4 de novembro de 2014

Μήδεια ("Medeia"). Mariana Waechter (Sáfaro)

Ao folhearmos este livro, cria-se um mecanismo estranho de leitura. Na primeira imagem, de página inteira, vemos um poste eléctrico, cheio de fios e ligações. Na segunda, uma caixa de fósforos semi-aberta. Na terceira, já apresentando uma estrutura de várias vinhetas (duas apenas, mas num jogo de luz e sombras que multiplica a imagem maior em unidades menores), o que parece ser um bode em pé, olhando a chuva lá fora. Depois, introduz-se uma personagem humana, uma mulher arranjando as unhas a outra mulher. As imagens que se seguirão ora vão multiplicando os agentes, os espaços, os eventos, algumas vezes demonstrando pequenas sequências, outras fazendo regressar algumas personagens recorrentes, outras ainda recolocando objectos em diferentes funções, e apenas lentamente, lentamente, é que podemos destrinçar uma ideia de “narrativa” - já que uma intriga nítida e cristalina jamais se coalescerá – destas imagens aparentemente desconexas. Apetece-se dizer, com Fernando Pessoa, imagens “inconjuntas”, e com Giorgio Colli, falar de um “mel da narração” que garante coesão aos elementos díspares. (Mais) 

Ainda que a sua atribuição individual diga respeito à autora Mariana Waechter, o livro faz parte do trabalho de um colectivo chamado Sáfaro. Daquilo que nos é dado a entender, trata-se de um grupo de desenvolvimento de projectos artísticos que interrogam certos temas político-sociais contemporâneos, como o terrorismo, os discursos políticos associados a eles, as decisões de manifestação da parte dos cidadãos de uma resistência a esses discursos únicos, as respostas violentas das forças policiais e/ou militares, necessariamente aliados à realidade brasileira, através de uma investigação das tragédias de Eurípides, tendo sido Medeia a primeira. Os frutos desse trabalho são uma encenação, uma performance de investigação, objectos de artes visuais, instalação e literários, e o livro de Waechter poderia então ser entendido como uma “tradução gráfica” desse mesmo projecto. Tendo em conta que a pesquisa da autora não é sobre o texto original de Eurípides, não se trata tanto de uma adaptação literária, aliando antes o seu livro a projectos como Brutalis, de Van Hasselt, e Chantier-Musil, de Vincent Fortemps.

E mesmo haja uma leve possibilidade de “co-optar” Medeia como um livro narrativo, ele sobrevive sobretudo como um objecto em comunicação permanente com um pesquisa, e nesse sentido tem um grau de abertura superior a uma mera intriga narrativa. Essa narrativa leve que emerge não deixa de traduzir alguns dos elementos diegéticos da tragédia escrita em 431 aEC., e que curiosamente foi galardoada apenas com o terceiro prémio nesse ano. Afinal de contas, podemos compreender que a figura feminina recorrente, e que parece sacrificar um bode, parir coelhos, ser despejada do seu apartamento e contemplar as vagas telúricas e ctónicas à sua disposição é a Medeia da Cólchida, ultrajada e abandonada por Jasão, e que exerce uma temível vingança sobre Jasão, a sua noiva, o pai desta, Creonte, e também os seus próprios filhos, fruto da união com Jasão. Na sequência mais claramente narrativa do livro, em que vemos duas crianças lançando fogo a uma noiva e o seu pai (que pedirá, quem sabe, emprestadas as suas feições a um qualquer industrial, grande proprietário ou político brasileiro, ou alguém que acumule mesmo essas funções, o que não seria surpreendente), e que depois tomam o seu destino nas mãos, poderemos ler uma tradução da ideia clara dessa vingança. Em suma, uma leitura paralela do texto de Eurípides ou uma outra versão do mito de Medeia e o livro de Waechter poderá fornecer-nos variadíssimas pistas de interpretação narrativa.

Mas mais importante que essa é a interpretação política, que nasce da pesquisa do colectivo. Reler Medeia, a de Eurípides, à luz dos discursos “únicos” dos regimes políticos actuais do Ocidente, em que se demoniza um Outro para, na desculpa do combate ao terrorismo, atropelar igualmente outras regras e liberdades dos cidadãos, e mesmo entraves à conquista do poder político e económico de áreas que até ali lhe estavam fora do alcance, é enriquecedor. Medeia é, afinal, à luz da crescente cultura grega, xenófoba, uma “estrangeira”, uma “bárbara”, uma “selvagem” (palavra bastas vezes repetida por várias personagens) e a acusação de bruxa e de conhecedora de artifícios e magia negra não deixa de ser uma excelente desculpa para a ostracizar, mesmo que abdicando assim da dignidade humana que lhe é devida. O espaço de liberdade de movimentos e pensamento que lhe é reservado é cada vez mais reduzido. Diz ela: “Compreendo bem que numa cidade grega nada é completamente íntimo. Aquele que possua um segredo é julgado intratável e orgulhoso... antidemocrático”. Que sentidos ganham estes versos na paisagem pós-11 de Setembro!
Aí se compreende que haja a intrusão, digamos assim, na narrativa central de imagens que fazem associá-la à realidade brasileira contemporânea: polícia de choque, o tal político (uma vez que desconhecemos pormenores locais, passíveis seguramente de críticas ferozes, abster-nos-emos de tentar adivinhar circunstâncias concretas), imagens de espaços urbanos e naturais localizados, etc. os intervenientes – colectivo, autora, leitores locais – conseguirão estabelecer, talvez, elos directos entre uma realidade (textual) e outra (empírica, política), mas em termos gerais os leitores globais – como o que escreve estas linhas – tem de se coser com outras linhas, e lançará essas associações a círculos mais latos, simbólicos (na capa de trás, que parece retratar pessoas fugindo de um ataque com gás, ou da poeira de algo destruído, um prédio, por exemplo, um homem tem um rosto muito próximo ao de George W. Bush, o que pode ainda servir de associação mais global).

O livro não possui qualquer matéria verbal para além do indicia editorial. Não há citações, legendas, balões de fala, e as únicas palavras que surgem são matéria diegética do próprio universo referencial retratado: a marca de um poste eléctrico, a de uma caixa de fósforos, uma folha de instruções de uma ordem de despejo. A própria escolha de colocar o título em letras gregas, e não romanas, cria um pequeno filtro de estranhamento à escrita, à comunicação verbal, que faz emergir, a um só tempo, um espaço de distanciamento e de aproximação. Distanciamento no sentido em que não providencia mecanismos de facilitação e familiaridade, obrigando os leitores a precaverem-se de mecanismos próprios de interpretação, menos colectivos do que a convenção da linguagem escrita. Aproximação por, supostamente, implicar uma relação mais profunda com uma experiência humana universal.

Essa flutuação é, como vemos, garantida igualmente pelo tratamento ora próximo ora afastado do mito, e pelas várias estratégias compositivas da autora. O traço do desenho procura seguir caminhos de algum naturalismo clássico, mas com pequenos desvios idiossincráticos, uma assinatura na linha nervosa que desenha. Há desenhos mais “completos” do que outros, manchas mais negras num, contornos mais leves noutro, apenas linha aqui, aguadas ali, e também existem desenhos totalmente subsumidos ao (mínimo) programa narrativo que se apresenta, e outros ainda que devem ser antes entendidos de maneira simbólica, concatenando várias linhas de informação e pesquisa. Tudo isto concorre então para a tal articulação de direcções paradoxais que acabámos de aventar, tornando Medeia, esta Medeia, num pequeno livro mais de interrogação permanente do que de uma história fechada.
Nota final: agradecimentos à autora, pelo envio do livro. 

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