18 de outubro de 2014

As regras do Verão. Shaun Tan (Kalandraka)

Agora que o breve Verão é apenas uma pequena memória enterrada em dias cinzentos, de poucas abertas, regressar a um livro que o acompanhou de forma discreta e tranquila mas decisiva é necessário. Shaun Tan regressa, no nosso círculo de traduções, com um novo livro que explora os espaços não-ditos mas compreendidos epidermicamente na pele. (Mais) 

Como havíamos dito em relação a This One Summer, das Tamaki, há todo um intervalo na maior parte dos crescimentos dos jovens no mundo ocidental em que o Verão é um momento particular de desabrochamentos específicos. As vidas quase se medem por Verões. Cada Verão traz uma nova camada de maturidade, compreensões mas, por isso mesmo, assinalam também pontos de passagem por mundos novos e realidades que até ali ou estavam totalmente oclusas ou pareciam inalcançáveis. Mas nessa passagem de um ponto ao outro, há um intervalo menor, quase indetectável, ligeiramente acima da percepção, onde se fica num inseguro território de ambiguidades e incertezas que se alastram para toda a existência (mesmo que apenas do momento). É nesse intervalo que podem surgir pequenas ajudas, como aquelas espraiadas pelas Regras de Verão.

Poderíamos querer “traduzir” estas regras para realidades concretas do comportamento das crianças. Poderíamos também metaforizar toda essa relação e compreender nelas apenas as bases que levam os adultos a responderem “porque sim” a todas as ordens, regras e disposições que os mais novos devem obedecer mesmo quando (ainda) não as compreendem. Poderíamos também fazer de surdos e apelidar de absurdas estas prescrições e votar o livro ao esquecimento.  Como já é costume de Shaun Tan, os protagonistas habitam um mundo em que as separações de determinadas categorias não existem de forma nítida: formas animais e mecânicas, biológicas e inorgânicas, sencientes e inertes. Mas também aquilo que separa o lógico do fantástico, o realista do maravilhoso, se esboroa a cada página.
O livro, ou melhor, a “faixa textual”, é contada a partir da perspectiva de um irmão mais novo, que a introduz como se num balanço após o facto (“Foi isto que aprendi no verão passado”). Mas não podemos dizer que em termos visuais ele ganhe qualquer tipo de preponderância, tirando uma cena ou outra. O livro é afinal também sobre os elos que unem os irmãos, ou que os podem unir. Não se trata de nenhuma moralidade, mas de um retrato de uma cumplicidade que pode existir, e que aqui ganha contornos de uma aventura desequilibrada. Por vezes parece que o irmão mais velho lança o pequeno em perigos desnecessários, por outro parece ser uma forma de levar a que ele ganhe alguma autonomia face a essas mesmas situações. Mas a presença de ambos de fio a pavio, e o modo contínuo como o mais velho protege o mais pequeno (mesmo quando isso não parece acontecer) demonstra como ambos têm o seu papel na geometria da tentativa de controlo que exercem sobre o seu mundo, por mais estranho que ele surja. A ausência de figuras parentais aumenta o grau de fantasia, é certo, mas ao mesmo tempo confirma uma linguagem paralela ao nosso mundo social normalizado, e onde os irmãos estabelecem protocolos à margem do controlo dos pais.

Cada frase apresenta uma única regra – “Nunca comas a última azeitona numa festa”, “Nunca deixes uma meia vermelha pendurada na corda da roupa”, “Nunca te atrases para um desfile” – mas as imagens revelam de forma literal essas mesmas circunstâncias, e quase todas mostram o imediato falhanço em as cumprir. Algumas delas parecem pertencer ao mundo do senso comum, da verdadeira segurança das nossas vidas: “Nunca dês as tuas chaves a um estranho” ou “Nunca te esqueças da palavra-chave”, mas no primeiro caso a consequência é ser-se substituído nos prazeres caseiros por um gigantesco homem-gato e na segunda ver-se vedada a entrada num jardim de árvores brilhantes. Outras estão próximas da arbitrariedade de quem comanda a razão da força: “Nunca discutas com um árbitro”, “nunca percas uma luta”, sobretudo por quem as institui possuir o poder decisório e judicial. Apesar do irmão mais velho apresentar muitas vezes expressões de frustração, irritação e ira, quase todas as regras afinal parecem ser apenas ditadas para serem quebradas, estando nessa passagem de um limite a verdadeira lição e experiência. Talvez mesmo afinal elas não tenham existido sequer como prescrições anteriores às acções, mas tão-somente explicações posteriores das consequências.

O texto em si parece conter em si ecos bíblicos. Os 13 primeiros preceitos são apresentados na negativa (“Nunca faças x”), e depois de um intervalo onde se estabelece uma acção consequente, elas retornam de um modo positivo (“Faz x”), duas vezes. A última regra, de certa forma, é um corolário de todas as outras, encerrando-as no seu espaço próprio, assinalando a sua importância e natureza apartada (o que é corroborado pela imagem). Bem vistas as coisas há uma narrativa clara que subsume as cenas “fantásticas” a uma normalidade criativa dos dois irmãos. Mas essa subsunção retiraria a magia dessas experiências, isto é, quase as negaria como tal, e é precisamente esse pecado que Tan quer evitar ao dar-lhes presença actual nas imagens. As crianças não “fingem ser uma coisa”, elas são-nos efectivamente nesse momento, e levam muito a sério essa performance de identidade. Ela constitui-as. O Verão é, mais do que um tempo, um espaço privilegiado e sensível a esses papéis.  

Se existem elementos reconhecíveis na materialidade das imagens em Shaun Tan, há também uma densidade em Regras que não estava presente nos livros anteriores. O uso da palavra “pintura” no caso das suas ilustrações não apenas carrega o seu significado técnico como igualmente uma certa responsabilidade cultural e potencialidade de interpretações. Sublinhada de forma patente pelo uso sistemático entre páginas duplas ou ilustrações de página inteira, sempre imensas, e cujas imagens sangram para além dos limites das folhas. Há uma significativa abertura das possibilidades de leituras paralelas, conforme o grau de legibilidade que se devotam as imagens – uma concentração nas acções centrais, ou um acompanhamento da ave preta singular que atravessa a história, ou uma exploração dos vários planos que compõem cada paisagem, nela mesma retratando uma compreensão social do mundo real em que habitamos -, e tampouco se pode descurar uma leitura detalhada formal, que preste atenção à textura, aos jogos cromáticos, à densidade das sombras, e à forma como a luz é inscrita.

Em relação à primeira, os rastos de óleos sobrepostos que compõem camadas de tinta recordam os excessos de van Gogh, e até certo ponto, também a luminosidade dos seus quadros do sul de França, ou as naturezas mortas pós-Cézanne. Algumas das cenas no livro têm horizontes distantes, mesmo quando se tratam de interiores, recordando algum tipo de monumentalidade de um Moreau, ou os ambientes feéricos dos quadros bíblicos de um John Martin ou David Roberts. Uma vez que em termos de representação o autor opta sempre por superfícies muito texturadas (pêlos, madeiras várias, ferro, solos secos, prédios velhos, biomas expandindo, céus carregados, fumos), jamais existem superfícies sem gradientes ou ruído e intervenções de cores complementares ou interrupções de luz. O autor usa essa mesma abordagem para “contaminar” as páginas de texto, desprovidas de imagens representativa mas não de traços de lápis, de cera, pastéis, papéis coloridos e amachucados. Essa constante torna o surgimento de um céu magnificamente azul, atravessado por uma miríade do que parecem ser organismos marinhos bioluminescentes, uma excepção brilhante.

Mas, como sempre, os livros de Tan são excepções.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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