2 de janeiro de 2016

In God We Trust. Winshluss (Knockabout)

Nalguns dos episódios aqui incluídos, Winshluss pede emprestado as personagens do Super-Homem e de Conan, o Bárbaro. Numa nota final do volume, ele indica a atribuição aos seus autores respectivos, mas acrescenta que infelizmente não pode citar os autores de todas as outras personagens (Deus, Jesus, Moisés, Pôncio Pilatos, etc.), pois não os descobriu. Sendo assim, a ficção prossegue. (Mais) 
In God We Trust (com título inglês mesmo na versão francesa) reúne trabalhos curtos de Winshluss publicados na Ferraille Illustré, todos eles em torno de paródias, eversões satíricas dos relatos bíblicos, ou anúncios publicitários, cartoons/gags, desenhos soltos ou mesmo histórias originais envolvendo, de uma forma ou outra, conceitos, personagens e realidades afectas ao Cristianismo, e em particular ao Catolocismo. Apesar de existir um pequeno mecanismo inicial que mostra um monge criando uma espécie de mlduta narrativa para unir todas estas peças, elas mantêm a sua autonomia própria, explorando vários graus de proximidade à “palavra divina” e, claro, à virulência do humor escatológico (em todos os sentidos, o mais material e comum e o mais teológico) do autor.

Não podemos entrar aqui numa complexa questão sobre o papel do humor na cultura ocidental judaico-cristã, que teve um papel e presença sempre flutuante, negociado, tensional, processo esse mesmo fruto de séculos de discussões entre várias forças moldadoras sociais. O nome da Rosa, de Umberto Eco, o ensaio de Bergson (O riso) e o de Bakhtin (Rabelais e o seu mundo, apenas traduzido no Brasil), entre tantos outros, poderão ser bons pontos de partida, senão armas de arremesso. O que interessa é que existe uma tradição vetusta e alargada de fazer humor com os mais profundos ensinamentos da Igreja Católica e as suas figuras (mundanas e divinas), até ao ponto mais escabroso, que não nos faz de forma alguma temer pela vida e fortuna dos seus autores (e leitores), e talvez apenas os crentes possam imaginar (espero que não desejar, ou seria uma contradição da sua natureza religiosa) que, havendo preço a pagar, ele será pago na próxima vida.

O humor de Winschluss aqui é até bastante controlado, não existindo propriamente cenas de sexo tórrido, por exemplo, ou cenas explícitas de gore ou “porcaria”. O autor prefere antes criar figuras animadas por paixões pequenas e passageiras, interesses momentâneos e aborrecimentos perenes – inclusive Deus -, para demonstrar a patetice disto tudo. Algumas das piadas são relativamente expectáveis: um Jesus que regressa irado, transformado num anti-herói de filme de acção dos anos 1980, piadas em torno da situação familiar de José e Maria, a estranha aposta em torno do sacrifício de Abraão, as “revelações” do que “aconteceu de verdade” em relação aos milagres de Cristo, etc.

Temos em nós que fazer humor religioso no nosso enquadramento cultural, tal como, no caso particular português, na política, é extremamente difícil, não porque não exista talento ou vontade para isso, ou que sejam temas intocáveis, mas porque eles mesmos, na sua existência, actores e mecanismos, é desde logo anedótica. É por isso que quase basta contar os episódios tal qual eles são conhecidos, repetir as situações, revelar os intervenientes nos seus trejeitos mais usuais, que o riso surgirá da forma mais natural. Sem querer fazer comparações bacocas e imediatas, veja-se como, de entre os muitos sketches da troupe brasileira de Porta dos Fundos, são sempre os religiosos aqueles que funcionam melhor, menos por haver um desenvolvimento dos textos exímio (e há) ou um desempenho apurado dos actores (que há), do que pelas situações escolhidas serem verdadeiramente anedóticas nelas mesmas.

Depois de tantas criações em torno destas figuras, pensando de Franck Stack a José Vilhena, de Cavanna a Vuillemin, não há propriamente novidade “de choque” em In God We Trust, e insistir sobre a corrupção da Igreja, os seus “pecados”, a hipocrisia de quem se diz representante da moral, etc., patina um pouco no contexto actual. Aliás, tendo tido o estranho (senão doentio) privilégio de ter lido todas aquelas publicações de proselitismo evangélico norte-americanos conhecidos por “Chick tracts” (de Jack Chick; aliás, temos essa mesma colecção), é mais chocante a “mensagem directa” do que o “humor de fora”.

Dito isto, existem pequenas pérolas. A versão da vida de João Paulo II como rocker cristão permitir-nos-á repensar a fama desse Papa e a forma de apresentar a relação de Maria com Deus como um romance comics consegue trazer algo de novo a esse gozo. Como dissemos, cada parte é autónoma entre si (tendo surgido solitariamente na revista), mas existem algumas personagens recorrentes para além das principais que permitem ver alguma dimensão de continuidade, e há de facto uma possibilidade de encontrar, como é de esperar, um arco desde o Génesis ao Apocalipse.

Winschluss tem ainda a seu favor a sua capacidade incrível de artista multifacetado, e se capaz de instilar no mais pequeno gesto, na mais subtil dos traços para criar as expressões das suas personagens, e num controlo muito particular dos diálogos, chãos e naturais, para criar uma colecção de excelência. Se o seu ponto de partida, mais conhecido, como nos exemplos de Pat-Boon: “Happy End” (publicado pela Polvo entre nós) e Pinocchio é um desenho reminiscente da animação dos anos 1930 e o estilo “big-foot”, ele cria aqui e ali pequenas diferenças, desde o uso específico de letras e títulos desenhados, ao encontro entre Kirby 1950 e psicadélico para “Secret Love”, passando pelos desenhos criados pelo próprio Jesus, os cartoons a preto-e-branco como se pertencessem a um jornal satírico, as composições de página mirabolantes quando necessário.

Versões amusantes de histórias conhecidas, mesmo que diluídas num contexto mais alargado de outras tomadas mais radicais, e num veículo em que a excelência visual preside, o que resta a In God We Trust? Bergson diz que o cómico não tem a ver com a a emoção – a reacção do que não vê a comédia, talvez – mas “dirige-se à inteligência pura”. O propósito não é, então comover, mas fazer pensar. Eis o maná de Winshluss.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

2 comentários:

José Sá disse...

Olá Pedro,
O terceiro parágrafo desta entrada tem muito que se lhe diga e daqui (desculpa-me :-) parece-me deslocado da tua linha de estudo e pensamento. Desde logo, acelera e impede o outro debate de fundo acerca deste tipo de obras, mas sendo certo que este não é o espaço, assim sendo será judicioso sequer referi-lo? Tenho uma opinião reservada sobre essa posição relativa à brandura contemporânea dos costumes da religião católica, mesmo até pelo alcance ou intervalo em que definimos contemporaneidade. E no espaço geográfico europeu existem vastos exemplos com menos de um lustro (algum nacional e desta semana), mas que não importa aqui enumerar. O que me me importa destacar é que não encontro razão para associar a falta de sentido de humor religioso a outras crenças que a católica, quando ontologicamente, julgo, não será a religião a transformar a condição humana de per si, nem sequer o inverso, mas é ela sim um produto da materialidade da condição à vida humana. E assim podemos parecer cair na armadilha sinedóquica de associarmos a intolerância religiosa de alguns a um povo, ou a uma religião quando o emprego da figura no discurso vale para isso mesmo, para eliminar/arrumar ceteris paribus todas as linhas de desvio àquilo que pretendemos transmitir. Lá como cá existirão forças autoproclamadas responsáveis pela condenação capital do humor e doutras formas de expressão na religião, na diferença importante porém que dos exemplos próximos somos sempre mais precisos no isolamento do fenómeno pela excepcionalidade, rejeitando/ignorando com graves custos mais adiante a origem e o grau de contaminação à comunidade, quando para paisagens mais distantes - a metáfora ao fenómeno óptico resulta - no borrão tudo fica mais difícil de distinguir.
Obrigado e um Abraço,
José

Pedro Moura disse...

Olá. Não estou bem a compreender em que é que essa passagem cria essa ideia. O prágrafo tem duas partes: na primeira defendo apenas a minha incapacidade em lidar com tamanho tema, remetendo apenas a três exemplos (um literário, um filosófico e um de teoria literária e cultural) que me parecem suficientemente pertinentes; na segunda, talvez de uma maneira pouco clara, que sempre se fez humor em torno da religião (desde as primeiras caricaturas da Crucificação, em que Cristo surge com cabeça de burro) e que, mais contemporaneamente, não virá daí consequências gravosas, ainda que claro que com vozes bem ariscas de certos sectores (o "caso 'Pato com laranja', Sousa Lara vs. Saramago, leitores do 'Expresso' vs. António Antunes, etc.). E NÃO desejo de forma alguma criar um discurso que crie um "nós" onde haveria necessariamente um "eles": simplesmente falo do "nosso" contexto (que claro que pode ser elástico, desde o meu umbigo ao planeta Terra). Dito isto, defendo que o "risco" desta obra de Winschluss se encontrará certamente muito diluído no seu poder efectivo de chocar nos nossos dias.
Abraço,
pedro