1 de janeiro de 2016

Space Dumplins. Craig Thompson (Scholastic)

Este título está, na obra de Craig Thompson, mais próximo de um dos seus primeiros longos trabalhos, Good-bye, Chunky Rice, provavelmente ainda um dos seus melhores trabalhos, não obstante o sucesso crítico e de exposição de Blankets e o estranho ruído de Habibi. Porém, Space Dumplins parece-nos ser dedicado a um público ainda mais jovem, digamos na passagem da infância para a adolescência. Trata-se de uma pequena saga familiar espacial, em que a jovem Violet Marlocke se perde de ambos os pais, e se lança numa missão de resgate apenas acompanhada pelos seus dois novos amigos, também miúdos, Zacchaeus, um dos últimos descendentes dos Lumpkin (mas excepção dessa espécie, atarracado e irascível), e Elliot, uma pequena galinha-rapaz – não é erro – descendente de galináceos artificialmente humanizados -, sensível, e mais dado às questões do espírito que aos da acção. (Mais)

A aventura é bastante linear, como se espera de um livro que pretende chegar a um público mais jovem. Não há desvios cronológicos de monta, os saltos entre vários focos de atenção não são confusos, há uma claríssima moralidade instituída, uma resolução expectável. Todavia, a confusão instala-se ainda assim na própria matéria da narrativa, como veremos.
O autor, mais uma vez, não é muito subtil na construção da paisagem social do seu livro. Para além da família de Violet viver num parque de trailers, e inscrever-se num equivalente à classe proletária mais desprivilegiada dos Estados Unidos, todas as outras personagens ocupam espaços ou funções claras, mas sem nunca haver espaço algum para crescimentos internos, desenvolvimentos emocionais, cognitivos ou humanos. As colegas que a desprezam por viver “para além dos cinturões de asteróides” (equivalente às “inner cities” dos EUA ou os nossos “subúrbios complicados”) apenas surgem para esse mesmo papel, todos e quaisquer oficiais da “cidade-estação espacial” apenas aparecem para confirmar mais um qualquer horrível regulamento que diminui o valor de cidadã da mãe de Violet, etc. É por demais claro que Thompson utiliza realidades da sua sociedade – a dificuldade de um ex-con obter empregos mais condignos, a estratificação social de acordo com o acesso escolar, as possibilidades inerentes a cada emprego, etc. – para projectar esta sua fantasia sideral, mas isso nunca serve para criar um desdobramento interno, paulatino ou delicado das suas personagens. Tudo é algo martelado em direcção à “mensagem” do autor.

Isto leva a que o “crescimento psicológico”, aquilo que é usualmente indicado como o ingrediente principal das narrativas para os mais jovens de maior sucesso (da perspectiva pedagógica, jornalística, de listagem, etc.), não seja matizado, mas sublinhado bastas vezes. Violet não atravessa crises internas, e toda a situação conspira para que os leitores simpatizem de imediato com a sua família e a sua crise. Mesmo os papéis contraditórias de Zaccheus e Elliot são nítidas cifras para fazer distribuições emocionais e de valores complementares àquilo que não é explorado de outro modo. Space Dumplins, até pela sua própria matéria espacial, familiar e aventureira, seria comparável a Sardine de l’espace, de Emmanuel Guibert, Joann Sfar e Mathieu Sapin. Existem outras séries comparáveis (e que citámos nos materiais textuais com os quais colaborámos, afectos a uma exposição no último Amadora BD, comissariada por João Paiva Bóleo sobre a criança na banda desenhada), tais como Missile Mouse ou Zita the Space Girl, mas é natural que seja o título de Thompson aquele que nos chamaria mais a atenção, de forma imediata. Mas a verdade é que Sardine, tal como Ariol, também de Guibert com Boutavant, e Hilda, de Luke Pearson, são séries em que os autores se preocupam mais com a construção interna das personagens do que com os efeitos de superfície.

E é precisamente no campo visual que também Thompson está sistematicamente a criar “anedotas visuais”: naves ou cápsulas que parecem hambúrgueres de cozinha rápida, em que cada elemento corresponderia aos ingredientes utilizados, robots com designações que são um qualquer trocadilho difícil de manobrar, um princípio idêntico ao de Star Wars (e tantos outros projectos depois disso) em que cada alienígena parece pertencer a uma espécie diferente e irrepetível, máquinas ultra-avançadas e futuristas que parecem imitar electrodomésticos banais das nossas vidas, e por aí fora. O corolário deste processo é (spoiler!) uma nave-laboratório gigante chamada “Lab-Star” que depois de descobre ter a forma de uma… lagosta (losbter): uma das personagens diz, “Este tem de ser o mais estúpido trocadilho de sempre”. Dizer que uma anedota não é boa depois de a contar não a redime. E há nessa dimensão, então, uma certa produção desmesurada que não coalesce numa matéria elegante.

E mais uma vez, o autor parece querer provar uma parte da sua prolífera imaginação através de um excesso de marcas. Existem autores que gostam de povoar toda e qualquer vinheta com o máximo de informação possível, mas muitas vezes essa é uma abordagem para assinalar uma irónica ausência de significado, sendo o caso de Geoff Darrow o mais gritante. Thompson parece, porém, querer que todo e qualquer estilhaço de metal perdido numa lixeira espacial tenha um peso idêntico em termos de informação. O mesmo ocorre com a sua abordagem em termos de composição de página, transições, e estruturação da acção – sobretudo das mais dinâmicas: Thompson parece um daqueles editores de vídeo assombrado pela quantidade de “cortinas” (efeitos visuais para transição de planos) e que as utiliza a todas para máximo efeito pirotécnico, mas sem verdadeira preocupação em fazer aliar o efeito superficial ao que é necessário em termos diegéticos ou emotivos. Oscila-se entre splash pages com figuração de cortes e secções internas, double spreads em estruturas geométricas, irrupções de vinhetas-zoom, multiplicação das personagens num plano especial ininterrupto por vinhetas, etc. Uma pirotecnia que as cores de Dave Stewart, correctíssimas, apenas enfatizam. Há uma discrepância da prestação visual – espampanante, soberba, excessiva – e do crescimento emocional – que quase não tem lugar.

Para além da moralidade familiar, em que Violet e os seus surgem como seres de absoluta excepção e apenas são ajudados pelos “underdogs”,criando uma espécie de hierarquia moral neste universo, existem outros temas recorrentes do autor, como a religião (através da figura de Elliot surge uma quantidade de citações bíblicas, sobretudo do Antigo Testamento, já para não falar de letras hebraicas e combinações numéricas, como se se quisesse dourar a narrativa com uma camada da Gematria que a pudesse melhorar...).


Dito isto, e precisamente pelo peso social da presença de Craig Thompson, é possível que este título se torne um “clássico contemporâneo” da banda desenhada infanto-juvenil, cheia de leveza e do maravilhoso. Apesar da existência de algumas histórias alargadas com uma sofisticação pouco comum para o público infanto-juvenil, mesmo na cultura popular (Steven Universe poderia ser um exemplo disso, a nosso ver), haverá sempre uma maior procura por objectos mais normalizados, como é de esperar. O que se pede não é o seu menor consumo, mas sim um consumo informado. Space Dumplins é precisamente um livro em que o prazer não é negado, de forma alguma, mas é necessário encontrar-lhe alguns dos antídotos contra um certo maniqueísmo moral.

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