4 de dezembro de 2015

Las Meninas. Santiago García e Javier Olivares (Astiberri)

Poderíamos começar este texto da mesma forma que o anterior, já que também Javier Olivares foi alvo da nossa atenção há quase uma década, e que são apenas circunstâncias algo superficiais que nos colocam de novo frente a um seu trabalho. Por outro lado, este volume estabelece algumas linhas de relação com o de Auladell, menos por características comuns de pertença social do que pela forma como ambos entram em diálogo com a pintura ocidental. Auladell numa óptica de re-utilização dramática, Olivares e García numa de pesquisa. (Mais) 

Uma das tendências mais prementes da banda desenhada contemporânea é a de narrativas que mesclam, a um só tempo, a biografia de autores famosos e uma interrogação, muitas vezes (ou sempre?) metatextual. Com efeito, é muito surpreendente encontrar um número de livros em torno da vida e obra de pintores (mas também escritores, filósofos, cineastas, escultores) mas que procuram menos uma abordagem biografista, heróica e didáctica do que uma auscultação do espírito que anima essa mesma obra. De cor e a título de exemplo, deparámo-nos com livros de banda desenhada sobre Schiele e Modigliani, Dalí e Picasso, Rembrandt e Niki de Saint-Phalle. Alguns deles não passam de meros culébrons em torno das vidas “passionais” desses autores (os casos de Schiele e Modigliani); outros são, digamos, livros competentes e até carregando o peso da arte dos seus autores mas sem conquistarem sendas novas (os casos do Dalí de Baudoin e os Picassos quer de Bertozzi quer de Birmant e Oubrerie); outros ainda têm métodos tão modestos quanto de conquistas, procurando assim abordagens que encontram maiores felicidades (como o Rembrandt de Typex e o Niki de Saint-Phalle de Osuch e Martin, os quais serão em breve alvo de leitura no lerbd). Inscrevendo-se nesta última categoria informal está Las Meninas.

É claro que também se poderiam referenciar alguns dos livros que, na banda desenhada, e pelos caminhos da ficção, têm criado reflexões mais interessantes sobre o acto da criação das artes plásticas do que muitas biografias de autores reais. Como esquecer Le portrait, do já citado Baudoin? Ou não recuar ao Die Idee de Masereel? E a escolha é vasta, seja pelo humor de Daniel Clowes ou a estranha fantasia deLune l'envers de Blutch. Las Meninas é várias coisas ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, podemos dizer que é uma biografia de Diego Velázquez, até com algum grau de apresentação dos factos e dados de um modo pedagógico, introduzido esse mecanismo pela desculpa diegética de que um investigador da Ordem Militar de Santiago vai entrevistando várias pessoas com as quais Velázquez trabalhou e viveu, de forma a entender se ele é digno de receber a cruz dessa ordem, já que não é de linhagem nobre. Esse mecanismo permite assim, através de breves conversas com uma mão-cheia de personagens secundárias – funcionários da corte, onde o pintor exercia outras funções administrativas e rituais, discípulos de pintura, o seu escravo Juan de Pareja, relutantemente liberto – criar uma densa rede de episódios biográficos do pintor, desde os seus anos de aprendizagem, a entrada na corte e sedução do rei, as viagens a Itália, as amizades e conversas com outros mestre da sua época, como Reubens, José de Ribera, Bernini, mas também os seus acólitos, como Juan Bautista Martínez del Mazo, seu genro e aprendiz, Pareja e uma suposta amante, pintora também, na sua segunda estada em Itália.

Aqui penetramos numa segunda camada de significação: a do próprio pensamento sobre a pintura e o acto criativo, que tem no próprio Velázquez a sua âncora, para chegar a essas outras personagens, aos seus rivais, companheiros, clientes e admiradores e críticos, para logo chegar a uma dimensão transhistórica, quer seja introduzida diegeticamente por personagens (levando a um nível hipodiegético, ou uma “história dentro da história”), quer sob a forma de “interrupções” quase intempestivas pela parte do meganarrador da banda desenhada (levando assim a uma espécie de metalepse, uma “história paralela”). Dessa forma, temos troços em torno de Zêuxis, Ticiano, Rafael, aprendizagens com van Eyck, mas também percorremos o “futuro”, com Goya, William Merritt Chase, como dizer isto... os Picassos?, Dalí e a Equipo Crónica (não pela ordem histórico-cronológica), mas igualmente o dramaturgo Buero Vallejo, que escreveria em 1960 o drama histórico, mas o qual pretendia ser lido igualmente como comentário da sociedade em que se apresentava, Las Meninas. Desta forma cria-se uma rede de associações conceptuais que recolocam Las Meninas como uma espécie de centro nevrálgico de muitas das questões permanentes da arte no ocidente, a sua relação com a vida dita real, com a ideia de ilusão, o papel que tem de mediadora ontológica, do reflexo ao ideal. Daí que versos de Caldéron ilustrem esses problemas. Que certos mitos gregos apareçam não somente como “assunto” da pintura mas reflexos dessas preocupações. A tela é então uma cifra que passa a ser interrogada ao longo dos século, e cujas respostas múltiplas ganham corpo em novas obras de arte, elas também dignas de memória.

Mas além disso, outros pedaços vêm juntar-se a estas partes “narrativas”. Sublinhemos três, e “de trás para a frente”. No fecho do livro, temos a origem do título actual e pelo qual é mais conhecido, mostrada oblíqua e interrompidamente, numa conversa com Juan e Pedro Madrazo, pai e filho e responsáveis pelo Prado: em vez do título mais prosaico utilizado em listas reais (não existiam “títulos oficiais”), ficaria essa descrição que bebe do português (não é “Las Niñas”). No momento imediatamente anterior às duas páginas que mostrariam o acto de pintura dessa tela e os actos de observação dos seus retratados, uma página inteira coloca Luca Giordano a afirmar de forma titular e emblemática a sua sentença sobre essa tela, a de que se trataria da “teologia da pintura”. E, finalmente, num dos intróitos da narrativa, e para o colocar, a um só tempo, na condução de todo o ensaio mas também de lado durante a pesquisa, a figura de Foucault, em duas páginas que mimam a prosa do filósofo no seu breve texto sobre a tela em A palavra e as coisas. O texto de Foucault vai ao encontro da premente busca de Velázquez pela distinção da sua tarefa de pintor enquanto uma arte totalmente desligada de pesos e necessidades materiais: difícil de compreender hoje, sendo a pintura entendida como uma “arte nobre”, uma “bela-arte”, e não somente um ofício. Reubens tem preocupações materialistas, quer fazer dinheiro, mas o pintor espanhol eleva-se a outras dimensões, e Foucault, buscando uma espécie de justificação de interpretação na matéria própria da pintura, e não tanto na canga que lhe é externa (História, História da Arte, Sociologia, etc.), interrogando a rede de olhares e reflexos que se tecem na tela de Las Meninas, abre para nós o “lugar de pura reciprocidade” criado por Velázquez. E essa reciprocidade, pelo menos a dos elementos agregados no seio deste livro por García e Olivares, são re-apresentados num spread em que os “actores-interrogadores” (os que participam na diegese, mas outros também, como Bacon, os autores eles-mesmos) regressam à boca de cena com Velázquez.

Tal como no caso do poema de Milton, também não podemos entrar em diálogo directo com o imenso quadro que é alvo da atenção deste livro. Bastar-nos-á dizer que ele é uma espécie de “máquina de conceitos” a partir da qual García e Olivares despertam todos os elementos que compõem a sua própria obra. De uma forma ou outra, não há pormenor da tela que não tenha o seu papel na narrativa tecida em Las Meninas, desde os quadros no interior do quadro, à suposta ideia de que a cruz de Santiago, vermelha, foi pintada posteriormente pelo próprio punho de D. Filipe IV.

Não nos enganemos. Apesar desta construção fragmentada e heterógenea em termos de actores e momentos, todos esses elementos se encontram integrados de forma elegante, ou até subsumidos, para um mesmo programa: não tanto uma compreensão, muito menos uma explicação, mas uma exposição do quadro e a sua relação com o seu contexto alargado, histórico e artístico. De novo, Foucault: “...a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita.... Trata-se de duas coisas irredutíveis uma à outra”. É precisamente trabalhando nessa “incompatibilidade” que poderemos “permanecer no infinito da tarefa”. E o livro Las Meninas intenta criar um pequeno caminho desse mesmo infinito.


Javier Olivares faz uma escolha muito sábia ao dar continuidade à sua própria abordagem gráfica, altamente estilizada, flutuando entre vários registos (ora figuras desenhadas mais correctamente, ora mais próximo dos chibi, ora com pinceladas mais vigorosas), nunca procurando “imitar” a materialidade dos pintores envolvidos. Dessa maneira, não há jamais um desejo de confluência da materialidade do objecto-de-atenção e o discurso. Dessa maneira, mantém-se uma distância, absolutamente necessária para começar a ver e a pensar, dar a ver e a pensar. Que objecto é esse que ajuda a, na sua distância necessária, pensar e ver? Na cena protagonizada por Vallejo, este lê uma crítica num jornal à sua peça, na qual é acusado de não ser “autêntico”. Vallejo responde com uma risada, e comparando-se directamente à tela de Velázquez, afirmando, “Claro que não é autêntico, senhor.” E remata: “É um espelho.”

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