5 de dezembro de 2014

Sepulturas dos pais. David Soares e André Coelho (Kingpin Books)

Até certa medida, podemos afirmar que Sepulturas dos pais é uma espécie de retorno, ainda que talvez apenas a um nível superficial, aos primeiros livros de banda desenhada de David Soares, quando ele próprio os desenhava. Sem descurar os anteriores livros em colaboração com outros desenhadores, a leitura deste volume recorda aquilo que, já em 2002, escrevíamos sobre os livros então disponíveis de Soares, sobre um “chiaro-scuro [sic!] que assume uma vitalidade ao serviço do fantástico e do terror” (flirt no. 26). O percurso e “personalidade gráfica” de André Coelho é aquela que mais partilha elementos com Soares-o-artista de entre os seus colaboradores, ainda que este tenha dividido o seu percurso entre uma ultra-estilização próxima de Ted McKeever (o dos anos 1990) e uma figuração mais redonda. Porém, mesmo que Coelho seja um artista mais moldado e pictural, também Soares explorava os “excessos” materiais – da tinta, das correcções, de letras e símbolos não-diegéticos, etc. - para aumentar a textura visual dos seus livros, aspecto que Coelho leva a um grau mais elevado. Não aqui, porém, onde antes opera sobretudo em nome de uma paradoxal “clareza”. (Mais)

Este livro apresenta-se como uma história relativamente curta e até mesmo linear, mas cujos contornos convolutos e perversos se encontram no seu interior, como uma espécie de cefaleia, semi-localizada mas que influi sobre toda a vontade do corpo. O putativo protagonista, um homem aparentemente simples, rude e pobre, habitante de uma qualquer vila piscatória portuguesa, discorre o melhor que pode sobre a sua experiência, desenrolando uma história a que temos acesso visual. A sua infância, o seu encontro primeiro com uma espécie de poder de animação das areias, a sua progressiva solidão social, o cruzamento com uma jovem mulher chamada Janeiro que vive uma sexualidade livre e quase selvagem, o inevitável embate com o maravilhoso e a irresolução da parte dos detentores do poder do racionalismo e da lógica, que não compreendem, nem poderiam, essa mesma camada de maravilhoso.

Esses elementos, assim apresentados de forma solta, quase deslocada, não dão a ver as linhas que os unem no pano estendido, que é esta pequena obra, suficientemente pando sob o vigoroso vento da narração, mas não sem que se apresente com algumas dobras suficientes onde se estendem algumas sombras, áreas de obscuridade que permitem que se instale alguma ambiguidade.

Essa ambiguidade começa precisamente na personalidade de Borges, o protagonista. Mesmo nas obras em que Soares pode ter mais espaço e desenvoltura para uma moldagem mais profunda das personagens, o escritor não é alguém que revele preocupações demasiado estendidas sobre a psicologização das suas personagens. Pode ser revelado um momento-chave das suas infâncias, um episódio particularmente marcante, a “origem” do seu contacto com o maravilhoso – tudo passos presentes nas obras de Soares, e não ausentes de Sepulturas -, mas isso não serve de forma alguma para que se crie uma espécie de terreno empático contra o qual os leitores poderão jogar as suas próprias projecções. De facto, o livro não convida jamais a uma tese de “identificação”. É certo que todos nós teremos experiências que nos permitem fazer os típicos exercícios cognitivos que ocorrem quando da leitura de uma obra, desde associação a memórias, projecções e presunções de comportamentos, etc., mas há uma distância incontornável, imovível, uma descontinuidade intransponível entre estas personagens e o leitor. Não é apenas o trabalho gráfico de Coelho que apresenta uma expressividade fria, empedernida, como se se tratassem de fotografias documentais, não é apenas a linguagem bruta e obscena empregue pelas personagens que nos fazem afastar de uma ideia de “simpatia”, é a própria crueldade e certa frieza com que se tratam umas às outras, e até mesmo a falibilidade delas em demonstrarem aquilo que pensam ser afectos. Podemos dizer que David Soares não está nunca interessado em criar perfis psicológicos, caminhos de compreensão, e muito menos de comiseração pelas personagens. Há algo clínico no comportamento das suas personagens, que torna mais gélido o choque com a dimensão de horror que elas comportam em si. Como se lhes fosse impossível não caírem em gestos duros e de consequências dolorosas.

Essa espécie de frieza está assente numa materialização das próprias emoções, e no afastamento de uma redenção por uma qualquer hipotética transcendência. Afinal de contas, os livros de Soares – e por razões sobejamente conhecidas, não pensamos ser uma ofensa trata-los como tal, quase no perigo de secundarizar o gesto dos artistas – inscrevem-se numa tradição de literatura (e não só) que se elege a “magia” como sua matéria principal, não o fazem (ou não apenas) com o intuito de apresentar modelos de fantasia e distracção, nem tampouco no de que providenciar uma espécie de redenção catártica face aos rostos mais negros da humanidade.

Como já havíamos discorrido noutra ocasião, a propósito dos romances de David Soares, a magia neste escritor não é de forma alguma sinal de uma transcendência, mas antes um elemento imanente ao mundo (ou pelo menos aos mundos ficcionais que ele apresenta), paralelo à vida e preocupações humanas. O transcendente não deixa de espelhar sempre a vontade dos homens, e por isso, mesmo que haja um diálogo permissível e permeável entre estes e o domínio da magia (como caso de Cerasta d'A última grande sala de cinema, ou a Salta-Pocinhas de Lisboa triunfante), esta não se pauta nem se subsume aos desejos daqueles, não lhe pertence. A magia, em Soares, não faz parte de um círculo do maravilhoso que tenha o homem por seu objecto. Esta possibilidade de uma areia animada, de criaturas que emergem da areia, de uma qualquer energia que a anima, não é anúncio enigmático de um qualquer mito por vir, mas uma força natural que existe e por ali passa como electricidade, e que em nada é alterada ora pela presença de Borges ora pela sua ausência, ora pela vida social pobre e trágica dos pescadores ora pela fortuna gentrificada do urbanismo hoteleiro. Por isso, até o próprio conceito de falar de “animação” fará suspeitar de uma alma (mais uma vez, uma projecção humana) que não está presente. Quando se escreve que a magia é a sua matéria, a palavra matéria deve estar presente na sua acepção palpável, molecular, quase transaccionável (mesmo que essa virtual transacção esteja fora do alcance dos homens por uma película finíssima).

Depois da leitura de Sepulturas, a violência espectacular de Mucha e sobretudo de Esquilo, para mais esta última sublinhada pelos desenhos coloridos e até ingénuos de Pedro Serpa, se torna mais vincada. Os monstros do livro presente apresentam-se menos directos e violentos, mas a sua eficácia vigorosa apresenta-se a outro nível. Num dos seus livros mais acessíveis, Monstros, o filósofo José Gil, bebendo mesmo da raiz etimológica dessa palavra, explica como “[o] monstro vem avisar e encher os homens de angústia”. Contudo, não será mais avassaladora essa angústia quando o monstro surge e parte sem que torne clara a sua suposta comunicabilidade? Quando não há mensagem possível de decifrar? Mesmo que nos parece que haja uma qualquer aliança, jamais explicada, entre essa animação e Borges, é este mesmo quem nega a possibilidade do seu controlo. Da sua vontade sobre ela e eles (a animação, os monstros).

Borges é mesmo explícito nessa ideia, é ele mesmo quem a planta junto ao leitor, o que derrota aquela nossa afirmação anterior de o entender como uma personagem “simples”. Ou seja, há aqui várias formas reveladas da inteligência humana, e talvez um grande sinal desta seja a compreensão e abandono de julgar que algo vela por nós. Parte da sua “crueldade” está em querer evitar os sentimentos, as tais “coisas” que ele intui. No fundo, Borges entende aquela “autonomia” de que o sociólogo Richard Sennett fala em Respect in a World of Inequality, a qual “significa aceitar no outro aquilo que não entendemos, que é uma igualdade opaca”. Repare-se como Borges, no fundo, não usa os “poderes mágicos” para nada, não as reduz a uma função, vive apenas numa convivência descomplicada com ela, tal como o faz perante quase tudo na sua vida: a morte do pai, o testemunho do maravilhoso, a vida da mãe, a chegada de Janeiro e o modo como esta lhe entra na vida, a violência dos outros, a transformação do seu mundo.

Essa autonomia é precisamente o garante da dignidade do outro, ainda segundo Sennett, e não é deslocado, pensamos nós, pensar nessa lição face as forças sociais que vão actuando em torno de Borges e sua “história”. Por um lado temos a “população local”, por outro, o “desenvolvimento turístico”.

Soares parece interessar-se apenas por efeitos de referencialidade até certo ponto. Se existem instâncias da mais pura inscrição na realidade empírica e histórica (o caso de Lisboa triunfante, aspectos de A conspiração dos antepassados), a esmagadora maioria dos seus contos e livros de banda desenhada vivem numa relação suficientemente tangencial com a realidade, portuguesa ou outra. No caso de Sepultura dos pais, poder-se-ia imaginar haver aqui associações a vilas piscatórias como a Nazaré ou Peniche, na qual a flutuação das fortunas e uma certa dureza de vida, totalmente contrária à bonomia e boa-vontade burguesa, cria um tecido social áspero e cruel aos olhares do exterior. Não queremos com isto criar hierarquias de existência, e muito menos apresentar juízos de valor, mas tão-somente apresentar as diferentes realidades sociais que não reflectem de modo algum os desejos bem-pensantes da sociedade dita mais cosmopolita. (Em Portugal, por exemplo, não existem praias privadas, essa noção não está mesmo prevista na lei. Porém, empreendimentos no Algarve ou em Tróia dificultam de tal modo o acesso às praias que se pode falar de “privatização” efectiva, ainda que não legalizada: nesse sentido, podemos encontrar neste livro alguma dimensão crítica, se bem que não sejam essas as armas nem os interesses centrais do autor).

Outros críticos (como Sara Figueiredo Costa) apontam o carácter bruto e mesmo misógino de algumas das personagens, ou a bruteza quase insuportável de algumas cenas. Isso é patente. Todavia, o sexo nos escritos de Soares nunca estiveram presentes com o intuito de titilar os seus leitores, e surge na sua dimensão mais carnal e despojada possível. Não se trata de pornografia, nem de sadismo (num seu sentido mais popular, já que se abusa desta palavra no seu sentido mais preciso, quer psicológico quer cultural), mas de uma exploração quase de materialismo da carne e do sexo, à la Bataille. Repare-se como Janeiro toma conta de forma totalmente independente e decisiva da sua sexualidade, de uma forma incómoda porque não se inscrevendo nas categorias usualmente expectáveis. Depois de Janeiro repudiar os seus primeiros amantes, e se envolver com Borges, é que a palavra “puta” é empregue contra ela. No entanto, essa palavra é-lhe lançada sobretudo num ódio contra a sua capacidade em expressar da forma mais livre possível (dissemos “selvagem” acima, mas essa palavra é incorrecta) a sexualidade. Afinal de contas, a singularidade de Janeiro está precisamente em que ela não expressa a sua sexualidade por um preço. Ela é exactamente o sinal contrário da relação de Borges com a magia: por permitir ou exigir mesmo contacto com o outro, é apenas no momento da negação desse contacto - isto é, na óptica dos outros (os amantes), a retirada da sua “função” – que ela se torna perigosa, odiosa.

O livro convida a que se façam releituras sucessivas e se procurem criar ligações entre as personagens mais complexas. Se dissemos, e re-afirmamos, que não parece interessar aos autores (agora de modo conjunto) uma psicologização das personagens, isso não nos impede de criar geometrias entre elas que reflictam certos construtos psicanalíticos, por exemplo, ligando as figuras femininas da mãe e de Janeiro, compreendendo a simbolização dos enterros diferenciados conforme os sexos, a confusão matérica entre sólido e líquido, orgânico e inorgânico, e a possibilidade de profunda aliança emocional e mesmo intelectual entre as duas personagens que menos parecem participar das usuais capacidades sociais que são incutidas nos indivíduos.

Parte desse convite é efectuado pela sua estrutura cronológica, uma vez que a intriga é tecida por vários momentos, os quais, não construindo qualquer tipo de complicação metaléptica, torna a sua descrição algo complexa. Há um primeiro “presente” que enquadra toda a narrativa, com Borges sendo interrogado pela polícia, e esta fazendo uma última vistoria da praia (numa cena muito reminiscente das primeiríssimas páginas de From Hell, em termos de enquadramento, ângulo, ritmo da acção, etc., o que não será surpresa para ninguém que compreenda os elos de filiação). Presente esse que irrompe sempre que vemos Borges de frente para nós, na “confissão”, e que serve também de modo elegante para separar estruturalmente os episódios breves desta novela (no sentido exacto deste termo).

Há também a série de “pretéritos”, desde as breves páginas da infância de Borges até àquele intervalo que constituirá a matéria principal do livro, isto é, as partes em que Janeiro está presente e vai construindo a sua relação com Borges. Há ainda, finalmente, uma espécie de coda, num futuro em relação ao presente, que é o estado em que a praia já está ocupada pela urbanização moderna, a qual tem alguns pontos comuns com o projecto de Cassiano Branco para a Costa da Caparica, jamais levado avante. Existirá aí, como aventámos acima, algum elemento que prevê uma crítica a uma certa forma de ocupação e transformação dos espaços, sobretudo no que diz respeito ao preço cultural e social dessas mesmas transformações, a “gentrificação” a que se vêem obrigados, mas a que a magia, lá está, pouco liga, vivendo continuamente na sua própria vontade para além da compreensão humana.

Se nos permitem, gostaríamos de tentar um exercício de comparação textual brevíssimo, mas, dado o seu carácter demasiado pessoal e impressionista, não tem qualquer veleidade de ser entendida como uma possibilidade de interpretação objectiva. Pela razão da sua temática, e a cena inicial do enterro no mar (cuja página é exímia e admitiria leituras simbólicas em torno da ideia do olho, de fenda, passagem, etc.), veio-nos à mente um filme de animação do realizador croata Joško Maruši, cujo filme de 1980, Riblje oko (“Olho de peixe”). Este filme foi apresentado num dos programas de Vasco Granja e impressionou-nos sobremaneira. É claro que apenas mais tarde, já numa revisitação mais balizada, compreendemos o papel fundamental deste filme no seu território, mas o terror que esse filme nos incutiu está presente, ou assim nos parece, também em Sepulturas, por não nos ser possível identificar as “razões” que animam aquelas formas de areia, tal qual também é declarado por Borges. Ainda de acordo com Gil, os monstros são criaturas com um “excesso de presença”. Que maior excesso poderá haver que a matéria inorgânica ganhar animações imprevistas e totalmente incompreensíveis? É verdade que na esmagadora maioria das cenas elas surgem mimando formas animais, estruturadas, como se previssem uma qualquer tentativa de comunicação. Nada jamais é explicado – tratar-se-á de projecções, mimeses, alcances junto ao imaginário do Borges menino, e também do adulto, que desenha as formas? Compreender-se-ia assim o informe dos últimos resquícios já na ausência dele? Todavia, é sempre um finíssimo filme que separa essa possível passagem, e esse sentido escapa-se-nos… como grãos de areia.

É por demais evidente que André Coelho optou neste projecto por um estilo mais contido, em que a figuração dos corpos é bem mais nítida, a composição de páginas segue convenções tradicionais, e o modo de apresentação das acções, espaços, e a relação entre texto e imagem é balizada por uma legibilidade evidente, do que no caso de Terminal Tower. Mas essa verdade de La Palice tem tanto a ver com os processos criativos em questão como com os da inscrição editorial. Por um lado, o trabalho com Manuel João Neto trata-se de uma colaboração tout court, talvez mais estreita, em que os dois autores se vão espelhando um no outro e procurando tecer um percurso colectivo em que se confundem as vozes, intenções e processos de escrita e desenho, levando a um objecto inóspito a categorias e por isso que explora certos limites formais e de interpretação. Por outro, Sepulturas dos pais é um livro que nasce evidentemente do desejo narrativo de David Soares, que encontra em André Coelho um veículo ideal de expressão, de acordo com um processo sobejamente conhecido, de “argumento completo”, em que o escritor procura escrever o mais possível o seu livro, inclusive no domínio visual da banda desenhada: a composição da página, certos gestos – repare-se como está presente uma das “assinaturas” de Soares, desde os álbuns desenhados por ele mesmo, de cenas em que a personagem se apresenta numa posição repetida, com pequenos gestos ou diferenças de expressividade -, efeitos de proximidade ou afastamento da focalização, etc. Coelho executa, por assim dizer, esse desejo, ainda que contribuindo, naturalmente, com uma expressão própria que advém dos instrumentos e da materialidade da imagem (as linhas de pincel meio-seco para os fundos, as ervas na praia, a textura do areal, as formas estendidas dos corpos de membros, inclusive os genitais masculinos, estranhamente esquálidos e compridos, etc.) que providencia. Nenhum destes métodos e/ou produtos se pode permitir a ver-se como superior ou mais acabado, tão-simplesmente demonstrando inscrições diferentes precisamente no que diz respeito a propósitos, processos e formas. Ambas são válidas, mesmo que possam nalguns casos chegar a públicos bem diferenciados.

No que diz respeito à vontade editorial, também é clara a distinção das águas. Ao passo que um projecto como Terminal Tower encontra um espaço privilegiado na Chili Com Carne, cujos objectivos é o da exploração de uma banda desenhada contemporânea, poética, se assim o entenderem, informada nas mais variadas experiências artísticas e modos de expressão, e alheia a categorizações convencionais, Sepultura dos pais encontra na Kingpin Books o canal ideal no que diz respeito a uma exploração mais “literária”, de legibilidade e narratividade clássica, o que de forma alguma impede a que se consiga atingir certos graus de complexidade, sofisticação e criatividade que contribuem de forma decisiva a uma requalificação permanente do perfil da banda desenhada contemporânea portuguesa. Nesse sentido, é até elementar a colação de André Coelho numa nova geração de artistas, a par de André Pereira, Francisco Sousa Lobo, Amanda Baeza, Joana Afonso, Afonso Ferreira, entre outros, capazes de navegar as mais díspares águas, que podem ser apelidadas, tanto com correcção como arbitrariamente, de “fanzinescas”, “alternativas”, “genéricas”, “de grande público”, etc.

As categorias ajudam apenas para uma coordenação e arrumação dos objectos. Mas para a navegação das obras de arte, elas são bem menos úteis do que uma leitura atenta aos próprios instrumentos fundados por ela.

Nota final: agradecimentos a D. Soares, pela oferta do livro. 

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