9 de dezembro de 2014

Cumbe. Marcelo D’Salete (Veneta)

Há relativamente pouco tempo, deparámo-nos com um livro infantil que discorria sobre a história de Portugal. Numa frase, explicava-se como a conquista do norte de Ceuta e outras das políticas expansionistas admitiriam o alcance do mercado da “pimenta, canela, escravos, marfim e outros produtos”. O que constitui matéria de discussão, e que deveria ser chocante, é que, mesmo que do ponto e vista estritamente economicista – o qual tem tomado conta incrementalmente de mais áreas da vida humana - a palavra “escravos” não apenas se encontre sem quaisquer qualificações naquele arrolar de “produtos” como numa posição da ordem sem qualquer particularidade. Como se a desculpa de “o tempo histórico” fosse desculpa para eliminar as diferenças entre especiarias, derivados vegetais, minerais raros e… seres humanos. (Mais) 

É quase natural (mas não sempre, e há excepções iluminadoras) que a cultura popular, ou mesmo aquilo que passa por “senso comum” vá um ou dois passos atrás em relação a um pensamento mais arguto e informado. O estudo da absoluta violência e crime que constituiu a escravatura associada às expansões dos Impérios é matéria de longa exposição e debate nas disciplinas da história e outras, já para não falar das próprias populações que a sofreram na pele, mas as mais das vezes ela surge como pano de fundo ou simplesmente “facto” nas narrativas, semi- ou totalmente ficcionais, que vão alimentando o imaginário popular. Mas se ela é um “facto” inegavelmente, não pode ser vista como uma simples informação pertencente à circulação económica de produtos. Se a escravatura é um facto determinante no desenvolvimento dos meios de produção do capitalismo e da história do trabalho, há uma dimensão humana tremenda que deve ser permanentemente recordada. Para um cidadão português, eticamente falando, se admitirmos que podemos sentir orgulho nas conquistas culturais, sociais e os contactos humanos proporcionados pela expansão do Império Português, também deveríamos assumir responsabilidades pelos aspectos negativos, cruéis, desumanos dessa mesma acção, cujas consequências ainda hoje não deixam de fazer sentir as suas reverberações. E pouco importa “distribuir a culpa”, ou procurar paliativos a essa realidade – como o mito indelével de que seríamos o primeiro país a abolir a escravatura e, por magia, ela terminasse, e concomitantemente eliminasse a sua herança. Ao argumento de “não pertenço a essa geração, logo não tenho culpa nem sou responsável” deveria corresponder também a ideia de “não pertenço a essa geração, logo não me sinto orgulhoso de algo que não fiz nem cumpri”.

Cumbe é constituído por quatro contos, todos eles tendo como protagonistas escravos negros das plantações e dos engenhos de açúcar no Brasil. Alguns são africanos tout court, outros já nascidos no Brasil, e pelo menos num caso filhos de um branco que violara uma menina escrava. Cada um desses contos foca dimensões diferentes da vida desses escravos, até por explorar igualmente geometrias diferentes de relações: um casal de apaixonados, que se dividem entre eles pelo sonho da fuga e a preferência de ficar no conhecido; a horrível “economia” dos bebés nascidos na escravatura; a traição entre as fileiras dos escravos revoltosos que tentam fugir e construir os quilombos, onde podem viver numa liberdade; a violência necessária para essa libertação.

Aquilo que se torna a espinha dorsal, de ferro mesmo, de Cumbe, é o modo como é a voz dos escravos a que toma o lugar central. Existe, na verdade, muito pouco texto, raras vezes surgem legendas recitativas, e estas pertencerão sempre a uma das personagens. Mas a focalização, mesmo que por momentos possa centrar-se num dos fazendeiros e donos de engenho portugueses (brancos), quer reforçar sempre o papel e os gestos e a vida dos escravos negros. É a vida deles, e sublinhe-se a ideia de vida, no seu quotidiano, na sua dimensão humana, onírica, de esperança, cultural, de angústias e amores, a que oferece a sua matéria plástica a Cumbe.

Marcelo D’Salete cruza neste livro o seu interesse pela cultura negra e a História do Brasil. Mereceria uma melhor abordagem, compreender o que significa a cultura negra no Brasil, ontem e hoje, a forma como a sua formação tem a ver com uma adaptação de uma cultura violentamente desenraizada dos seus locais de origem, em si mesmos diversos, ricos, complexos, e transplantados para um forçado e súbito convívio noutro local, e sob um diálogo desigual com, pelo menos (no início dessa história), duas outras culturas, a dos colonizadores brancos portugueses e a dos povos autóctones (ausentes em Cumbe). Mas não temos os conhecimentos para tal. Apenas se compreende, pela leitura deste livro, e pela sua colação aos seus anteriores, igualmente feitos de relatos curtos que vão convergindo numa ideia central, NoiteLuz e Encruzilhada, que D’Salete não cria discursos inflamados nem panfletários, mas colocando personagens negras nas histórias, desloca um forma de atenção que muitas vezes, em relação a esta população, passa pela ausência. Aqui, ganham corpo e voz.

Cumbe é mesmo matizado por toda uma série de elementos dessas culturas africanas, tirando partido dos grafismos dos povos, as suas lendas, as suas danças, os seus mitos e crenças, e as suas línguas. Não é por acaso que a primeira cena do primeiro conto abre com um dos ideogramas quiocos (um povo de Angola) e a última história termine com a presença do Quibungo, uma espécie de monstro com uma boca terrível nas costas por onde engole as pessoas, e que parece ter ganho forma definitiva já no Brasil. Não é que se pretenda criar uma oposição clara entre uma cultura própria e com fundamentos da escrita (mesmo que ideogramática) e a oralidade posterior dos povos desenraizados numa nova terra, mas há um claro deslocamento de uma inscrição num espaço próprio para a fuga pela fantasia. Quase todas as histórias, aliás, têm um ou outro momento fantasioso, em que os sonhos, as ilusões, alucinações ou lendas ganham um corpo físico, de tinta no papel, com um direito à cidadania idêntico ao das restantes personagens e eventos (algo que noutro local chamamos de “ink ghosts”, “fantasmas de tinta”). E essa seria uma dimensão curiosa de analisar, com cuidado e balizada por outros estudos, sobre as características da cultura negra aventada acima.

O título do livro é uma palavra congo-angola (yaka) que demonstra desde logo a força da polissemia dessas línguas africanas, uma vertente que se tornaria ainda mais pujante com os contactos com o português e outras línguas (é inegável que a norma brasileira tem uma plasticidade bem mais vincada, nem sempre por vezes apreciada por uma perspectiva mais normativa, naturalmente). No glossário final, preparado pelo autor, o editor, e Allan da Rosa, escritor dedicado a várias vertentes da Educação Popular e com um particular interesse pelas culturas de origem africana (e que também assina o breve posfácio), indica-se que “[cumbe] tem também os sentidos de sol diz, luz, fogo e força trançada ao poder dos reis e à forma de elaborar e compreender a vida e a história”. Desta maneira, o seu emprego enquanto sinónimo de quilombo, título de um dos contos e título do livro inteiro, pretenderá criar uma imagem apresentada num conjunto global, em que todos os seus elementos individuais, não se subsumindo nem sumindo, arvoram uma força compacta. O glossário e a bibliografia final convida a uma pesquisa continuada, noutras fontes, mas em si mesmos estes contos são já um modo de compreender a forma como a respiração antiga das línguas bantu, como o kimbudo, o umbundu, o bacongo, etc. enfim, dos povos que habitavam os espaços que viriam a ser conhecidos mais tarde por Congo e Angola (exercendo-se desde logo uma imposição de categorias externas , impostas sobre os povos locais, agregando onde não existiam alianças, dividindo onde existiam famílias) sobreviveria. Como se depois de se terem desfeito os novelos pela violência do colonialismo, a deslocação das pessoas e a escravidão, estas procurassem uma resistência reutilizando os fios para tecer novos panos.
De um ponto de vista estruturalmente restrito, no que diz respeito à fabricação da banda desenhada, a surpresa de Cumbe está na sua tranquilidade. Apesar de tudo, com um “tema” mais contundente e politicamente anguloso, a intensidade emocional é profunda, mas expressa de modos indirectos. O autor evita, portanto, qualquer tipo de melodrama ou, pior, um aproveitamento sentimentalóide de um passado para arvorar-se numa qualquer posição de “privilégio da vítima”. Não há sinal de identificação do autor e das suas personagens, se bem que não se possa negar que haja o vivo interesse, repetimos, em explorar a dita cultura negra, falada na primeira pessoa – o que aponta desde logo que é um facto inolvidável, uma vez que um autor branco tem a “liberdade” de falar de tudo o que quer, sem cair jamais numa constrita “cultura branca”.

Não queremos dizer que não existem aqui momentos da mais profunda crueldade, do mais sentido amor, que se expressa mesmo no extremo do morticínio, do ódio mais produtivo, da raiva mais destruidora. Todos esses sentimentos estão aqui, são expressos, ditos, mostrados. D’Salete não faz com que as suas personagens os profiram dramaticamente, porém, mas numa pequena expressão do rosto, que ele molda de forma subtil (repare-se nas várias estratégias de representação dos olhos, por exemplo), num gesto, no modo como são colocados no plano da imagem, graças a escolhas de perspectiva, de posicionamento, de coordenação das vinhetas na página. Se nos dois livros anteriores, passados no tecido urbano, viviam de tensões permanentemente presentes nos embates entre tantas pessoas, aqui os espaços são mais alargados, a luz do dia mais solarenga, a escuridão da noite menos ininterrupta. Há páginas onde o branco da página toma conta de tudo (sobretudo nas partes de “fantasia”, que curiosamente recordam algumas cenas de Mignola [como aquela presente neste parágrafo]), e outras onde a estilização, sobretudo da natureza [veja-se a primeira, após a capa, acima], quase transforma os relatos numa dimensão mágica, de conto infantil, popular, oral. Todavia, mesmo perante histórias de vidas tão sofridas, há uma espécie de dignidade, de silêncio - que o autor emprega recorrentemente - mesmo no meio da voz, de acalmia mesmo no centro do tumulto, que perpassa por todas elas.

Os instrumentos do artista continuam a ser os mesmos: desenho a linha, sempre fina e ligeiramente trémula, talvez uma caneta, e depois a aplicação de grandes manchas negras com pincel, sem preocupações de preenchimento preciso, mas bem pelo contrário permitindo que os pingos, as extremidades secas, o arrasto do pincel, isto é, os excessos não-representativos contribuam para a expressividade da matéria visual. E nesse trabalho há como que um subtil aclaramento em relação aos anteriores, como se, no meio de toda as penas e mágoas infligidas sobre estes corpos, de seres humanos, e não meros produtos dos processos históricos, o sol de Cumbe brilhasse apesar de tudo.

Nota final: agradecimentos ao autor, pelo envio do livro.

3 comentários:

Oubí Inaê Kibuko: Fotógrafo e Editor de Cabeças Falantes disse...

Salve. Já havia ouvido falar da obra. Ontem, no CCBBSP - Presença africana no Brasil, tive oportunidade de breve contato com ela, nas mãos do sr. Claudinei Roberto Silva, coordenador do evento. Tomei a liberdade de pesquisar e postar informações relacionadas ao livro Cumbe, em nosso blog, o Cabeças Falantes. Espero estar ajudando a multiplicar...

Oubí Inaê Kibuko: Fotógrafo e Editor de Cabeças Falantes disse...

Salve. Já havia ouvido falar da obra. Ontem, no CCBBSP - Presença africana no Brasil, tive oportunidade de breve contato com ela, nas mãos do sr. Claudinei Roberto Silva, coordenador do evento. Tomei a liberdade de pesquisar e postar informações relacionadas ao livro Cumbe, em nosso blog, o Cabeças Falantes. Espero estar ajudando a multiplicar...

Pedro Moura disse...

Saravá. O que importa é espalhar a notícia!
Obrigado,
pedro