27 de fevereiro de 2015

Celeste. I. N. J. Culbard (Self Made Hero)

Gostaríamos de começar por dizer que a resolução narrativa deste livro não é, de forma alguma, satisfatória. Em muitos aspectos até, é uma narrativa falhada. Os elementos que a comporiam e que preparariam uma estrutura unitária, no que diz respeito à coordenação das suas três “linhas de intriga”, são dissolutos, e jamais se coalescem numa forma final, e a explicação cabal dos misteriosos eventos que testemunhamos nunca surgirá. Todavia... o problema está precisamente nesse ponto de partida. É que Celeste não é totalmente uma narrativa. (Mais) 

Em termos de trama, o novo livro de Culbard, que desta feita se responsabiliza globalmente pela “história” e a sua forma visual, ao contrário da série The New Deadwardians, com D. Abnett, ou as adaptações de Lovecraft e outros autores, segue três personagens. Um jovem japonês (que apenas subtil e extratextualmente saberemos que se chama Yoshi e é um mangaka) que se decide suicidar na floresta de Aokigahara, perto do monte Fuji (a famosa “floresta dos suicidas”), uma jovem mulher albina londrina que se apaixona, em coup de foudre, por uma outra rapariga que encontra no metro, e um homem chamado Ray, que se encontra num engarrafamento em Los Angeles quando recebe um telefonema da polícia com um qualquer recado sobre a mulher.

Mas o telefonema a Ray é subitamente interrompido, e quando Ray se dá conta, em seu torno todas as pessoas desapareceram. A estrada está cheia de viaturas, mas não uma única alma. Com a excepção de outro homem, que encontra agredido, ferido, atado e fechado no porta-bagagens de outro automóvel. O mesmo sucede às duas raparigas no metro, como se fosse o seu olhar cruzado a extinguir os traços dos outros seres humanos num repente. E o suicídio de Yoshi falha, fazendo-o tombar e, ao atravessar a floresta, a ir-se cruzando com cada vez mais criaturas fantásticas tiradas do folclore japonês, os yokai. Esse aparente evento global coloca estas personagens nos espaços familiares que sempre habitaram, mas com esse efeito de imensa estranheza: as estradas de Los Angeles e as ruas de Londres totalmente desprovidas de presença humana (e também animal), a floresta de Aokigahara prenha de formas fantásticas que incessantemente fogem de um qualquer perigo inominável.

A estrutura do livro convida precisamente a uma leitura rápida, mas complexa, onde o suspense está presente como um moto contínuo. Ou mais do que isso, como veremos. As histórias jamais se cruzam. Não há nenhum ponto de contacto entre estas personagens. Diegeticamente falando, pois em termos de composição visual, existem momentos em que as três linhas convivem na superfície das páginas, sobretudo no início e no fim das acções, procurando criar “ecos” simbólicos entre elas. Ou uma frase de uma personagem é dita e continuada sob a forma de legenda na “linha” visual da história de outra. Mas em termos de encontro das personagens, isso jamais sucede.

Uma cena inicial faz-nos atravessar o sistema solar até “aterrarmos” no sopé do Fuji, acompanhando uma pétala rosa, que cai ao pé de Yoshi. Depois veremos outras pétalas, caindo na mesa de cabeceira da mulher albina, e na boca de Ray, que está a dormir no carro, num deserto em L.A. No “fim” das histórias, veremos as pétalas evolando-se novamente em direcção ao espaço sideral. O acompanhamento de cada história, então, é feito de forma intermitente, criando um ritmo incessante de (três) acções paralelas. Estas são quase sempre, por princípio estrutural, apresentadas em cada duas páginas em spread, em que o autor experimenta todas as soluções, de vinhetas horizontais a verticais, a outras combinações. Nenhum dos segmentos ultrapassa o máximo das 6 páginas seguidas, mas a esmagadora maioria delas fica-se pelas 2, o que leva a “saltos” entre as linha narrativas bem rápidos, e incutindo uma certa urgência e velocidade à medida que lemos o livro. Dessa forma, portanto, é como se cada pequeno cliffhanger (em cada segmento) fosse um som percutido na malha inteira do livro, aumentando essa ideia de suspense.

Do ponto de vista da produção, é muito possível que Culbard tenha construído este seu projecto a partir de fragmentos textuais que desejaria empregar, fragmentos os quais podem ser identificados como pertencentes a vários géneros familiares. Afinal de contas, encontraremos aqui uma dimensão mágica e fantástica algo próxima do que experimentara nas suas adaptações de Lovecraft. Haja a presença de “monstros” ou não (no caso da “linha” de Yoshi há mesmo algumas criaturas que estão próximas da indecibilidade biológica típica de Lovecraft), o afecto do horror está presente em muitos dos breves episódios das personagens. Mas no caso de Ray há ainda elementos típicos da novela policial ou do thriller, com identidades erróneas, súbitas revelações, e mistérios. E no das duas mulheres jovens, há sem dúvida uma subtil homenagem a todo um historial de romances de amor urbanos, em que as personagens, ao se apaixonarem, atravessam os espaços totalmente “alheias” do resto do mundo, como se este desaparecesse...

Em termos visuais, não há muito que queiramos acrescentar face ao que foi dito já no livro anterior. Talvez importe dizer que o desenho das figuras se encontra aqui ainda mais simplificado, os objectos e espaços reduzidos a breves linhas, como se uma estenografia se tratasse (“isto é um carro”, “esta é uma cozinha”, etc.), recordando algumas das formas de “apagamento” de pormenores que um Steve Yeowell também cumpre nalguns dos seus trabalhos. Há por vezes posições perras, ou expressões menos claras, mas tudo é feito no interior de uma economia, digamos assim, que deseja uma maior celeridade na combinação das personagens, e no avanço dos acontecimentos.

Na ânsia da necessidade que os seres humanos têm em reduzir tudo aquilo com que se confrontam em categorias familiares, padrões naturalizados – em dois momentos, alguns personagens falam do(s) fenómeno(s) conhecido(s) por apofenia/pareidolia – os leitores de Celeste poderão empregar alguns dos elementos propostos por Culbard para encontrarem “uma solução”. Afinal de contas, a escolha em pautar as três histórias com um movimento de aproximação e afastamento da Terra pelo espaço, as continuas cenas extra-histórias que remetem ao espaço, à Lua (recordando precisamente a Lua das Dreamlands, habitada por Nyarlathotep), e a presença das pétalas poderia ajudar-nos a interpretar esta história como uma ficção científica em que as pétalas seriam criaturas capazes de poderes extraordinários, como os de fazer desaparecer as pessoas e criar situações fantásticas junto às personagens – há momentos em que o “universo” da história aumenta, revelando outras personagens isoladas algures. Mas se o ponto de partida parece ser uma premissa fantástica relativamente plausível (e que informa tanta ficção dos nossos dias, com vilas isoladas por redomas, mortos que regressam à vida, zombies que isolam comunidades, eventos que dão capacidades extraordinárias a algumas pessoas, sobreviventes de um acidente de avião numa ilha, etc.), Culbard vai aumentando o grau do fantástico, misturando então, aos géneros já indicados, elementos que nascem no psicadélico, surreal, onírico, etc., que se torna particularmente relevante à luz das maneiras como cada uma das três histórias é “resolvida”, isto é, como é que cada uma das personagens “regressa” às suas vidas usuais (sobre as quais nada diremos). De uma forma simplista, no fim o leitor colocar-se-á a questão, “aconteceu mesmo ou foi um sonho ou ilusão”?

Se se aceitar essa ideia, porém, começaria uma nova bateria de questões. Por qual razão essa suposta “espécie extraterrestre” faria esta experiência? Tratar-se-ia de uma forma de observar os limite do comportamento humano? Compreender em que medida é que as pessoas, desprovidas das alianças sociais a que se vêem obrigadas no dia a dia, resolveriam conflitos, aproximações e descobertas do outro, situações extremas, do ódio ao amor, dos medos mais profundos à absoluta perplexidade? Pois esses são na verdade os “temas” principais de Celeste, para além dos elementos objectivos que ocorrem no livro. Estas três intrigas narrativas, sobre a relação amorosa nascente de duas mulheres, de um estranho e violento antagonismo entre dois homens e o mergulho de um jovem homem num mundo de fantasia servem sobretudo para explorar os limites dos afectos (sobretudo mais eficaz na história de Ray e da mulher albina, uma vez que existem discussões verbais mais complexas, afectando as emoções e a experiência da memória, ao passo que a de Yoshi centra-se mais em sequências de acção). No cômputo final, então, Celeste é menos uma “narrativa”, do que uma espécie de discurso em “corrente de consciência”, mas em vez de termos uma única consciência humana, seria distribuída por três personagens num enquadramento exterior, estranho e fluido.

Ainda que não estejamos no território experimental e ambíguo, poético, de um Dino Buzzati, de uma Aidan Koch, Warren Craghead III, ou outros, há em Celeste um peso suficientemente impressionista que o convida a uma leitura sob a óptica da “poesia em banda desenhada”.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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