6 de fevereiro de 2016

La maison aux insectes. Kazuo Umezu (Le Lézard Noir)

É uma verdade de La Palisse que a banda desenhada japonesa se apresenta de uma forma mais estratificada do que outras, no que diz respeito a géneros, públicos e circulações, até pela sua produção massiva, o que torna mais fácil, até certo ponto, análises por atacado. O que não invalidade a existência de cruzamentos, contaminações e problemas de generalização com essas mesmas leituras. Contudo, elas ajudam, numa primeira instância, a uma primeira abordagem. Ora, é nesse sentido que podemos afirmar que se existe uma grande oferta de títulos de horror, é Kazuo Umezu, famosamente conhecido como “Kazz”, o seu grande primeiro cultor e figura. (Mais) 

Nos nossos dias, há um bom número de autores celebrados deste género particular no Japão, conhecido como kyoufu, ou “Horror”. Sobre este género, já havíamos tecido algumas considerações a propósito de Hellblazer, e a elas remetemos. Aqui apenas nos importa, para já, fazer uma distinção entre alguns autores japoneses. Este género distingue-se de um outro que parece ser chamado de kaiki, que significa antes algo que cobre os campos semânticos do “incomum”, “misterioso”, que pode incluir de uma forma flexível o maravilhoso, o fantástico, e até de um ligeiro monstruoso. Mas este outro género não se aproxima do abjecto, do repulsivo, do informe, tal qual o Kyoufu. Ora é este território, que abarca cenas explícitas de gore, figuras absolutamente grotescas e distorções psicológicas ou físicas que levam a uma atitude de repulsa pela parte do leitor que Umezu fundou na banda desenhada japonesa. Se existiam cenas de morte e crimes já em muitos dos autores de policial e até gekigá, é ele, que em títulos como The Left Hand of God, The Right Hand of the Devil e The Drifting Classroom/L’École emportée (mencionamos os títulos em inglês e francês, uma vez que são esses que estão acessíveis em livro e/ou scanlations), abre as comportas de sangue em catadupa (sim, uma referência a Kubrick) que se seguiriam… É possível que autores como Housui Yamazaki, Tsutomu Nihei, Takato Yamamoto, e até mesmo Suehiro Maruo possam ser vistos como seus seguidores, se bem que estamos a referir-nos a autores com preocupações narrativas e filosóficas bem distintas. Por outro lado, são aqueles autores que melhor exploram a distorção biológica dos corpos aliada a pressupostos da mais trivial da vida diária que são os melhores herdeiros do que Umezu fundou. Aí falaríamos de Junji Ito, Shintaro Kago e Hitoshi Iwaaki, com o seu delicioso e absurdo Parasyte.

Não é, portanto, um puro e simples mergulho na fantasia, à la Death Note, que seriam antes uma continuação do outro género, o kaiki, de que o próprio Umezu também foi autor (veja-se o seu Cat Eyed Boy), assim como o outro pai do “horror” no Japão, Hideshi Hino. Este último, aliás, manteria uma abordagem abonecada, quase infantil, apesar dos seus temas. Umezu foi cultivando um desenho cada vez mais detalhado e naturalista – ainda que na assinatura “mangá” – que convida a temas mais carnalmente visíveis, e mergulhando mesmo, como nos títulos acima indicados, numa absoluta abjecção assassina, como poderão comprovar num ensaio de Ng Suat Tong.

Esta antologia da Lézard Noir permite recordar alguns dos trabalhos que construiriam a fama do autor na sua transição, densificação e aprofundamento de uma ideia de horror, afastando-a de meros contornos de fantasia, mesmo que negra, mas ainda sem penetrar nos campos do gore. Sete histórias criadas no final da década de 1960 e princípio da de 1970, e publicadas na revista Big Comics, estas são peças que são extremamente reveladoras da capacidade do autor criar tecidos de abjecção interior através de mergulhos nas psiques atormentadas das suas personagens.

As histórias de Umezu, neste livro, seguem personagens mais adultas, ou jovens adultas, centrando-se portanto em tópicos associados ao emprego, à carreira, a relações de longa duração, às transformações a que entrada na “via adulta” obriga. Mas essa passagem transforma-se quase sempre num ritual que se abre para paisagens bem mais tenebrosas. Por outras palavras, é como se o autor se aproveitasse dos temas que mais criam ansiedades de longo curso nestas personagens (e seus leitores) e os transforma em palcos de detonação do horror psicológico. Uma breve sinopse de algumas histórias podem dar a entender algum do enquadramento, mas falharão em falar dos mecanismos de representação.
Uma mulher, para tentar evitar as explosões de fúria do seu marido violento, transforma-se num insecto gigante. Uma mulher a quem parece ser dada a oportunidade de refazer os seus passos, na escolha de um companheiro, na esperança de ser mais feliz… Um homem que mata a mulher fria passa a viver no horror de encontrar a cabeça dela (que desaparecera) em qualquer lugar, até na panela de arroz... Um casal, à vez, parece poder demonstrar que o seu amor é de facto eterno um pelo outro, mesmo no infortúnio horrível do cônjuge. Um homem que, injustamente acusado de matar a sua mulher e filha, parece poder redimir-se desse infortúnio. Uma outra mulher que, tendo enganado o marido, vive todo o resto da sua vida à espera que o segredo se desvende.  

Como dissemos, porém, a descrição dos acontecimentos não é suficiente para “compreender”. Pois aquela transformação em insecto da mulher não ocorre “na realidade”. Caberá apenas ao leitor a decisão de compreender qual o membro daquele casal que faz o sacrifício maior. Assim como compreender a validade e força da redenção do homem acusado. A viagem da mulher dos dois destinos pode ser lido como um milagre – isto é, que aconteça mesmo num domínio de fantasia – mas ele deve ser antes lido como uma lição.

Em termos estruturais, há alguma coincidência entre as histórias, que parecem repetir um tema de Borges em que se tece toda uma história em torno de uma potencialidade que, subitamente, se revela uma complexa ilusão, um caminho que apenas no seu término nos apercebemos se ter bifurcado algures, lá atrás. Muitas das histórias iniciam-se sob a perspectiva de uma personagem para emergirmos na de uma outra. Ou então penetramos na percepção interior das personagens para depois ser divulgada “a verdade” ou “o outro lado”. Criando assim sempre a ideia de termos duas perspectivas bem diferentes sobre os mesmos acontecimentos.

Como é apanágio da banda desenhada japonesa, mesmo para relatos pequenos, dá-se muitas vezes a possibilidade de permitir transições entre as vinhetas que abdicam totalmente de texto, por vezes até mesmo das personagens, de maneira a criar efeitos de, por um lado, maior dinamismo dramático, incutindo a cada intervalo ou pormenor da acção maior peso emocional, por outro, de maiores passagens de tempo “ambiental”, aprofundando as emoções das personagens. São particularmente belas três páginas do último conto, “La fin de l’été”, o tal da mulher de dois destinos, ou, para brincar com o título português de Vertigo, da “mulher que viveu duas vezes” (se bem que, neste caso, trata-se mesmo da personagem da protagonista, não do homem obcecado por ela), que deixa o verão glorioso na praia para entrar num Outono melancólico numa casa pobre dos arredores de Tóquio. A um só tempo temos um novo establishing shot e uma descida à conturbação da protagonista…  

Umezu usa aqui um desenho algo rígido para as figuras humanas, notável sobretudo em momentos de maior cinetismo. Isso é recompensado, todavia, em vinhetas mais “icónicas”, de apresentação de uma pose ou da entrada em cena de uma personagem. Anatomicamente compostas (com um outro deslize), as personagens encontram-se enclausuradas muitas vezes em vinhetas cheias de informação visual, bastas vezes no centro de tramas complementares, densas, e até mesmo confusas para dar conta de outros tumultos. Existem muitos efeitos dramáticos como irises, iridações de linhas, ou enquadramentos dentro das molduras das vinhetas, e sempre rodeado de linhas paralelas que não apenas dão conta de sombras e reflexos das superfícies, como conduzem, diminuindo, o foco de atenção do leitor. O melodramatismo é por demais acentuado, mas acompanhando as manipulações da informação psicológica e perceptiva das personagens, é muito eficaz. O efeito é, na verdade, duradouro e perturbador.

Não existem cenas de violência extrema, e há mesmo episódios que seriam chocantes (um assassinato, uma violação, um acidente) que são tratados com alguma delicadeza, digamos assim. O choque não está no evento em si, mas antes dos resultados finais, na reviravolta, no efeito de surpresa, no choque. Se o choque da abjecção tem novos níveis como Kago e Ito, nos nossos dias, a degradação psicológica interna encontra ainda nestas histórias com mais de quarenta anos de Umezu um acme a superar.
Nota final: no momento em que estas linhas são escritas, está para ser publicado um segundo volume de histórias curtas de Umezu, na mesma linha, de entre as décadas de 1970 e 1990: Le voeu maudit.

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