4 de janeiro de 2016

Fósseis das almas belas. Mário Freitas e Sérgio Marques (Kingpin Books)

Poder-se-á descrever Fósseis como tendo três “partes”. A linha principal da narrativa é a de uma família, a saber, Samuel e os seus dois filhos, Marco e Valéria, passando as férias na praia da Adraga: parte do folclore local (as formações rochosas com os seus apodos), as brincadeiras da filha e os conhecimentos do pai concorrerão para criar uma história de encantar (e assustar). Desse relato desprende-se a vida do rei D. João II e a exploração da costa africana, podendo mistificar-se nessas missões a “Época de Ouro” das navegações dos portugueses – os focos principais são o assassinato do Duque de Viseu e a viagem de Bartolomeu Dias. Finalmente, uma terceira linha é a mítica, e tríplice: não apenas aquela “mito-histórica”, associada à viagem e “dobragem” do cabo das Tormentas/da Boa Esperança, mas igualmente a camoniana (o mito do Adamastor) e uma mais original, fantasiosa (uma série de criaturas fantásticas, aliadas e antagonistas de Adamastor). (Mais) 

Mas essas mesmas partes não coalescem jamais numa unidade narrativa. Bem pelo contrário, elas surgem de forma desirmanada e não conseguem estabelecer elos entre si que tornem necessária a sua concorrência numa mesma história. É natural que o propósito fosse introduzir as partes fantásticas – aliando-as a uma suposta linha de desenvolvimento histórico, em que estariam presentes as conspirações em torno do monarca português, e segredos aqui revelados – para reforçar a intriga familiar de Samuel e os filhos, onde estão presentes elementos suficientes para ir criando personalidades distintas, mas para depois convergirem numa resolução expectável. Só que essa parte fantástica parece agregar demasiados elementos que não encontram o seu lugar mais apropriado: o assassinato de D. Diogo surge subitamente, e sem qualquer contextualização, imediatamente associado a um programa de invenção que não é exposto de maneira suficiente, e a súbita aparição do Adamastor, para mais apresentado como fonte de combates com a frota portuguesa, é depois agregado à “nova mitologia” de forma contígua, e não interna. Há, porém, um certo tom de linguagem que pretende aprofundar e associar todas essas linhas numa certa continuidade – de recompensar a imaginação, de garantir que existirá uma beleza eterna -, mas nem sempre é clara como é que os territórios (entre “ideias imateriais” e “fósseis reais”, entre “os acidentes da história” e as “lendas”) são atravessados.

A leitura de Fósseis das almas belas exige, além do mais, da parte do leitor, conhecimentos externos à própria obra. O tom enciclopédico, presente aqui e ali pelos diálogos entre pai e filha, e contra-propostas do filho, que pretende criar essa tal camada de “historicidade”, não tem um peso suficiente para transformar o projecto numa ponderação “mágica” sobre essa mesma história. Enquanto narrativa de fito universal, a estrutura não chega a um equilíbrio dirigido, e os momentos mais violentos podem mesmo dissuadir a ideia da sua acessibilidade a um público mais jovem.


Apesar da limitação do trabalho figurativo de Sérgio Marques, e uma certa monotonia de composição, dinamismo e emoções das personagens (quase sempre há um tom melodramático apresentado subitamente, sem crescendo, mas isso deve-se à estrutura da narrativa, à supetão), há um certo charme infantil na sua presença, mais conseguida nos momentos calmos e quotidianos do que nas cenas mais espectaculares, cuja ambição não é recompensada. Há mesmo um certo excesso de linhas e formas nos episódios mais dramáticos que distraem em parte de uma concentração nas acções. Mas o traço rústico das personagens, e a organização de cada página como uma unidade auto-suficiente, dá-lhe um garante de um equilíbrio interno, e uma leveza de tom que serve à parte “realista” de forma imediata. 

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