15 de janeiro de 2015

Erzsébet. Nunsky (Chili Com Carne)

Qual é o prémio do mal? Não será o seu próprio exercício, a recompensa imediata do que entende como prazer próprio, independentemente das consequências que poderá ter? Não será indiferente ao injusto, que perpetra os seus crimes num presente, a justiça a que não atende no futuro? E qual é o papel do leitor, do espectador, da testemunha mesmo de um objecto artístico, ao enfrentar os mecanismos e ritmos desses mesmos males? Erzsébet é, possivelmente, uma exploração, dura e cruel, dessas perguntas. (Mais) 

É curioso que, num momento em que as estratégias recentes em relação a alguns autores se entregam a exercícios de publicitação do seu “regresso”, isso também se verifique em relação ao autor português que assina como Nunsky. Se as suas prestações foram esparsas e relativamente obscuras nos anos 1990, bastaria recordar “88”, uma história com mais de 30 páginas e publicada em 1997 como o número 13 do fanzine Mesinha de Cabeceira para o colocar no mapa, e de forma perene. Essa história, que seguia uma mesma tendência inaugurada pelo Love & Rockets no seguimento de uma cultura afecta ao rock underground (se bem que em vez do hardcore punk californiano dos autores chicanos, se aproximava mais de uma espécie de Swans ainda mais destrutivos?), não deixava de ter uma dimensão trágico-romântica, que volta a ser o tema central deste novo livro, mas onde o romântico está presente antes na sua dimensão histórica e o trágico se aproxima do monstruoso.

O título é o nome próprio da personagem, que corresponderá ao português “Isabel”. Membro da família nobre dos Báthory da Hungria do século XVII, a condessa Ecsedi Báthori Erzsébet ficaria famosa nos anais da história pelo seu infame papel no desaparecimento, tortura e assassínio de dezenas, senão centenas, de raparigas da sua região (os números exactos nunca foram precisos), supostamente para seu gáudio pessoal. Num contexto já violento do seu tempo, dada a guerra entre a Hungria e o Império Otomano, os crimes de Erzsébet Báthori chocariam a cristandade a que pertencia, e não tardariam muito os mitos em torno das suas acções, fazendo-a banhar-se no sangue das raparigas para se manter jovem, assim como aproximá-la de rituais satânicos e até mesmo “vampirizá-la”.

Nunsky não está muito preocupado em apresentar uma versão mais histórica ou mais fantasiosa, mas um equilíbrio efectivo entre as duas tendências (que não são necessariamente “opostas”). Utiliza provavelmente várias fontes e descrições dos crimes da condessa, e posteriores lendas tecidas em torno deles, para criar uma sua própria versão. Na capa de trás, a condessa Báthory é comparada a Gilles de Rais e ao Príncipe Vlad Draculea, o que demonstra desde logo a necessária negociação entre crimes reais, posteriores construções hiperbolizadas, lendas, e ficção tão efectiva – como no caso de “Drácula” - que se torna depois difícil de destrinçar os elementos verdadeiramente verificáveis sob o prisma da ciência histórica e os elementos fictícios. Mas enfim, o que importa, neste campo em particular, é escolher um caminho e cumpri-lo da melhor forma. Nesse sentido, Erzsébet escolhe o da ficção negra, em todas as suas possibilidades de horror.

O autor procede por pequenos saltos e elipses. O livro não apresenta nem uma narrativa totalmente fluida, num sentido policial do termo, isto é, em que tudo é explícito e apresentado, nem tampouco reforça a inteligibilidade dos eventos através de informações textuais – nota do autor, narrador externo, documentação extratextual, etc. Sendo possível procurar informações histórica, ou semi-ficcionada, noutras fontes, a leitura de Erzsébet pretende antes centrar-se nos eventos que representa, numa escolha económica.
Ainda assim, temos aqui o arco quase completo da sua vida, começando alguns meses antes do seu casamento com o também nobre Ferenc Nádasdy, ou Ferkó, como é tratado familiarmente, até ao seu julgamento e pena, muito depois da morte do marido. Não se exploram com qualquer detalhe as batalhas contra os muçulmanos, as intrigas palaciais, as circunstâncias da morte de Ferkó, os filhos de ambos quase surgem apenas por tabela. Muitos desses pormenores biográficos ou episódios têm de ser compreendidos no intervalo de duas ou três vinhetas, em leituras atentas, em suposições. A atenção não se divide, elegendo a emergência das tendências sádicas, violentas e destrutivas de Erzsébet acima de tudo.

As primeira cenas dessa violência irrompem sem qualquer explicação, nem o autor procura criar relações de causa-consequência psicológica, a menos que vejamos no “aborrecimento” que ela acusa a mono-causa dos seus divertimentos cáusticos. Estes, todavia, vão como que aumentando de grau de intensidade e, graças a cruzar-se com uma velha a que talvez não seja errado chamar de “bruxa”, chamada Dorkó, atingem um grau máximo de paroxismo e atrocidade, sobretudo quando o sangue derramado das vítimas passa a ser visto como elixir de juventude e poder, mas também objecto de uma espécie de inveja e ódio sem sujeito. Há uma cena que parece mostrar uma hesitação da parte da protagonista perante o “preço” dos seus desejos, mas rapidamente ela abandona-se a eles. Isto é, há uma espécie de “loucura” que se começa a instalar, mas ela é vaga e imprecisa. Muitos momentos revelam-se fantásticos, mas é complicado apercebermo-nos se se tratam de alucinações febris de uma determinada personagem (nem sempre Erzsébet) ou “realidade” (fantástica), mas é essa mesma imprecisão que se torna central na narrativa.

Essa imprecisão tem também um domínio religioso complexo, uma vez que Erzsébet parece continuar a crer em Deus (“Istén”, já que o autor usa profusamente termos húngaros), mas existem bastas referências ao Diabo (“Ördög”): uma releitura talvez pudesse apontar, quem sabe, que no fundo ambos seriam não tanto faces de uma moeda, criando-se o mais puro dos maniqueísmos absolutos, mas simplesmente formas de entendimento de um mesmo espectro...

Uma outra economia do livro está nas palavras, ou na matéria verbal. Quase metade das pranchas é desprovida de diálogos ou de qualquer “som”, se bem que algumas sejam interrompidas por onomatopeias. Todavia, mesmo algumas das pranchas representando as torturas mais hediondas optam por não revelar nada da dimensão sonora, o que as torna particularmente cruéis e intensas, para além das estratégias visuais escolhidas (o traço, a cor, o enquadramento, etc.). e quase todas as outras pranchas, mesmo nas cenas mais convencionais, de diálogos entre as personagens, poderá conter uma ou duas vinhetas em que o silêncio marca não apenas uma pausa na acção mas um qualquer choque ou desvio emocional das personagens.

Por outro lado, porém, há momentos pesados de texto, sobretudo quando cartas são trocadas entre as personagens (desconhecemos se citando documentos reais que tenham sobrevivido), tecendo como que súbitas ilhas densas dos sentimentos e acontecimentos. Tudo isso concorre então para essa decisão ambivalente entre acontecimentos reais (mesmo que diegéticos, repetimos) a projecções fantasiosas.

O traço de Nunsky mantém-se como havia surgido em “88”: contornos grossos, negros e fechados, criando objectos gráficos de grande solidez, irmanável a Charles Burns, comparação recorrente, porque advindo de uma abordagem técnica na qual encontraríamos também Michael Kupperman, João Maio Pinto, Igor Haufbauer, ou outros. Uma cena como a que mostramos neste parágrafo parece emergir de uma espécie de variação estilística sobre cartas de jogar, como Jason Little tentou em Jack's Luck Runs Out.

O autor usa aqui uma ou duas gradações de cinzentos, complementando o contraste absoluto entre o branco e o preto, de maneira a criar volume e texturas, aumentadas também pelo aturado e brilhante trabalho de padrões, tramas, linhas cruzadas expressivas. A composição, estritamente ortogónica mas em variações retóricas, é contrastada com o uso de enquadramentos e planos oblíquos, as formas arrendondadas e as linhas diagonais, o que incute um estranho equilíbrio entre formas estáticas hieráticas com um dinamismo dramático, perfeitamente apropriado à temática (que lá está, tem mais afinidades com “88” do que poderia aparentar à primeira vista).

A valência pictórica do autor, porém, não se deverá encerrar nessa abordagem, já que a capa mostra um desenho a grafite muito mais suave e livre.

Condenada a ser emparedada, o autor mostra a cena final apenas através da sequência visual de três vinheta numa única página. Segue-se porém, uma espécie de salvação. Vemos Erzsébet arranjando-se de novo, em toda a sua glória e beleza fria e nobiliárquica, como que atravessando a superfície de um espelho feito líquido e a ser recebida num fantasioso palácio, regressando à sua posição de poder e fausto. Traduz isso a loucura final, na solidão? Alguma realidade paralela a que teve acesso? Apenas uma nota fantástica da parte do autor, na tentativa de premiar a vilã?

Nota final: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro. 

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