23 de outubro de 2014

Molly. Rudolfo (Ruru Comix)

Agora que a Lodaçal Comix parece ter confirmado a sua descontinuidade, Rudolfo inflecte os seus esforços editoriais ao serviço do seu próprio trabalho. O autor tem-se desdobrado em vários campos, mesmo se nos atermos somente à banda desenhada, alguns dos quais em colaborações com outros argumentistas, outros dando continuidade a projectos seus anteriormente começados e, como este em particular, dando início a um novo trajecto. (Mais) 
Molly pretende ser uma revista bimestral, e segue algumas estratégias económicas (por subscrição) que lhe garantem a subsistência. Apenas o tempo o dirá se se aguentará face à fome de variedade do próprio autor. São várias as peças aqui apresentadas, que podem, ou devem, ser lidas singularmente. No entanto, elas também contribuem para uma imagem geral ou um propósito mais ou menos coerente (como o são os vários objectos arrastados por um mesmo ciclone).  

A história mais interessante, a nosso ver, é a primeira (após uma espécie de prólogo ou editorial desenhado), intitulada “Eu não estou fixe (eu prometo)”. Em apenas quatro páginas, numa história possivelmente autobiográfica, o autor mostra um retrato do seu quotidiano, no que tem de obsessivo e mundano, particular e banal, patético e significativo. Paradoxos que, de resto, são a conta-corrente da esmagadora maioria das vidas. Estas páginas apresentam uma estrutura bastante curiosa. Uma grelha de seis vinhetas, cada uma das quais devem ser lidas menos em sequência directa entre si do que estabelecendo intervalos de tempo diferenciados, e que vão sendo revisitados. As constantes incluem um diálogo num programa de chat no computador enquanto vê pornografia, um outro por sms, ainda um terceiro por telefone, e um retrato do autor-protagonista num enraivecimento incremental que o aparenta a um tresloucado violento. Além disso, também vemos uma cena em que come um cachorro-quente e uma cerveja, desenha (supostamente o próprio fanzine que temos nas mãos) e um estranho monstro, coberto de olhos, descendo uma escada.

Poderemos ler esse monstro como uma metáfora (óbvia, então) do seu Id, descendo às catacumbas dos prazeres e sensações mais baixos? Ou simplesmente como o seu cérebro afundando-se na escuridão e finalidade de todas as suas conversas e acções? Haverá aqui um estranho retrato de uma depressão, ou sem se se tão dramático, um desencantamento com as actividades de todos os dias? Será catártica esta curtíssima banda desenhada? A verdade é que possivelmente se poderá interpretá-la de outros modos alternativos, mas o seu tom não é celebratório, mas antes confrontacional em relação a todas as coisas que cita e mostra. Resta indicar ainda que esta história é também aquela que foi apresentada em Treviso, na antologia Quadradinhos, produzida no quadro da presença portuguesa daquele festival italiano, e de que falaremos em breve.

Depois seguem-se mini-histórias ou mini-sequências, desenhos soltos, pequenos cartoons e anedotas, todas elas num humor mais ou menos duvidoso e escatológico, e prenhe de referências de um universo coeso que compreende a cultura japonesa (jogos de vídeo, o Pikachu no seu avatar autoral, de Rudolfo, do Musclechoo, emoticons e onomatopeias dessa língua/cultura, o filme recentemente (re-)descoberto pelo Ocidente, House, de Ohbayashi,) do Porto (desde gunas aos seus transportes, passando pela cena musical que Rudolfo igualmente habita e incomoda) e outras (os Nirvana, P. K. Dick).

Até certo ponto, existe aqui uma brava, salutar e assumida dose de indulgência, e não tanto uma procura por narrativas mais alargadas, que tornassem totalmente inéditos os gestos do autor. Porém, há uma dimensão de irrisão e de verrinoso que não se pode negar, a primeira virada contra si mesmo, evidentemente, e a segunda dirigida de forma global, ainda que vaga, a todo um conjunto de realidades culturais. Não é fácil identificarmos se essas culturas citadas devem ser vistas como plenamente integradas ou se antes antagónicas do autor/protagonista, mas estamos em crer que será algo a meio disso. Como se o autor tivesse que, ao mesmo tempo de confessa as suas admirações, as demolisse para garantir que não existem quaisquer vacas sagradas.

Como dissemos, o autor tem também feito outros projectos, alguns dos quais já publicados e disponíveis. Indiquemos o primeiro: Negative Dad, uma série escrita por Nathan Williams e Matt Barajas, já publicou (em 2013) o seu primeiro número, pela Weed Demon Inc. A história em si tem lugar numa escola secundária dos Estados Unidos, na qual os dois protagonistas adolescentes vivem num ambiente que é tanto devedor dos The Simpsons como de Charles Burns, dos X-Files e de, mais uma vez, uma imensa sopa da cultura popular, que inclui algumas referências obscuras (há ali um poster dos Marquis de Sade?). Algumas dessas referências visuais poderão ter sido fruto do trabalho e input de Rudolfo, mas a esmagadora nascerá da obrigatoriedade da intriga.

A violência (típica?) das escolas e das cliques locais, e uma estranha tentativa de suicído (?) de um outro colega espoleta um mecanismo entre as várias personagens, que uma breve e algo forçada exposição (mas que acaba por funcionar, de caricata que é, uma vez que é cumprida por Jerry Seinfeld e Kramer!) torna claro: o pai dos adolescentes vive num “mundo negativo” e o seu salvamento pode decidir o idêntico resgate da Terra, de uma potencial ameaça misteriosa, o que envolve o governo, extraterrestres e a lei local. Tudo isto orbgará a que o mecanismo torne complicada a geometria relacional entre as personagens,
O trabalho de Rudolfo aqui ganha uma dimensão muito mais sólida e caprichada do que no seu trabalho pessoal, na medida em que as figuras – mesmo que ainda seguindo formas monstruosas, desvios escabrosos e doentios, e piadas marchetadas – são mais sólidas, o trabalho de tramas e pormenores mais sustentado, a composição mais segura. Numa leitura micro-estrutural, nalguns casos até parecemos estar a ver laivos de um Geoff Darrow. A maior parte das personagens é desenhada com uma estilização já reconhecível do pulso do artista, mas a forma como ele representa as personagens baseadas em actores conhecidos demonstra também outras suas capacidades, mais realistas e consequentes em termos anatómicos clássicos, o que contribui sobremaneira para os registos contraditórios (mas funcionais) no interior desta história.

Em contraste, o seu novo volume de Musclechoo, em que recupera a sua personagem, é desenhado com o total abandono dos desenhos na parte de trás dos cadernos escolares, durante uma aula. Com a rapidez de uma esferográfica mas a obsessão de tramas de um fanboy, repetem-se aqui os passos de uma grande aventura desta personagem num mundo devedor de forma absolutamente clara à celeridade, leveza e inconsequência dos jogos de 8-bits.

Em três diferentes gestos, o autor demonstra como pode fazer desdobrar o seu traço e esforços em mais do que uma direcção e em vários registos. Resta ver a continuidade de cada projecto, e como eles se desenvolverão.

Nota final: agradecimentos ao autor, pelas reservas.

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