13 de janeiro de 2016

O que vemos quando lemos. Peter Mendelsund (Elsinore)

Parece haver um entusiasmo partilhado por muitos leitores em torno deste livro de Peter Mendelsund, o qual se justifica na medida em que é um livro “ao quadrado” mas com outras anfractuosidades muito em voga. O “quadrado” é o facto de se tratar de um livro sobre livros, sobre a leitura dos livros, sobre o prazer, expectativas e até mesmo perigos que ocorrem nela; as outras dimensões espraiam-se por considerações sobre as fantasmagorias visuais desenvolvidas à medida da leitura, o grau de co-criação a que o leitor se propõe com determinado livro, na capacidade dos autores de dirigirem de uma forma ou outra a matéria “visualizável” dos seus escritos. Outro domínio pelo qual o livro tem suscitado algum entusiasmo é pela forma como se apresenta materialmente, as características da edição, as suas profusas ilustrações, uma paginação leve, rápida, com grandes letras, ou palavras isoladas, etc., que torna o acto de leitura deste livro bastante rápido. Porém, O que vemos quando lemos é igualmente um caso de mal-entendidos e de caminhos mais prometidos do que trilhados. (Mais) 

Aparentemente o volume de Mendelsund apresenta-se como um estudo fenomenológico do acto da leitura, na dimensão imaginativa e projectiva que ela contém, ou para ser ainda mais específico, qual é o grau da visualização mental que fazemos dos objectos concretos descritos ou em acção nos escritos literários. O autor não está preocupado com a matéria textual, este não é um tratado de narratologia, é antes uma exploração dos momentos em que o texto permite formar imagens específicas na nossa mente. Por “imagens” o autor não quererá apenas falar do sentido da visão, ainda que mental, mas fala também de outras sensações físicas como a audição ou o olfacto, mantendo-se num trilho tradicional (recordemos que a exploração sensorial pode ser bem mais complexa, como tentou num primeiro passo, em relação à banda desenhada, Ian Hague). Como se sabe, existirão autores que primam por descrições mais específicas de um determinado objecto, personagem ou sensação, ao passo que outros preferem abordagens mais afastadas e impressivas, ou que, com alguns elementos libertos em cadências regulares ou pertinentes, se vão coalescendo numa “imagem final”, que para o autor, está sempre em movimento.

Porém, há muitas limitações na própria argumentação do autor. Se, como quer uma nota da revista Visão sobre o livro, se pensar neste título como uma TED talk, ou uma apresentação numa sessão de motivação ou introdução, então o seu tom leve, informal, improvisacional, é apropriado, estruturando-se para animar a audiência e fazer-lhe soltar uns quantos “ahs” de admiração a cada nova “pérola” de sabedoria. Mas se queremos levar de uma forma mais consolidada e séria a discussão a que o livro se entrega, então os instrumentos da sua apreciação devem ser igualmente mais rigorosos. Ora, em primeiro lugar, não temos a certeza se se pode chamar de “argumentário” a uma apresentação sumária de uma ideia, sem grande desenvolvimento ou ancoramento em mais do que um exemplo, a uma estruturação e estratificação dos seus mecanismos, para depois fazê-la cessar subitamente, ou então passar a um outro tema. São bastas as vezes em que uma determinada linha de pensamento se promete mas não é, de forma alguma, desenvolvida de uma maneira suficiente ou satisfatória. Apesar de Mendelsund citar aqui e ali certos autores e livros, e até mesmo temas estudados de formas quase exaustivas (quando fala de metáforas, por exemplo, parece quase estar a seguir na peugada de Lakoff e Johnson, mas não os cita), jamais atinge os graus de sofisticação ou completude dessas mesmas fontes, directas ou não. Mais, a ausência de fontes bibliográficas ou a partilha de uma bibliografia secundária que estendesse esta temática (há apenas uma listagem das fontes das citações literárias e imagéticas) não abona a favor da ideia de diálogo intelectual que aparentemente o autor deseja, tornando O que vemos quando lemos quase num exercício de pontificação. Não há tese.

Um certo absentismo de considerações da sociologia da leitura também nos parece preocupante. A contextualização dos actos de leitura parece ser feito num vazio histórico e cultural. Daí a chegar a um divórcio inerente entre o acto de leitura e outros actos – independentemente de se falar da visualidade do próprio texto -, esquecendo que a emergência da literacia universal é algo de muito recente e apenas nas sociedades ocidentalizadas, que a relação profunda entre a imagem e a narração encontra as suas raízes em experiências pré-históricas e mesmo pré-sistemas de escrita ou, se se quiser, do ponto de vista ontogenético, pré-verbais, está um pulinho subtil que não se nota, pois não debatido.

Leitores de livros de leitores como Alberto Manguel e Enrique Villas-Matas conhecem outras estratégias de abordar a “coisa literária”, já para não falar de intelectuais-académicos populares como Calvino, citado, ou Eco, e sem entrar no imenso mundo da narratologia e da teoria literária. Porém, pessoas familiarizadas com os escritos de Wolfgang Iser, Gérard Genette, Mieke Bal e tantos outros, encontrarão aqui apenas “pepitas” isoladas de considerações consabidas, que não trazem um peso mecânico significativo à maquina desejada por Mendelsum. Por exemplo, em dois ou três curtos parágrafos o autor “despacha” a questão da pessoa (primeira pessoa do singular, terceira pessoa, etc.) em relação à perspectiva que se permitiria, sem fazer distinções em perspectiva visual e focalização, por exemplo, que Bal institui e tornou operativa de uma forma significativa. Se entrarmos no campo das relações com a ilustração, a história do livro, do uso do desenho como instrumento de pensamento para a escrita literária – os trabalhos de Jacqueline Sudaka-Bénazéraf sobre Kafka, de Konstantin Barsht sobre Dostoyevski, por exemplo, seriam estimulantes, já para não falarmos de exposições ou publicações dedicadas ao tema -, etc. (muitas das considerações do autor, quando existem imagens, parece ser reduzidas a “redutoras da imaginação” do leitor, o que é algo de extremamente banal), abrir-se-ia o campo da problemática. É difícil, para nós, não ler cada página deste livro sem desejar que houvesse maior desenvolvimento desse pensamento mas também a hipótese de um contraditório de outras fontes.

Muitos dos leitores, críticos ou não, deste livro, assinalam de modo insistente sobre a carreira de Mendelsum enquanto designer de livros, pelas capas que desenhou ou outras das suas funções. Mas não nos parece que apelar ao currículo sem criar linhas de maiores elos com ele seja uma estratégia correcta de leitura. A verdade é que as imagens empregues neste mesmo livro, com algumas excepções de “piadas” bem encontradas, são ligeiras, superficiais ou banais. As traduções de metáforas já bem coçadas (“o jogo da cabra-cega”, o “mapa”, os “caminhos”) em pouco ajudam. Apresentar uma consola de vídeo-jogos e depois associá-las aos hipotéticos “processos” encerrados no Moby Dick de Melville pode parecer interessante à partida, mas se se lhe dedicar alguma tempo de reflexão, tendo em conta que nenhuma explicação dessa analogia é feita, descobrir-se-á ser um exercício vazio, que qualquer outra versão ao acaso não iluminaria (revelando, portanto, a sua falta de eficácia e poder explicativo da obra literária em questão). O mesmo ocorre com os gráficos de “percursos” propostos para os livros de Kafka ou Anna Karénina (uma pobre imitação, e sem humor, das famosas shapes of stories de Vonnegut, que cita nominalmente), tentativa de ir desvendando o rosto de Anna Karénina através dos mais variados símiles (um retrato-robot policial, o rosto de Keira Knightley na adaptação cinematográfica, várias Gibson girls, e por aí fora. Karénina é mesmo o leit-motiv desta pequena obra, o fio vermelho que conduz todas as considerações sobre visualização, e é claro que a sua incompletude e nebulosidade é um ponto forte, uma vez que deve sempre manter-se enquanto promessa no futuro, incitamento à releitura, e não uma descoberta finita.

É uma pena que nebulosidade esteja igualmente presente no pensamento e na sua estrutura.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. 

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