15 de dezembro de 2014

Deixa-me entrar. Joana Afonso (Polvo)

Alberto é condutor de um camião de recolha de lixo em Lisboa. Vive sozinho, pobremente, acumulando caixas de papelão no seu abetesgado quarto, cheios de tudo o que tem salvaguardado desde a sua infância, tal como uma bola de trapos. A senhoria, dona Fernanda, vai colocando perguntas estratégicas, que vão abrindo a sua vida de concha fechada. Mas Alberto é um homem de poucas palavras. Mas não de poucas memórias.(Mais) 

A acção no presente da narrativa, feito da rotina do trabalho, conversa de circunstância, e a coabitação com Dona Fernanda e o seu gato, é constantemente “interrompida” por aquilo que parecem ser segmentos de uma vivência feérica, onírica, fantasiosa, de Alberto enquanto criança num espaço irreal mas de fortíssima carga simbólica maternal: uma espécie de útero, de espaço de conforto e segurança, pasto de fantasias, feito de fios, tecidos flutuantes, ondas que se fecham em seu torno. É certo que num momento parece também ser origem de um temor de enclausuramento, um labirinto sem saída, uma forma de corte, mas essa é também uma trepidez sentida de quando em vez em relação às figuras maternais. E tampouco é importante o facto de que essa figura, descobrir-se-á, se tratar do avô, pois em termos simbólicos não se procura uma inscrição literal. 

No seu famoso tratado Estudos sobre a Histeria, de 1895, S. Freud e J. Breuer chegavam a uma conclusão, tornada frase célebre: “os histéricos sofrem sobretudo de reminiscências”. A palavra “histéricos” aqui terá de ser entendida de uma forma plástica, uma vez que a validade médica desse termo viria a sofrer muitas mudanças, ora de expansão ora de contracção, e pouco tem a ver com o seu sentido mais popular. De forma curta, diria respeito a toda e qualquer pessoa assaltada por traumas, desvios da “normalidade” (seja como ela for definida e diagnosticada). Isso cria a ideia de um sujeito cuja constituição é uma linha sólida que atravessa o presente, e subitamente sobre cortes e desvios feitos de memórias.

Nesse enquadramento, e em termos estruturais, Deixa-me entrar é uma espécie de ilustração literal desses súbitos ataques de reminiscências, interrompendo o fluxo do presente junto a Alberto. Como o próprio diz, no fim, o seu passado perseguia-o, não o deixando viver o presente. Mas tendo o livro final feliz, as formas serpenteantes e orgânicas desse passado são substituídas, em termos simbólicos, pelas plantas que crescem no seu antigo quadro, até mesmo com o proibitivo vermelho sendo substituído pelo verde prometedor.

Não sendo propriamente uma estreia para Joana Afonso tomar conta das rédeas da escrita num projecto por si desenhado (“escrita” num sentido restrito, evidentemente, já que todo e qualquer artista de banda desenhada contribuí fulcralmente para a escrita de um projecto, mesmo na existência de um argumentista prévio), este é o seu maior projecto enquanto trabalhando a sós. Ainda assim, é quase inevitável encontrar afinidades com Nuno Duarte e André Oliveira, com quem trabalhara anterior e respectivamente em O Baile e Living Will, em algumas características. No que diz respeito a uma inscrição das narrativas numa leve mas sólida ideia de referencialidade do real, para mais, neste caso, na Lisboa dos nossos dias, mas sem se prender ao presente noticioso, mas tampouco abandonando-se a devaneios de fantasia. Além disso, também na forma como constrói um pequeno mas efectivo elenco de personagens idiossincráticas mas realistas, para depois lhes perscrutar os cantos mais abscônditos das suas mentes e emoções, a autora parece partilhar preocupações com alguns dos autores que correspondem a uma constelação que lhe está mais ou menos associada em termos pessoais, até por trabalhar no seio do The Lisbon Studio: além de André Oliveira, Rui Lacas e Pedro Brito, por exemplo, seriam referências possíveis.

Apesar do retrato das personagens ser sólido, e o ambiente em que vivem plausível, há porém, em termos estritamente “psicológicos”, algo que parece sub-desenvolvido ou “trocado”. Afinal de contas, Fernanda é aquela que desde a primeira cena parecia convidar Alberto a entrar na sua vida. A circunstância da mudança de quarto apenas espoleta um convite mais directo, ao qual se sucedem outros: comerem juntos, verem televisão juntos, trocarem mais do que as palavras circunstanciais do habitual, e até mesmo o abuso dela em entrar no seu antigo quarto e vasculhar os seus velhos objectos. Tudo isso são passos, paulatinos mas constantes, de “entrar na vida” de alguém, à qual Alberto levanta vários obstáculos, sobretudo na sua própria mente. Entendendo-se que o súbito e quase inesperado rebentamento de emoções no final se deverá à concatenação dos factores, eventos e memórias acumuladas na vida de Alberto (e que não são explicados de forma expositiva nem cabal, o que menos do que deixar “insatisfeito” o leitor, reforça a realidade da narrativa), não deixamos de ler as palavras finalíssimas que Alberto diz como mais propriamente pertencendo a Fernanda, em relação a todo o comportamento de ambos ao longo do livro. É um estranho e subtil desequilíbrio, a nosso ver, mas que convida igualmente a uma procura por outras interpretações.

Como se pode notar por esta imediata comparação entre a prancha a “lápis” e aquela finalizada – retiradas do blog da autora e aqui “coladas” –, Joana Afonso elegeu ou atingiu um grau de proficiência do desenho de uma maneira que lhe permite uma singela rapidez. Isto é, não sendo propriamente esboços, existem muitos traços nestes desenhos que fazem parte de uma velocidade manual própria da primeira tradução da mente para o papel, das ideias visuais que deseja. Na segunda versão, fazem-se escolhas, correcções, é certo, e as cores ainda vêm trazer texturas e volumes, mas elas, as escolhas, fazem-se sem abdicar dessa “primeira linha”. É um método, entre outros, que além da rapidez que poderá proporcionar, incute na figuração – altamente estilizada, reminiscente de uma construção tipificada e simplificada da animação, de uma anatomia caricatural concentrada, como já indicámos em relação a obras anteriores, começando por O Baile – uma espécie de fugacidade dos corpos, uma entrega urgente à narrativa que constroem, não obstante os sólidos contornos a negro.

Mas há ainda a camada da cor. Cores térreas, enferrujadas, da família dos vermelhos e castanhos sobretudo, contidas, aplicadas de forma expressiva e célere, sem preocupações de exactidão do comportamento da luz em termos realistas, mas consciente dos efeitos que esta abordagem gráfica permite. Essa constrição, por assim dizer, encontra-se reforçada pela narrativa em si, a qual decorre sobretudo durante a noite ou em interiores. Mesmo em cenas exteriores e diurnas – o grande plano sobre o Rossio, uma vinheta panorâmica da rua de Alberto – a atmosfera é permanentemente plúmbea.

É como se se visse sobretudo o escuro húmus, de onde desponta nova vida.

Nota final: agradecimentos ao editor pela oferta do livro; as imagens foram colhidas do próprio blog da autora, aqui

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