28 de outubro de 2014

Av. Paulista. Luiz Gê (Quadrinhos na Cia.)

Não se trata, Av. Paulista, tanto de um projecto de relação entre a arquitectura e a banda desenhada em que a disciplinarização da primeira inflicta processos estruturais da primeira, ou se procure na linguagem formal da segunda formas de erigir uma cidade, à escala humana ou outra. Não estamos aqui na fundação de uma nova cidade fictícia (à la Dominion City, de Seth), nem um entendimento da vida humana como factor enclausurado na vida de uma cidade (à la Chris Ware), nem uma pesquisa de questões arquitectónicas em torno de micro-ficções (à la Jiminez Lai). Trata-se mesmo de um retrato, quase pessoal, quase passional, de uma veia que atravessa uma cidade e, conforme a perspectiva, a corta, a coze, a sangra, a alimenta. (Mais) 

Luis Gê é um dos grandes nomes da HQ brasileira, ainda que seja, regra geral, um desconhecido em Portugal. Com vários livros no currículo, alguns dos quais reunindo trabalhos de cartoon e observações sociais,(Quadrinhos em Fúria), outros reunindo histórias curtas, sobretudo publicadas na revista Circo (que com a Animal, a Chiclete com Banana, Geraldão, e outras, fizeram a geração punk dos anos 1980-90 da HQ), de que o autor era um dos editores, adaptações literárias, ilustrações, etc., e tendo experimentado todas as formas e linguagens possíveis, Av. Paulista é uma espécie de retorno e recuperação.

“Recuperação” pois o livro na verdade não é totalmente inédito, ainda que a sua circulação tenha sido limitada. Criada para ser serializada na revista Goodyear, no início dos anos 1990, o convite estendido ao autor vinha fazer convergir algumas das suas preocupações pessoais e criativas: a sua formação profissional em arquitectura, uma natural tendência para o estudo da vida da cidade de São Paulo, e uma apetência pelo estudo e pesquisa da linguagem de banda desenhada (que o autor chegou a estudar em Londres, por exemplo, de forma activa). O seu entusiasmo, pesquisa e rigor levaram a que um assunto que se adivinhara inicialmente para uma espécie de breve dossier se transformasse num número especial da revista. Mas apesar da notícia dada no prefácio novo do autor (o livro ainda contém suplementos em torno do tema), de que teria havido cerca de 30 mil pedidos para receber a revista, a verdade é que ela acabou por ter uma distribuição limitada e privada, tornando-se esta nova edição, com algumas alterações a nível das atribuições de autoria, reescrita e redistribuição dos textos nas páginas, já para não falar do seu título, agora tomando a ideia original do autor, em vez de um Fragmentos Completos decidido pelo comité original.

“Retorno” pois este livro possivelmente marcará o regresso de Luiz Gê às lides das histórias em quadrinhos, da qual andava arredado há alguns anos (fenómeno similar àquele de Penim Loureiro, de que falaremos em breve, mesmo esquecendo a coincidência de serem ambos formados em arquitectura e terem na cidade um espaço privilegiado de topicalidade).
A avenida principal da cidade de São Paulo surge aqui como um espaço verdadeiramente dinâmico: não tanto pela inevitável atenção para com o dito “progresso” histórico e os desenvolvimentos sociais e económicos que terá testemunhado e testemunhará ainda, como na sua fabricação enquanto espaço de performatividade de várias identidades. Não apenas as dos paulistas, mas possivelmente as dos brasileiros em geral e dos habitantes urbanos de quase todo o mundo desenvolvido. A cidade específica, assim, pode ser vista como uma metonímia da própria relação entre o cidadão e as metrópoles contemporâneas, sobretudo aquelas que cavalgam a onda do tardo-capitalismo incessante e devorador. Pois o livro de Luiz Gê não é somente, ou sequer, uma apresentação. Ela é uma visão passional, como já o dissemos, o que não abdica de forma alguma de um posicionamento crítico e um incitamento ao rigor do pensamento e da acção políticos.

Ainda que haja aqui uma dimensão pedagógica envolvida, Luiz Gê impede que essa se torna a linha de força do seu projecto, e permite que haja uma dimensão de realismo mágico, se assim o quiserem chamar, a informar as suas pesquisas visuais, de modo a que o livro se torne, acima de tudo, um veículo de expressão artística, mesmo que entrosada num discurso histórico, político e crítico. Simplesmente não obedece a fórmulas de organização da informação pronta-a-citar. Bem pelo contrário, a obra exige algum esforço de concentração e até mesmo de interpretação, para que se compreendam as diferentes linhas que concorrem na sua complexa textura.

Quando falávamos “à escala humana”, é óbvio que qualquer cidade o é, a partir da perspectiva de um ser humano (com a excepção de Albert Speer, talvez), mas o foco pode ser sempre deslocado de uma qualquer forma. No caso de Av. Paulista é precisamente à escala, como dizê-lo?, geológica? Espacial? Do sítio? Independentemente da existência de personagens humanas, históricas e fictícias, que nos ajudam a controlar a informação sobre a progressiva transformação do espaço natural em sendeiro de tropeiros, este em avenida e calçada, rua de habitações, e sucessivas incrementações até a um futuro próximo. E além dele, mesmo, fechando-se num ciclo muito curioso, que tanto deve a Arthur C. Clarke como à estratégia narrativa do ourobouros, em que o início é similar ao final. Essas fases de emergência e transformação correspondem à realidade histórica, e existem muitos “factos” arrolados ao longo do livro, mas eles não são propriamente apresentados num registo naturalista: bem pelo contrário, o autor deixa que um certo grau de fantasia visual se imiscua nessa transmissão da história, ou que certas linguagens estilísticas da época retratada tintem a sequência, como é o caso, gritante, dos anos 1920, com a aceleração dos transportes (aviões, eléctricos e automóveis) a obrigar a uma composição mimando as composições futuristas, e os contornos de linha branca aumentando a qualidade fugaz desse mesmo episódio.

A mistura do humor e de uma visão histórica, que já eram características de muito do seu trabalho, continuam aqui presentes, se bem que numa tonalidade mais tranquila, menos excessiva. Com alguma gravidade, até, sobretudo nos trechos em que há uma exposição dos factos. A profusão textual, de um narrador externo, de citações, de uma linguagem quase administrativa, que por vezes convida a um desaceleramento da leitura global, e a momentos de interrupção das “acções”, aumenta o grau de informação, mas que rapidamente se transforma numa espécie de arma de arremesso para a crítica dos sacrifícios do passado – o património humano, social e cultural desaparecido, uma certa convivência transversal evaporada, etc. - e igualmente elementos para uma possível apresentação de soluções, que poderão ser vistas como utópicas. Mas se as soluções não conterem uma dimensão utópica, serão respostas sequer? Nesse aspecto em especial, Av. Paulista poderá fazer recordar os leitores da curta história de Robert Crumb, “A Short History of America”, a qual atravessa o passado de uma só rua, desde os momentos pré-colonialistas até à total decadência e ocupação dos nossos dias, mas logo depois também, numa segunda versão aumentada, apresentando vários futuros alternativos. Também Av. Paulista o apresenta, possivelmente havendo alguma influência directa, ou possivelmente pois ambos os autores beberiam de fontes idênticas em termos de desejo de regresso a um tempo mais simples (esse também um “passado utópico”, claro está).

O desenho de Gê é de uma estilização quase extrema, usando um desenho a linha grossa que fecha os contornos de todos os objectos que delineia. Não há tanto espaço para pesquisas de tramas ou sombras, se bem que não abdique totalmente dessas técnicas. No caso específico desde livro, a cor tem uma dimensão particular, uma vez que muitas das linhas são em cores vivas e não a negro, o que lhe dá uma dimensão algo intangível, mágica, sobretudo quando a matéria narrativa se presta a isso, como no caso dos episódios da mistura de tradições dos anos 1910, a velocidade dos anos 1920, já citado, ou do futuro longínquo e já-mágico. Essa estilização, porém, nunca significou um espartilho para o autor, que explora vários registos numa mesma página: várias personagens poderão estar representadas de acordo com princípios bem distintos, e que tanto poderá ajudar a sublinhar uma personalidade gráfica diferente como cumprirem um papel qualquer necessário à estratégia da história. Seja como for, traz um efeito não homogéneo, mas próximo do que uma crítica já chamou de “caleidoscópico”, o que faria particular sentido na diligências de cor a que o autor se abandona nestas páginas.

Biografia de uma avenida em particular, mas também da personalidade de uma cidade, do sistema económico-social de um país, das escolhas filosóficas que são veiculadas à flor do chão, Av. Paulista é igualmente um hino de amor do autor pela sua cidade, em que talvez nutra uma esperança em a recuperar para uma escala mais humana. É também, como vimos, um eco do domínio do autor por esta outra sua disciplina de expressão. Recuperando uma “curiosidade bibliográfica” de um dos maiores autores, Av. Paulista também poderá vir a ser agora um título obrigatório na consideração da maioridade das HQs do Brasil.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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