3 de outubro de 2014

El Deafo. Cece Bell (Amulet Books)

Já noutras ocasiões falámos sobre a possibilidade de pensar a banda desenhada não tanto enquanto arte, uma disciplina expressiva passível de ser empregue para a criação de objectos estéticos, ora mais ora menos controlados por limites genéricos e experiências tradicionais, ou informados pelas mais díspares noções advindas de todo o campo cultural, mas como linguagem. Isto é, um conjunto mais ou menos expectável de elementos formais que pode ser empregue para outros fins, tais como os comunicacionais. É isso o que nos leva a compreender, por exemplo, certos usos de um estilo “industrial” ou “simples” menos numa ideia de reescrever a própria disciplina do que para fazer passar uma vontade (propaganda, publicidade, informação institucional). El Deafo viverá num território entre essas duas atitudes, que de resto jamais são estanques ou absolutas. (Mais) 

Este é um livro dirigido a um público infantil, mas que já seja capaz de ler autonomamente e também capaz de começar a tomar decisões profundas de forma autónoma, decisões que digam respeito às suas formações enquanto cidadãos e pessoas. O livro segue uma menina de uns 5 anos chamada Cece que ensurdece aos quatro anos. Rapidamente ela terá acesso a um mecanismo, pesado mas eficaz, que lhe dá acesso ao mundo dos sons, o Phonic Ear (uma marca registada), mas que lhe traz um sinal de “diferença”. Aos poucos, essa “diferença” torna-se um problema para a sua relação com os colegas da escola, os amigos na rua, mas Cece construirá dois caminhos, também eles eficazes, para superar esses aparentes obstáculos: a imaginação, em que ela se transforma numa super-heroína chamada El Deafo (apropriando-se e re-empregando, portanto, um dos nomes que lhe haviam chamado) e a perseverança, através da qual não hesita em procurar estabelecer fortes laços com aquelas que ela considera serem as suas melhores amigas.

Em larga medida, este é um projecto autobiográfico, mas o qual toma um número de liberdades criativas (necessárias?) para tornar o texto num edifício literário. Algumas dessas liberdades são conta-corrente da prática autobiográfica, como a alteração de nomes e circunstâncias, de forma a providenciar uma mínima distância (e defesa de implicações legais, igualmente). Outras já a aproximam de outros métodos da banda desenhada, como a escolha, por exemplo, de representar todas as personagens como coelhos. Esta escolha de personagens teriomórficas recordará as práticas da Disney, de Crumb, de Maus e de uma mão-cheia de outros projectos, cada qual com os seus propósitos bem distintos, uma vez que são pautados por outras vontades políticas e estéticas. Se de art spiegelman se poderia dizer que há uma herança – ou pelo menos um trabalho num espaço de possibilidade que foi inaugurado por ele – da revisitação da memória através destes filtros, já a relativa falta de gravidade e humor presente em todo o livro o aproxima sem pejo de géneros infanto-juvenis. Na verdade, El Deafo pretende desdramatizar a situação de Cece, transformando-o num testemunho de uma vida sem entraves de maior, sobretudo no que diz respeito à sua identidade e imaginação.

O que queremos dizer com isto? É que, apesar de haver um ponto central no livro – a surdez de Cece, que a afectou aos quatro anos -, ela recusa-se que seja essa surdez o traço definidor da sua pessoa. É quase inevitável que quando falamos de alguém, que utilizemos aquele traço que, à nossa visão, é o que mais rapidamente a descreve, mas as mais das vezes esses descritivos são precisamente os sinais que estabelecem uma espécie de diferença ontológica entre essa pessoa e todas as outras, que carregarão sinais de “normalidade”: poderá estar associado a deficiências físicas (surdez, coxear, cegueira), a uma nacionalidade (o “russo”, o “brazuca”, o “franciú”), a sexualidade (a lésbica, o gay), ou mesmo a cor de pele (o “preto”, o “chinês”). Mas é sequer uma definição? Diz-se alguma coisa em concreto da pessoa em si ao se usarem essas palavras tão gerais? Cece sabe que a esmagadora maioria dos olhares dos outros se concentrarão na sua surdez, e que esse traço será, em primeiríssimo lugar, um obstáculo, quer de afastamento – as pessoas que se recusam a falar com ela ou a escolhê-la para um jogo por causa da surdez – quer de aproximação exagerada – aquelas que querem parecer simpáticas mas não lhe falam de outra coisa que não a surdez, a sua “diferença”, ou que se mostram insistentes sobre essa dimensão, sem querer sequer procurar outras.

El Deafo, então, é o relato da forma como nesses primeiros anos de transformação física e de relação com o ambiente circundante, e as pessoas que o habitam, Cece foi batalhando, mais do que negociar, para ocupar um espaço decisivo, singular e pessoal. Susan Sontag, no parágrafo introdutório a A doença como metáfora, escreve o seguinte: “A doença é o lado sombrio da vida, uma cidadania bem pesada. Ao nascer, todos nós adquirimos uma dupla cidadania: a do reino da saúde e a do reino da doença. E muito embora todos preferíssemos usar o bom passaporte, mais tarde ou mais cedo cada um de nós se vê obrigado, ainda que momentaneamente, a identificar-se como cidadão da outra zona”. Este livro combaterá precisamente a utilização das doenças como metáforas, que se tornam como portais que permitem juízos de valor, morais, políticos sobre os cidadãos “saudáveis” que momentaneamente utilizam o “mau passaporte”. Todavia, é ainda mais grave que certo número de pessoas atravesse essa fronteira cedo na vida de maneira a que quase sejam permanentemente identificados com essa outra cidadania. El Deafo quer mostrar como, mesmo habitando-se a zona de uma doença, ela é isso mesmo, apenas uma doença, que pode ou não ser superada em si mesma, mas que não implica necessariamente problemas em nenhuma das outras facetas do ser humano, sobretudo aquelas que dão acesso à dignidade humana e a certas necessidades básicas como as da amizade. E é esta última necessidade o grande objecto da busca incessante de Cece, ao longo da história.

Uma vez que se trata de um livro cujo público-chave são leitores mais jovens (digamos entre os oito a dez, onze anos de idade), não se pode esperar que a autora procure ambivalências e zonas cinzentas. Bem pelo contrário, tudo é bastante nítido e claro e afirmativo. Claro está que se poderia imaginar que trabalhar a ambivalência é uma mais-valia mesmo junto a um público mais jovem. Sem dúvida, e bastas vezes falámos aqui de autores que o fazem com uma mestria inigualável, de Shaun Tan a Oliver Jeffers, ou Maurice Sendak. Mas este em particular quer precisamente criar uma narrativa clara e positiva sobre o tal traço de Cece, que sendo aquilo que a funda enquanto personagem, rapidamente se torna algo a se dissipar. Compreender-se-á, então, o desejo que o livro terá em contribuir de uma forma programática, mais do que em termos de revolução estética. Por isso a figuração é clara, as cores são límpidas, a construção das páginas de uma navegabilidade muito evidente e sem grandes complicações. Mesmo assim, a autora deixa claros os momentos de fantasia (as acções de El Deafo), jamais permitindo que a personagem perca o pé da realidade. As projecções das suas fantasias, os seus medos e sonhos, são permanentemente apresentados, fazendo parte igualmente da matéria com que vai crescendo, mas não invadem de forma disruptiva a sua vida de vigília. E os momentos-chave em que isso acontece servem para mostrar, também de forma clara, que são mecanismos de diálogo entre ela e o mundo.

Assim sendo, estamos longe do tipo de discursos que fundaria quase este género, de Binky Brown a Spiral Cage, de L'ascension du Haut MalCancer Year e Stitches. Nada disto significa que essas outras obras - maiores, na verdade, em termos culturais e em enquadramentos mais alargados - não sejam correctas na sua exploração dos aspectos menos felizes, das crises despertadas pela presença de uma doença e a incompreensão dos demais. Simplesmente as experiências das pessoas são sempre, sempre singulares, e haverá aquelas que não resultaram em destruições em torno, caminhos minados para o resto da vida, divórcios completos da felicidade. El Deafo é, nesse caminho, um relato positivo.

Livro simples mas inspirador, de uma linguagem clara mas para pôr os leitores a caminho de alguma realidade dura, sem tragédia mas coragem em ser directo, El Deafo poderá não revolucionar a arte em si, mas é um gesto que traz sem dúvida alguma um aumento da linguagem da banda desenhada, enquanto canal para todas as vozes.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de uma prova do livro; imagens a cores fornecidas pela mesma.

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