6 de novembro de 2014

War is Hoover... Filipe Abranches (Imprensa Canalha)

Criado na sequência do convite estendido ao artista de estar presente no Festival de Treviso, no qual Portugal foi o país convidado, e se publicou uma colectânea de trabalhos traduzidos editados por Marcos Farrajota, este pequeno fanzine é na verdade um projecto de resgate em duas acepções. Num sentido da prática artística e no da narrativa aqui oferecida. (Mais) 

Em primeiro lugar, é preciso compreender que Abranches, no seu desejado mas lento regresso à banda desenhada, que apenas se tem cumprido nos últimos anos através de histórias curtas espalhadas em várias antologias, se estava a moldar em torno de um livro que misturaria várias linhas de desenvolvimento: projecto autobiográfico, exercício de regresso às leituras de banda desenhada da infância, em que Buck Danny, por exemplo, tem um papel fundamental, desejo em experimentar abordagens formais consistentes com alguma prática clássica, como a grelha de 2 x 3 vinhetas, e a capacidade camaleónica do autor em tecer vários modos do desenho e execução, procurando-se sempre um qualquer nível meta-textual. 

Nesse sentido, um projecto começou a tomar lugar com uma certa forma, uma certa estrutura, um certo fito, mas aos poucos foi sendo alterada em busca de outro tipo de investigação. Podemos dizer, até certo ponto, que War is Hoover... nasce de uma manipulação de objectos originais em grau duplo: por um lado, em parte, uma apropriação de pranchas de várias bandas desenhadas clássicas norte-americanas dos anos 1940 e 1950, ou de outros azimutes, em torno de géneros como os de guerra, da aviação mais propriamente, policiais, de espionagem, e por aí fora, e por outro, uma manipulação directa sobre as primeiras pranchas que haviam nascido daquele diálogo. No interior do livro, é ofertado um postal dobrado que contém uma das pranchas originais de Abranches, e a que cita, retirada da revistinha Aventuras do FBI.

A esmagadora maioria das páginas desta pequena publicação têm uma vinheta isolada, colocando os soldados retratados igualmente no centro de uma tempestade da qual não têm escapatória. O início e final da “narrativa” mostram uma explosão de um vulcão, o de Tarurvur, na Nova-Guiné, como forma de ancorar a acção que se desenrola, supostamente na segunda Guerra Mundial. E um spread central mostra um piloto, em grande plano, no centro da teia de comunicação impossível que se vê preso.

Em segundo lugar, como dissemos, a ideia de “resgate” preenche mesmo a diegese do livrinho. No fundo, temos aqui a história de soldados abandonados num combate na selva, impossibilitados de receber apoio aéreo, e que se vão atolando cada vez mais nos pântanos que tentam atravessar. Mas ao perscrutarmos os seus diálogos, entendemos que algo se passa a um nível que não os enclausura apenas numa história: eles referem-se às onomatopeias escutadas na banda desenhada, referem-se às técnicas de pintura ou retoques sobre soldadinhos de chumbo ou outros materiais, ao mesmo tempo que reparamos que todos eles têm bases nos pés, como brinquedos, e depois há uma quebra total na comunicação que tentam estabelecer com o apoio aéreo, reduzido ele também a modelo de plástico e a acidente numa poça de lama. E os vários níveis diluem-se entre si, desaparecem, e não compreendemos totalmente onde, como, quem e o quê estivemos a testemunhar. A presença de uma máquina de lavar roupa Hoover da década de 1960 – uma Keymatic – parece deitar fora roupa, na forma de fantasmas, de fragmentos de corpo (à la Vaughn-James?), de fumo, que depois ganham densidade e acção na narrativa.

Como escrevemos uma vez num texto longo sobre Abranches, e cuja palavra-chave já empregámos acima, o desenho deste autor é verdadeiramente camaleónico. Não naquele breve trecho em que usualmente é empregue essa palavra para se falar de uma pequena variedade de assinatura estilística das parte dos autores. De uma forma profunda e extremamente complexa, Abranches foi cultivando vários registos e caminhos ao longo da sua carreira, até ter atingido uma certa fluidez na arte do encontro entre desejo e execução, pulso e olho. Aqui flutua por vários dos caminhos já trilhados, e tanto vemos Milton Caniff como Solano Lopez, Tardi ou Pratt, como se toda essa tradição, toda essa memória, se formasse e dissipasse para concorrer nestas linhas e segundas cores.

Pequeno exercício de nostalgia, de regresso, de reinvenção, de re-início de uma movimento interno à leitura e criação da banda desenhada, e um encontro entre linguagens clássicas e contemporâneas, War is Hoover... é um pequeno mas possante gesto da própria memória, talvez, que a banda desenhada constitui.

Nota final: agradecimentos ao artista, pelo envio de algumas das imagens, sendo quase todas provenientes do blog da editora.

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