15 de novembro de 2015

PARIS: 15 de Novembro/Catharsis. Luz (Futuropolis)

A escrita deste texto escapará às regras mais ou menos instituídas deste espaço. Usualmente parece-me importante apagar-me da cena, já que não é a minha pessoa que conta na leitura, mas sim um entendimento – com que podem ou não concordar os leitores – de uma série de instrumentos e metodologias de leitura dos livros, os quais devem ter uma natureza própria, ainda que nunca descontextualizada. Assim sendo, este texto é mais uma crónica, que valerá pouco no campo da crítica, mas é necessária. (Mais) 

Estou em Paris. Cheguei dia 10 para vir dar aulas em Amiens. Uma vez que estou a trabalhar para uma pequena exposição que procurará falar do Charlie Hebdo, todo o seu universo de referências e os acontecimentos de 7 de Janeiro deste ano, vinha com a ideia de procurar alguns livros que pudessem ajudar a saber mais sobre a publicação, a sua história, as suas controvérsias e também qual a sua herança, sobretudo depois dos atentados. Naturalmente, conhecia a história de Mazurier, alguns volumes monográficos dos autores da publicação, já tinha visto os volumes grossos que coleccionavam muitas das suas imagens (o mais recente Tout est pardonné, e outras colecções de artistas em particular, volumes de homenagem), mas procurava livros que tornassem a discussões a enquadramentos maiores. Havia lido um livro de Zizek, entretanto traduzido em português (O Islão é Charlie?), e aqui deparei-me com vários volumes em torno dos acontecimentos, coleccionando factos e cronologias, discursos que tentam polemizar, contra e favor de todos os pontos de vista, que esgrimem argumentos em torno da liberdade de expressão, da erosão ou da coesão das comunidades, nacionais, religiosas, culturais, políticas, identitárias, etc., a ideia da união nacional, europeia, mundial, a tensão entre uma história feita de desequilíbrios e uma herança colonial e os valores propostos pelo republicanismo, a democracia e os três princípios basilares da Revolução Francesa que tanto influenciaram o mundo: igualdade, fraternidade, liberdade. Numa entrevista de há uns dias, Juliette Gréco ria-se, e dizia que a “igualdade” já não está na mesa há algum tempo. Ela brinca, mas não dirá a verdade? Há também os romances escritos à pressa que extraem ficções a partir do evento, assim como todos os outros, mais cuidadosos, que criam ficções políticas mais ou menos decalcadas da realidade imediata, desde o governo “islâmico” do romance de Houellebecq à banda desenhada La Présidente, de François Durpaire e Farid Boudjellal.



Mas há mais. Nos últimos meses, têm saído livros que recuperam a sua história particular, as origens, as personalidades dos fundadores, Choron e Cavanna. De Charb, postumamente, foi publicada uma espécie de carta-manifesto em que discute a diferença entre ser-se crítico acerbo de uma religião e o racismo, sopesando-se a intolerância, a crítica política, a capacidade de expressão. A ler. Alguns dias antes de chegar, havia sido lançado Mohicans, de Denis Robert, uma espécie de investigação, como ele diz, da “delapidação” da herança corrosiva da publicação e seus artistas-chave. Por um golpe de sorte, no próprio dia em que cheguei eram lançados pelo menos dois livros que me parecem ser importantes. Um volume das crónicas de Patrick Pelloux, especialista em urgência médica e cronista do Charlie Hedbo há anos, e uma das primeiras testemunhas do horror de 7 de Janeiro; o volume, Toujours lá, toujours prêt, contém uma introdução que serve de testemunho disso mesmo, e é curioso contrastar a capa deste último volume com as dos outros: a gravidade é visível, a leveza, dissipada. E Philippe Val, ex-director da revista, responsável por publicar as caricaturas de Maomé mas também por despedir Siné, e depois estranhamente tornando-se director da rádio France Inter, sob a benesse de Sarkozy, publica a sua visão dos factos, C'était Charlie. Vários pontos de vista, seguramente que contrários entre si até, e que se vão acumulando na pilha a ler.

Mas um dos livros imediatamente lidos foi Catharsis, de Luz. Um livro que pode ser lido de várias maneiras: como diário, como memória autobiográfica, como exercício de exorcismo, como fonte de salvação pessoal e artística. O título, claramente, confessa o seu fito.

Li-o, e comecei a tomar notas para falar sobre ele. Mas ao mesmo tempo olhava à minha volta em Paris e tentava compreender algumas coisas. Estava ciente da existência do programa Vigipirate, que aumenta o nível de segurança nas ruas. Era algo surpreendente, mas compreensível, ver muitos polícias em locais estratégicos, alguns dos quais com armamento que imagino ser mais pesado que o usual. À entrada de museus e outros locais públicos, passava por um pequeno ritual que pensava somente existir nos aeroportos: raio-x, tirar todos os objectos metálicos dos bolsos, despir o casaco, ser revistado brevemente.

A história de Luz e a sua relação com os ataques de 7 de Janeiro são conhecidas. Membro da redacção, deveria ter chegado cedo, onde as reuniões, como sempre, têm lugar para discutir os temas e decidir o que fazer e debater nas páginas do jornal, assim como se torna ocasião para desenharem como quem esgrime, até se chegar a capas e imagens a espalhar pelas páginas. Mas era o seu aniversário, a sua namorada preparou-lhe um pequeno-almoço especial, enrolaram-se, ficaram na ronha. Luz parte já tarde para a reunião. É graças a esse atraso que ele acaba por ficar do lado de fora do ataque endereçado e que vitimaria os seus colegas Charb, Honoré, Tignous, Cabu e Wolinski, assim como Elsa Cayat, Bernard Maris, Mustapha Ourrad, Michel Renaud, o guarda-costas de Charb Franck Brinsolaro, o segurança Frédéric Boisseau, e, já no exterior, o polícia Ahmed Merabet.

O que quer dizer sobrevivência? Significa alívio? A possibilidade de continuar a viver? Estar num patamar “acima” da vida que outros perderam? O livro é dedicado “àqueles que partiram. Para aqueles que ficam”. Luz não consegue desenhar. Nem sequer abrir a mão. Não sente desejo sexual, nem consegue trabalhar bem. Não tem paciência para os outros. Não tem ideias. Tem sonhos e não consegue dormir. Vê-se rodeado de três guarda-costas e gostaria de passear sozinho no meio de um jardim. Não sei que experiência é esta.

As notas tinham sido lançadas, as partes do livro compreendidas, o encaixe na vida quotidiana actual parisiense ainda estava vaga, mas a forma começava e preparava-me para escrever: sobre o livro, somente. E continuava a navegar por outros livros, a que tinha acesso, graças a várias bibliotecas privadas, livros que não havia lido ainda, referências antigas a que nunca tinha tido acesso, títulos e autores desconhecidos por mim, títulos recentes que me despertavam a curiosidade mas que queria ler. O grande território da banda desenhada, pelos seus troços de géneros, de entretenimento, de abordagens de maravilha visual, etc. Estes mais sérios, ancorados na realidade e auscultando os problemas económicos do dia, estes outros mais leves, abandonando-se numa qualquer fantasia mas que despertava algum prazer.

E na noite de Sexta-feira dia 13, no meio da leitura do que agora me parece uma parvoíce, chega-me uma mensagem de telemóvel, de uma agência noticiosa portuguesa. 10 mortos em Paris num ataque. O sobressalto é imediato, mas não a reacção. Esta é lenta. Desço dois andares e interrompo a minha anfitriã, que estava a ver uma coisa qualquer na televisão, uma série. “Não sabes o que está a acontecer?” “Não, o que foi?” “Muda de canal.” E até às tantas da manhã, vamos tentando perceber o que está a acontecer. Afinal são 15 mortos. Em três sítios. Fusillade. Não, há também detonations no estádio. E algo sobre um concerto? “Uma banda de hard-rock.” Prise d'otages. “Heavy metal”. Que local é esse? São os Eagles of Death Metal. “A sério? Hey, até gosto dessa banda... não é nada hard-rock...” As frases de idiota saem da boca sem passar pela caixa registradora. O número de mortos vai aumentando, assim como as descrições. As frases de testemunhas, infelizmente balbuciadas, não adiantam muito, e apenas confirmam que a experiência nem sempre pode permitir a melhor das expressões. Analistas e comentaristas empilham-se. Opiniões politizadas e aproveitamentos começam quase de imediato. Pelos vistos a imbecilidade dos políticos é mesmo universal.

O Libération não sai aos Domingos. Hoje saiu ao Domingo. Uma capa preta, apenas um ramalhete de rosas no canto inferior esquerdo. Não há parangonas. A fotografia dá a volta à capa, e atrás vemos um post-it numa porta: “Je suis Paris.” Mas lá dentro há: “Le pire des scénarios.” Engraçado, scénario é a palavra que se usa para “argumento” quando se fala de escrita para a banda desenhada e ainda há dois dias estava a falar disso aos alunos de Amiens. Argumento tem outro sentido em português, de elemento racional articulado numa discussão. Mas quais são os elementos racionais a esgrimir neste momento? Estava-se à espera? É compreensível? Veja-se o que tem sucedido na Síria, no Iraque, do Iémen. Je suis Quénia, Beirute, saudita? Quase todos os dias onde morrem inocentes? E os ataques coordenados por racistas aos refugiados, em Calais, onde proclamavam que “Diversidade é o nome de código para o genocídio dos brancos” e “Anti-racismo é o nome de código para anti-branco”? E a conivência dos estados europeus às potências do petróleo? E isto e aquilo? Ou, por outro lado, temos de bradar aos céus “morte a estes filhos da puta”, oferecendo este nome aos muçulmanos, ou aos árabes, ou somente aos terroristas, ou aos fundamentalistas, ou a a homens de tez mais escura, de barba? Je suis humain, fraternité

A parvoíce acumula-se muito, muito bem. Goscinny e Gotlib fariam belos Dingodossiers. Que fará o Charlie Hedbo? Esperemos pela próxima semana.

Mas Luz já fez este livro, em relação ao que sucedeu em Janeiro. Ao que sucedeu aos outros. E a ele próprio. Catharsis divide-se em pequenas histórias. Não há propriamente um arco coerente. São como que pensamentos temáticos, divididos por memórias do dia 7 de Janeiro, quase uma escrita autobiográfica e diarística, mas há também momentos que o relançam na infância, ou quando começou, aos 20 anos, a trabalhar no jornal. E uma espécie de comentário ao que foi sucedendo, à empatia e simpatia dos outros. Os políticos em primeiro lugar, que de repente pareciam solidários com as posições da CH, apesar dos processos judiciais (mas é assim que funciona o Estado de Direito numa democracia!). O milagre da pomba, defecando em Hollande no momento em que cumprimenta Luz, finalmente explicado. As obras de arte e cartoons de homenagem, quase sempre sob a forma de lápis a sangrar, feridos, “que não usamos mais”, diz Luz, incrédulo. E as pessoas que dizem “compreender” e estar “com eles”, mas ao mesmo tempo vêm sugar a energia vital de Luz e os “que ficaram”.

Na verdade, podemos encontrar um arco que encerra este exercício de catarse. A primeira história mostra Luz a falar com os agentes de polícia, interrogando-o para o processo de investigação, e Luz faz uns rabiscos no papel. Desenha incessantemente o mesmo bonequinho, um homem imóvel, de olhos esbugalhados, que na verdade são a maior parte do seu corpo. Mas Luz diz, “para dizer a verdade, não vi lá grande coisa”. Nas páginas que se seguem, acumulam-se pesadelos, recordações, comentários, episódios da sua vida pós-atentado, onde menos do que tentar compreender as razões ou o “contexto sócio-político”, e muito menos o de “justificar” o trabalho do Charlie Hebdo, o autor tenta recuperar as razões para desenhar e dar continuidade aos seus rabiscos. Não se enganem: Luz continua a gozar com que merece ser gozado. Os assassinos de 7 de Janeiro aparecem, bien sûr. E há aguarelas, aguadas, apontamentos de cor, traços de tinta das mais diversas espessuras, alguma preocupação em construir exactidões gráficas para cada capítulo que quer contar. Fala-se de medos e de desejos, muito, muito sexo, corre sangue e raiva, acumulam-se riscos.

Cá fora, há muito menos pessoas nas ruas. Os museus e lojas estão fechados, não há jogos nem encontros. Mas as pessoas ouvem música, falam, jantam juntas e riem-se. Há riscos, mas não se risca a vida. Está-se triste e cabisbaixo, mas não podemos comparar a nossa experiência, distante apesar de tudo, daquelas pessoas que ainda hoje estão à porta dos hospitais para saber se os seus estão entre os sobreviventes ou os mortos dos ataque coordenado. Há números: em menos de 20 minutos, entre as 9h20 e 9h53 da noite, em sete locais de ataque no centro da capital, dez suspeitos, 129 mortos, centenas de feridos, alguns podem aumentar ainda o outro número. Mas apenas depois da meia-noite é que a polícia entra no Bataclan, para terminar a situação dos reféns. O número é horrível, de mortos e feridos, mas ainda não se sabe tudo. Os hospitais estão cheios: de feridos, de pessoas que perguntam, de quem venha oferecer sangue e ajuda. Toda a noite as portas de estabelecimentos e de casas particulares se abriam para ajudar que precisasse de se refugiar. “Tenho medo de ter medo”, diz um entrevistado ao Libération.

Na verdade, Luz tem algum medo. Em Setembro, deixaria a publicação. Tendo feito este livro entre Janeiro e Março, ainda não se saberia que ele abandonaria o seu emprego. Apenas o futuro dirá o que ele fará, como trabalhará, em que condições e que tipo de metodologia. Pode-se até pensar num desfecho trágico. Mas a última imagem mostra-o novamente rabiscando os seus bonequinhos. Com uma diferença: eles mexem-se agora, parecem caminhar. “Ils ne sont plus plantés dans la realité, ils avancent”, diz a namorada.

Boa palavra de ordem. Avancemos.
Nota final: agradecimentos às famílias De Baecque e Wadlow, pelo empréstimo dos livros, por abrirem as portas, pela ficelle e os queijos, por tudo o mais. 

1 comentário:

Isabelinho disse...

Fabulosa crónica de quem estava perto do olho do furacão e de mais do que uma maneira. Espero que não te sintas muito afectado, Pedro, mas se a resposta é sim, como suspeito, que posso dizer? Muito pouco ou nada em vez da banalidade da praxe. Um abraço!