica e redução do “campo visual” (que aqui deve ser entendido como toda a matéria legível que se apresenta na página). A composição é sobretudo regular, e clássica, e nos momentos em que as vinhetas panorâmicas permitem, as grandes paisagens urbanas – a cidade, a fábrica no meio do rio, a luz do sol ou da lua sobre os telhados – ganham aquela solidez diáfana que o trabalho de linhas finas e nervosas, depois mergulhadas em aguadas apenas aparentemente de execução rápida e impensada, conhecidas do autor.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

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