15 de agosto de 2014

Les incrustacés. Rita Mercédès (L'Association)

O que acontece quando nos deparamos com um livro que se sente ser uma bateria de referências buriladas ao ponto de reviverem e cruzarem linhas de interpretação que se vão confundindo e obrigando a reler não apenas o texto em si mas toda a cultura que o permite? Uma outra metáfora seria a de uma pequena colónia de organismos, mais ou menos identificáveis na sua singularidade, mas que, agregados num mesmo espaço, acabam por se multiplicar e reproduzir entre si, criando mutantes que tanto conseguimos identificar como nos lançam em dúvidas... A única hipótese, de navegação, é tentarmos alguns dos mapas mais familiares, e esboçar uma rota, e esperar que possamos chegar a algum porto. É possível, porém, que os escolhos sejam demasiados e criem antes a ilusão de chegarmos a algum lado, quando na verdade estamos ainda perdidos. (Mais)

Esta linguagem não é inocente, e bebe directamente da matéria narrativa do livro. Duas personagens masculinas, com um aspecto um tanto ou quanto pateta, e com um comportamento que recordaria o de débeis mentais ou crianças, passam as férias numa colónia balnear. A circunstância vai permitir-lhes que embarquem num périplo pelo mar aberto, cruzando-se com criaturas (todas mulheres, mas que estão a tomar o lugar de algo que não-somente-mulheres), e vivendo algumas aventuras (mesmo que apenas nos sonhos deles). Depois desembarcam e conhecem uma estranha família que dirige um pequeno hotel na praia e, para asseguraram a sua segurança, recontam as suas aventuras, se bem que distorcendo hiperbolicamente os eventos, senão mesmo inventando, e finalmente fogem deles para cair no que parece ser o recomeço de tudo.

Logo à partida, toda uma série de elementos estruturais, dos eventos, das viagens e encontros, irá associar Les incrustacés àquela literatura, e depois banda desenhada, de grande aventura “para rapazes” que surgiria com a emergência da burguesia, desde o século XVII (por hipótese, Les aventures de Télémaque, de Fénelon, poderia ser um modelo), e teria em Tintin uma espécie de zénite. Mas há igualmente outras figuras culturais que surgem como fantasmas ou sombras sobre esta obra. Logo à partida, a comparação com as personagens Bouvard e Pécuchet, de Flaubert, é inevitável, mas onde a curiosidade daqueles nos ramos da ciência era gorada pelos falhanços processuais, estes são recompensados na sua imbecilidade em novos desvios em direcção à acção. Além disso, estas personagens assumem também um papel idêntico a de todos os intrépidos aventureiros navegadores e exploradores de ilhas selvagens, daquela tipologia textual já citada, de Ulisses a Crusoe, de Barba Ruiva a Tarzan, passando por toda uma série de, apetece dizer com Propp, narratemas: o encontro com as “sereias”, a abordagem das ilhas, o embate com os “selvagens”, etc.

A autora, em várias entrevistas, refere-se ao facto deste projecto ter sido despertado por uma impressão geral que ela tinha em relação à banda desenhada (sobretudo clássica), e como este livro é uma espécie de resposta criativa a essa situação, sobretudo em relação ao seu carácter misógino. Pouco importa se a sua atitude estará mais ou menos desfasada em relação à produção contemporânea, mas não o estará face à sua própria experiência de leitora, pertencendo a uma geração que terá sido exposta a todo esse corpo de banda desenhada clássica, de aventuras, mas que dispensava em larga medida alguns dos contornos sociais que viriam a ser conquistados noutras esferas, nomeadamente no que diz respeito à presença das mulheres, e à sua importância enquanto actrizes, decisoras, etc. Um tema, de resto, abordado academicamente por Ana Bravo (mesmo que com limitações), como havíamos discutido.

As duas personagens são “M.” e outra que não é jamais nomeada. M é mais activo, toma decisões, é ele quem comanda a palavra falada, quem reconta as aventuras aos outros, quem distribui funções, quem tem encontros sexuais. O outro raramente fala, e quando o faz emite uma expressão incompreenível - “Progok golomol!” -, parece mais contemplativo e quer é deixar-se estar no seu canto, e segue M. Quanto é necessário, porém, acaba por cumprir acções, ainda que ocultas a M., que terão grandes consequências nos avanços de ambos. E, o mais importante, é que toda a trilha verbal do livro é escrita por ele mesmo, na primeira pessoa.

Um dos pontos fortes do livro é que, no meio de tanto absurdo e fantasia, é por vezes complexo estar seguro até que medida é que poderemos pensar em termos de “verdade” em relação aos eventos passados. Por exemplo, já num momento avançado do livro, quando ambos desembarcam junto à família do hotel, como dissemos M. conta-lhes a história das suas navegações (como Ulisses aos Faécios, ou Vasco da Gama ao rei de Melinde e Paulo da Gama ao Catual, associando-se portanto ao género épico). Ora, tendo sido testemunhas (leitores) do que se passou na viagem, sabemos que o que ele conta não é verdade, ou é distorcido a um ponto de irreconhecimento total. O que sucede, porém, também para o leitor, é que o conto de M. tem uma “tradução visual”, ou uma presença gráfica, no livro, idêntica a tudo o resto, ou seja, nós acabamos por ter acesso a mais um episódio, mesmo que ele não seja “real”. Não é, portanto, na economia da banda desenhada em si, um “desperdício”, é mesmo um remendo de roupa velha com pano novo, trazendo uma camada adicional a Les incrustacés.

Rita Mercédès é uma ilustradora, com trabalho espalhado por toda a espécie de publicações, e também tem alguma produção de banda desenhada no seu currículo, tendo começado auspiciosamente em fanzines de Charlie Schlingo, mas aparentemente sem se ter entregue de forma exclusiva ou particular a este território. Treinada em artes e arquitectura, e aliando-se às suas aparentes inclinações literárias – não apenas em termos de referências, mas igualmente de fraseado, já que o seu francês é requintado, complexo e floreado, variando-se os momentos de diálogos com as descrições esforçadas e alucinadas do protagonista -, Mercédès parece recuperar uma abordagem ao desenho que recordará a ilustração dos séculos XVIII e XIX, cuja transformação para impressão passava pela gravura, que permite linhas absolutamente finas e um efeito de manchas e texturas diferenciadas (sobretudo a água-forte?). Por isso, também a nível visual as referências parecem acumular-se, recuperando essas práticas antigas, mas também se aproximando de artistas modernos da banda desenhada que partilham essa “obsessão” por texturas, como Edward Gorey, Roland Topor ou Francis Masse: uma abordagem muito cheia, de traços delicados e finos para os contornos que depois quase se diluem sob a avalanche de um obsessivo e quase excessivo trabalho de tramas, diferenciadas para cada superfície, face de um objecto, padrão de veste, canto de vegetação, etc. A autora estará próxima ainda de Gorey na sua forma de paginação e articulação entre imagens e textos: não existem balões de fala, mas somente legendas, incorporando por vezes diálogos entre aspas, sob as imagens, as quais se estendem nas páginas sob a forma de manchas mais ou menos disformes no fundo branco, oscilando entre uma imagem enorme e as personagens repetidas 5 vezes (a esmagadora maioria tem apenas 2 e 3 vinhetas “flutuantes”). Mas onde o autor norte-americano trabalhava quase exclusivamente num formato oblongo de uma imagem por página, Mercédès tenta aproximar-se do formato clássico do “álbum”, mais uma vez remetendo à tradição a que parece responder.

No entanto, em termos de figuração a autor trabalha num arco mais concentrado, em que todas as personagens, tenham ou não relações familiares entre si, parecem nascer de uma mesma modulação, o que é menos um defeito de estilo do que uma forma de traduzir uma espécie de imbecilidade associada à consanguinidade, que é patente enquanto tema em Les incrustacés.

Num episódio – na verdade, poderíamos dividir o texto em partes, apesar se ser uma “aventura corrida”, e poder-se-ia encontrar algum desequilíbrio nas relações entre essas partes, uma menor conquista de elegância em termos gerais - , o protagonista sonha ser prisioneiro da sua cama de rede, senão mesmo vítima dela, como se de uma criatura viva se tratasse e mergulha num sonho e no fundo do mar, encontrando-se com criaturas fantásticas. Estas cenas, mesmo que de forma breve, recordam o trabalho sistemático de Ernst Haeckel. Além disso, essas criaturas com que se encontram, sejam as “reais” sejam as “imaginadas” no sonho do protagonista, e depois até mesmo os vocábulos e nomes empregues, farão recordar os leitores de, novamente, toda uma bateria de referências, de A caça ao Snark às Viagens de Gulliver, mas acima de tudo às “viagens” de Henri Michaux (reunidas em Ailleurs). É possível que este exercício de associações pudesse continuar, até mesmo propondo-se As férias do Senhor Hulot como um possível enquadramento social do ponto de partida narrativo. Mas tentemos apenas mais uma.

Em 1979, David Macaulay, autor de toda uma série de livros ilustrados cujo objectivo é explicarem visualmente estruturas arquitectónicas, fez o seu livro mais mirabolante, Motel of the Mysteries, em um arqueólogo do ano 4000 descobre as ruínas de um pequeno motel estado-unidense do final do século XX e, através dos vários objectos, faz interpretações plausíveis, mas erradas e risíveis: o tampo de retrete seria um colar, a televisão uma forma de comunicação com os deuses, etc. As imagens deste livro são suficientemente conhecidas ou têm uma circulação especial, mesmo que na ignorância da sua proveniência. São daquelas imagens que compõem um material “disponível”, mesmo que não se conheçam as suas circunstâncias específicas. Mas o tipo de mal-entendido que elas representam serve de modelo para algumas das escolhas de Mercédès. Pois quer as culturas “exóticas” com que M. e o amigo se cruzam – comentário, sem dúvida, de todas aquelas transformações operadas na banda desenhada clássica sobre culturas reais – quer a cultura a que eles pertencem parecem respigar de objectos comuns, para nós, para os transformar em algo maravilhoso (e, mais uma vez, isso remeteria aos usos surreais de Topor ou ao Avalanche de Masse). A um só tempo, porém, estes estranhos e desviantes usos parecem querer comentar sobre o nosso mundo mas também a imbecilidade geral das personagens.

Perguntamo-nos se, numa abordagem ainda mais profunda, analítica e filosófica, não seria possível estudar este livro à luz das teorias da “semelhança informe” de Georges Bataille, estudada por Georges Didi-Huberman, uma forma material de mesclar formas, com consequências estéticas mas igualmente antropológicas. Uma violência operada sobre as formas que confunde origens e proveniências e categorias, do baixo ao alto, do vivo ao inanimado, provocando um caos, uma “dialéctica sem síntese”. Repare-se que o próprio título é paradoxal, traduzível como os “incrustáceos” (e que tanto poderá ser aplicado somente aos protagonistas, como à tribo que vemos na capa e que corresponde à história falsa de M., como ainda a todas as personagens). A nomenclatura zoológica remete à ideia de “crosta”, a couraça que serve de exoesqueleto aos animais. O uso do prefixo “in”, por sua vez, implica a ideia de negação ou mesmo de inversão. Se for apenas a ideia de privação, significará que estas personagens não têm a protecção que lhes seria devida? Ou, no sentido da inversão, tratar-se-á de mais um disparate, à Bouvard e Pécuchet, de uma descoberta científica que não faz sentido, ou que é absolutamente supérflua face à forma como já descrevemos o mundo? Ou ainda, como já citámos tantas vezes neste espaço, podemos pensar em Luís Cília, e servirá isto para sublinhar as parecenças entre a lagosta e os homens, que estão “unidos para a eternidade, por terem ambos merda na cabeça”.

Agradecimentos a T.F. pelo empréstimo do livro. 

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