12 de outubro de 2014

Next Testament. Clive Barker, Mark Miller e Haemi Jang (Boom Studios)

Se bem que esta não seja a primeira experiência da escrita de Cliver Barker na banda desenhada, e ele próprio tenha-a criado já directamente, em tempos recentes com a continuação oficial das personagens originais de Hellraiser/The Hellbound Heart, este é o primeiro título em que apresenta material original e exclusivo para este meio expressivo. Next Testament não se baseia em nenhum livro ou esboço para filme, tendo nascido exclusivamente para a banda desenhada (no quadro dos desejos do editor da Boom). Na verdade, Barker conta com a ajuda de Mark Miller, um veterano da criação de cinema mas também de banda desenhada, e que já havia trabalhado nas versões de banda desenhada de Hellraiser. Neste caso particular, a personagem principal nasceu da imaginação de Barker mas com uma ajuda preciosa de Miller, e a escrita em si, o desenvolvimento da intriga e dos pormenores diegéticos foram lavrados por ambos. (Mais) 

O livro parte de um ponto de partida simples. Deus existe, é um ser físico, palpável, que teve um papel na criação do mundo mas após o embate que teve com dois outros deuses, seus irmãos, foi aprisionado durante dois mil anos. Um milionário, Julian Demond, tem uma visão que lhe permite libertar este ser, que descobrimos chamar-se Wick. Então: Deus regressa à Terra. Aleluia. Problema é que Deus se comporta mais como o Diabo ou uma criança mimada.

A ideia dos autores é explorar uma figura de deus que de benévolo não tem nada. E, presumimos, tentar compreender como é que o mundo responderia face à existência efectiva de um deus, menos metafísico e mais mãos-na-terra, cruel, déspota e com um défice de atenção. Um casal jovem, o filho do milionário e a sua namorada, são os únicos sobreviventes do primeiro momento de interacção com humanos de Wick, e a partir daí assumem precisamente esse papel: o de sobreviventes num novo mundo que vai sendo destruído aos poucos, fruto de uma potência e consciência de imensa escala, ainda que jamais seja “omni-“. Os limites de Wick apenas permitem sempre uma nesga de possibilidade de escape.

A artista sul-coreana, Haemi Jang, é algo devedora de toda uma série de traços, dinamismos e composições mais próximos da mangá de terror contemporânea do que dos comics norte-americanos. No entanto existem inflexões típicas deste outro mercado, como a cor, a estruturação da acção, mais célere e concentrada. Em muitos aspectos, as feições e expressões das personagens obedecem mais a fórmulas consabidas do que propriamente a uma investigação muito pessoal, mas são suficientemente claras e nítidas nesse mesmo propósito. Podemos mesmo dizer que é algo inevitável criar comparações imediatas com alguns autores, tais como Minetaro Mochizuki, de Dragon Head: também essa história apresentava um jovem casal deambulando por um mundo destruído e derrotado “por dentro”, onde as dicotomias do bem e do mal são jogadas de maneira clara.

Mas esse é precisamente um dos problemas com Next Testament. Talvez seja mesmo uma impossibilidade lidar com temas desta natureza sem criar dicotomias claras, um problema que já havíamos identificado como o que impedia a série Testament de se tornar algo mais interessante. Muitas séries existem que lidam com temas idênticos, em que Deus ou “Deus” ou deus (ou outra variação) são protagonistas, mas quase sempre se procuram estratégias de choque (Preacher), violência total (Supergods) ou literalismos desinteressantes. Já havíamos falado disto quando mencionámos Punk Jesus e God is Dead.

Este Deus, Wick, em vez de se tornar uma criatura de insondáveis mistérios, acaba por ser apenas uma besta-quadrada, mimada e facilmente aborrecida, virando a sua violência de menino malcomportado para com os seres humanos. Portanto, tal qual o pirralho do Deus dos primeiros livros da Bíblia, ou o dito Deus abrâmico. Das birras, exigências, pedidos insanos, que tanto cria as coisas como as destrói, e parece estar apenas interessado em que o amem praticamente sem desvio de atenção. Só ficará ofendido com essa descrição quem nunca leu o dito Antigo Testamento de ponta-a-ponta, os seus vários livros e as histórias pejadas de violência infundada, sexo, morticínio, guerras sagradas, genocídio, torturas, traições, ditos-por-não-ditos, incesto, luxúria, e bastas vezes, bastas vezes pelas personagens que noutros descritivos seriam chamados de “heróis”. Quando não pelo próprio Deus. Não há qualquer plano estranho escondido, e apenas uma constante birra por atenção. A personagem em si, portanto, não evoluiu um quanta, e se isso poderia ser algo mais do que expectável num ser divinal e eterno, claro está, não constitui boa matéria para uma história longa de 12 números. A solução encontrada para a resolução da sua maléfica presença na Terra não traz quaisquer surpresas: se há mecanismo digno do nome de deus ex machina, é o que sucede em Next Testament, ainda que os deuses venham aos pares.

Como se sabe, deux ex machina é a expressão que se emprega usualmente na crítica literária (e/ou outra) quando ocorre um elemento na diegese que contribui significativamente para o desenlace de uma situação, mas cuja presença não era nem adivinhada nem preparada pelos elementos anteriormente presentes. Isto é, em vez de ser algo que surgisse como fazendo intrinsecamente parte dos elementos iniciais ou fruto do desenvolvimento deles no interior da intriga (por via psicológica, valoração ou outra), trata-se de uma adenda, vinda do exterior, que cortasse o nó górdio. Next Testament recorre a isso duas vezes, pelo menos: num primeiro momento, como forma de explicatio da origem dos nomes dos três entes divinos que testemunharemos como reais nesta história, e depois na chegada e manifestação dos dois outros, Filt e Unan, que combaterão a força magnífica e terrífica de Wick. Gostaríamos de dizer que essas três entidades encetariam discursos ontológicos e filosóficos entre si, descobrindo as necessidades das suas naturezas e poderes, mas a única coisa que sucede é uma sessão de porrada. Pouco mais.

As cenas finais de acção são isso mesmo, embates físicos – estes seres são vistos menos como entidades metafísicas e mais como criaturas de um imenso poder – que em mais do que um aspecto se assemelharão a combates de super-heróis, com a agravante de que o que se passa em pormenor nunca é claro. Os poderes de cada um não são claros, e apesar de haver uma ou duas estratégias de combate adivinhadas, nada é nítido: apenas sabemos que tem início o combate, que há momentos de tensão maior e uma conclusão. Pouco mais.
Tristan e Elspeth, o tal casal, são as personagens humanas, à flor da humanidade até, que servem de foco ao que vai acontecendo na Terra, mas também acabam por se tornar o espartilho de atenção da história – jamais estudaremos verdadeiramente o que vai tendo lugar no resto do mundo – e serão eles a chave da libertação ou chamamento dos outros dois deuses criadores, que aprisionaram Wick no passado e que com ele novamente combaterão para salvar a existência.

Outro problema geral de Next Testament é que, afinal, o padrão da trindade é mantido, e todos os papéis mais ou menos expectáveis de uma imagem tardia e que tenta organizar uma multiplicidade de imagens: a de um deus tribal semita das montanhas, a de outras figuras mais menos derivadas da mesma área e quadro regional-étnico, da antiga Babilónia, desenvolvimentos ainda mais tardios (o diabo europeu, entidades mais benfazejas e espirituais do Oriente mais distante), as várias linhas de desenvolvimento do texto bíblico, etc. A criação de uma nova mitologia, da qual derivaria por distorção a que herdámos apenas acrescenta à confusão. Claro que não é papel desta série de banda desenhada fazer hermenêutica séria, ou criar um quadro verosímil das origens da religião (ou religiões) monoteísta em voga nos nossos dias, nem tampouco é o seu papel fornecer-nos com um sólido argumento teológico, mas uma espécie de consistência e capacidade de absorver e manipular pela ficção essa mesma matéria existente tornaria o projecto mais maduro e apelativo a um público mais informado, julgamos nós. Assim sendo, ficamo-nos pela aventura de grandes paradas cósmicas (ou pelo menos, planetárias), mas cujas reverberações se mantêm à tona da superfície. No fundo, o foco concentrado num número tão reduzido de personagens, apesar do envolvimento de toda a escala do mundo, acaba por o tornar uma aventura de consequências individuais.

A obra de Cliver Barker parece ser marcada precisamente por “hit and misses”, e se há momentos em que o seu contributo para o género do horror e da fantasia, e além deles, de um certo imaginário que acabaria por influenciar outras esferas, é inegável, outros projectos são algo mais negligenciáveis. E se houve ainda tentativas na banda desenhada que eram bem cumpridas artisticamente (com John Bolton, Scott Hampton, Craig Russell, Brereton), outras houve que levantavam questões de limites do bom gosto (Primal). Next Testament tem uma abordagem visual interessante, e um princípio promissor, mas infelizmente o seu desenvolvimento leva à conclusão anterior: é uma boa ideia e pouco mais.

Nota final: já tendo sido lançado o primeiro trade, o segundo adivinha-se no início de 2015 e, mais tarde, talvez apenas um só volume. A série em si, sob a forma de comic books, chegou ao fim no passado mês de Setembro. Imagens usadas da internet. 

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