30 de outubro de 2014

Is That All There Is? Joost Swarte (Fantagraphics)

Joost Swarte é um daqueles nomes que fazem uma história alternativa da banda desenhada, na medida em que a celebração de uma espécie de cânone central quase impede que se forme uma memória mais diversificada dos seus autores, e até um artista deste calibre, famoso, vê a sua circulação algo rarefeita. Poder-se-ia enclausurar Swarte na sua Holanda natal, agregando-o a um punhado de outros nomes com quem partilha afinidades criativas e editoriais (como Peter Pontiac, Evert Geradts e Theo van den Boogaard), ou a uma época determinada (os anos 1980 – algumas das técnicas de “decorativismo” foram tentadas por muitos dos seus contemporâneos, como François Schuiten e Gérald Poussin) mas o seu nome foi internacionalizado muito rapidamente, e a sua responsabilidade, de certa forma, num recrudescimento por uma banda desenhada consciente da ideia de design, é quase exclusivamente sua. Recordemos que uma das suas imagens mais famosas, que mostra a criação de uma banda desenhada como se de um estúdio industrial de cinema/fotonovelas se tratasse, foi não apenas feita para ser capa de uma das míticas Raw (a no. 2) como foi recuperada há pouco por Paul Gravett para estar na capa de Comics Art, de que falaremos. (Mais) 

Este livro reúne a totalidade da sua obra de banda desenhada, constituída sobretudo de histórias curtas, excluindo somente uma série juvenil mais convencional (Katoen en Pinball). Mas além de ser uma antologia, é também uma oportunidade do autor retocar a arte no que diz respeito à cor, ou a uma adaptação aos métodos actuais de impressão, ainda que ele não abdique de métodos que imitam as técnicas quando da sua publicação original: o que é bastante claro ou nas histórias cujo formato menor é adaptado ao do livro, ou tramas são criadas através de um “pontilismo” gráfico hoje obsoleto. Obsoleto no sentido técnico da palavra, claro está, já que ele ganha uma dimensão nostálgica que lhe incute uma camada de significação adicional a esta distância temporal, em relação a uma obra que quando surgiu pela primeira vez já criava uma ilusão de nostalgia para um passado mítico (uns anos 1950 que nunca tiveram lugar). 

Pois esta é uma das primeiras dimensões que é necessário ter em conta na leitura dos seus trabalhos. Não se trata somente de uma união entre uma “história” e um “desenho”, mas uma preocupação holística, global, em todos e quaisquer aspectos relativos à sua produção, artística e literária, claro está, mas igualmente mediológica, técnica, objectual, enfim, numa atitude que toma todas essas facetas que levam de uma ideia ao objecto que o leitor tem nas mãos um movimento fluido e coeso.

Chris Ware, que escreve a introdução a este livro, no seu expectável tom mortiço e auto-derisório, apresenta uma curiosa oposição límpida entre os caminhos que se lhe apresentavam nos seus próprios primeiros passos enquanto artista de banda desenhada: por um lado o “sentido do claro e legível”, por outro o “túrbido [messy] e expressivo”. Como sabemos, Ware seguiria o primeiro caminho, afastando-se das suas primeiras histórias, em que usava linhas mais sobrepostas e tramas (ainda que de quando em vez retornasse a essa técnica em determinados momentos), e ele próprio chega aqui a falar de “plágio” em relação a Swarte. Esse sentido de legibilidade quase absoluta que Ware cultiva, portanto, tem em Swarte um dos seus grandes modelos, e encontra-se precisamente numa inflexão de uma escola a que se poderia chamar de “clássica” e a “moderna”, que o autor holandês ajudaria mesmo a fundir, entendido de forma geral como uma charneira dos anos 1960 que transformou esta arte social, cultural e intelectualmente.

Essa hipotética escola a que Swarte se integraria não apenas conteria autores europeus (a escola belga dos anos 1930-40). É necessário olhar para origens ainda mais recuadas, sobretudo no que diz respeito à penetração, por assim dizer, de um design de linhas simplificadas e estilizadas, geométricas e limpas de tramas, que emergiu pelos anos 1920 e 1930 em muitos autores do cartoon, um pouco por todo o mundo. Assim sendo, Saint-Ogan, George McManus, Otto Soglow, Gluyas Williams, algum Gus Bofa, os nossos Emmerico Nunes e Stuart, etc. seriam concorrentes a esse complexo e misturado feixe de criatividade. Aliás, sobre o papel directo de Swarte na história da banda desenhada europeia, haveria muito que dizer, já que o seu papel ultrapassa aquele de autor para abarcar o de editor, tradutor e até mesmo “publicador” (afinal, a Oog & Blik, discutivelmente a mais arguta editora holandesa, é fruto do seu trabalho).

As mais das vezes, a reacção automática é dizer que Swarte é um dos expoentes da “linha clara”, mas há uma história bastante complexa por detrás dessa noção. Ainda que tenhamos de ser sumários, a verdade histórica é que esse termo, aplicado a Hergé e alguns dos seus companheiros, é na verdade um termo a-histórico e aplicado somente a posteriori. Foi em 1977 que Swarte, com alguns críticos de banda e editores de desenhada, entre os quais os irmãos Pasamonik, cunhou essa expressão, assim como o arrolamento de algumas das características que a definiriam (ausência de gradientes de cor e de sombras, linha de contorno fechada e sempre idêntica independentemente dos planos, que são tratados sem diferença gráfica, etc.). No entanto, podemos dizer que Swarte, assim como outros autores da sua geração, como Yves Chaland e Ted Benoît, trouxeram uma dimensão “moderna” ou mesmo “modernista” (ainda que num outro uso anacrónico do termo) a esse estilo, notável sobretudo pela sua capacidade de surgir claramente como citação, como dispositivo auto-reflexivo, ao contrário da “linha clara original”, que se pretendia o mais transparente possível. Citemos Bruno Lecigne, do livro Les héritiers d'Hergé (precisamente publicado pela Magic Strip, dos Pasamonik, que pretendiam criar uma colecção de ensaios reflexivos): “a citação não é comunicação mas sim, por exemplo, a confusão [brouillage], a ambiguidade. É por isso que a arte clássica combate a heterogeneidade e transmite o seu ideal de pureza e de legibilidade, do qual o ritual é a história, a narratividade mais do que a narração”.

Estes últimos termos de Lecigne mereceriam um maior desdobramento, e na verdade não podemos dizer que Swarte abandone totalmente a narrativa em nome de uma experimentação formal. Bem pelo contrário, o seu uso de personagens recorrentes, de anedotas prenhes de um humor por vezes obsceno, outras chocante, a sua criação de diálogos cheios de ironia, o modo como espelha aspectos da sua cultura actual, etc., demonstram como o grau de “legibilidade” que o preocupa passa pela tessitura de histórias relativamente simples. Mas o prazer da sua degustação atravessa outros canais também.

Nessa rede de intertextualidades, não é apenas Hergé que está no âmago das reinvenções de Swarte. Poder-se-á identificar também Disney, e os irmãos Fleischer, como uma miríade de outras referências mais ou menos directas, mais ou menos obscuras, de todo um campo da cultura popular, compreendendo-se a banda desenhada, a animação e outras áreas. E que tem repercussões a nível de representação político, já que o seu protagonista favorito, Jopo de Pojo, é uma espécie de mescla de Tintin e de típica caricatura de um negro circa anos 1920, à la Fleisher e outros, e não faltam referências aos estereótipos raciais que foram empregues por muitos dos autores “citados” ou “apropriados”, com grande destaque para Hergé.

De certa forma, e empregando uma outra ideia de Ware do prólogo, poderíamos encontrar nessa reapropriação e repurposing de um estilo determinado a novos “conteúdos”, ou géneros narrativos, atitudes, direcções, um eco do que havia sucedido em relação ao estilo “Disney” ou infanto-juvenil norte-americano conhecido como “big foot” por Robert Crumb, Gilbert Shelton, Jay Lynch e art spiegelman. É como se se tratasse de uma obsessão dos artistas em reempregar aquela banda desenhada que mais os haveria marcado na infância e numa primeira aprendizagem da arte da banda desenhada – levando a uma quase imperativa mimese – mas transformando-a num veículo que se adaptasse a um posicionamento expressivo e, por isso, também político, social, etc. mais coadunado aos tempos (então) presentes, às pulsões actuais da maturidade (ou falta dela, já que se poderia descambar facilmente em piadas fáceis em torno da violência, do sexo, de uma irreverência óbvia) dos artistas. Mas esta seria apenas uma aproximação superficial dos dois territórios distintos, já que os desenvolvimentos são bem diferentes, como ainda Ware demonstra, num maior rigor artístico da parte do autor europeu, em que menos do que se entregar a exercícios de ensimesmamento, cria ficções passíveis de reflectir um certo estado da sua sociedade, ainda que distorcido.

Swarte foi também um grande precursor de meta-banda desenhada, criando não apenas esses jogos de referências visuais intertextuais que nos convidam a associá-lo a outras obras, como também a metáforas visuais, ilusões (a que o seu colega Ever Meulen daria continuidade de forma mais intensa), e histórias que se inscreveriam tanto bem na Oubapo (ele tem mesmo uma “tradução” dos Exercises de style, de Quenau, como Matt Maddren) como numa família de autores como Marc-Antoine Mathieu (uma história com a personagen Anton Massakar, por exemplo, explica como funciona a quadricromia, que Mathieu exploraria mais tarde com J.C. Acquefaques, em La qu...).

Esta é, então, uma antologia obrigatória, num momento em que o autor parece ter abandonado a banda desenhada de vez (continua a trabalhar, mas em design, regressando à sua formação de design industrial – neste aspecto é muito parecido com Javier Mariscal - e para os mais díspares produtos: selos, óculos, bolos e edifícios). A conter numa prateleira que se preze de dar atenção à banda desenhada global. As histórias não estão organizadas cronologicamente, mas tampouco de acordo com as personagens recorrentes ou temas. Isto leva, todavia, a uma fluidez da diversidade do seu trabalho que nos obriga a procurar outro tipo de associações organizativas, livres e abertas. Um aspecto menos conseguido é não conter o livro um aparato crítico mais decidido. Uma nota no final arrola as várias publicações em que elas surgiram, e o índice indica as datas, mas a sua articulação poderia ser mais completa, de maneira a que o seu uso bibliográfico fosse mais científico.

Nota final: agradecimentos a J.B., pela oferta do livro. 

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