29 de julho de 2014

Arsène Schrauwen. Olivier Schrauwen (auto-edição)

Encerrar um artista na sua nacionalidade, para nela procurar as razões da sua abordagem, é algo redutor. Esse tipo de determinismo raramente nos ajuda a compreender as suas opções, para além daquelas circunstanciais que ditarão, por exemplo, a integração num modelo editorial. Como o comic book, o tankobon, o álbum franco-belga, o fanzine, ainda que mais recentemente, nos centros de maior produção ou informados pelas tendências internacionais, o advento do “livro”, ou “graphic novel” se preferirem, parecer um modelo mais divulgado, mesmo que seja um modelo precisamente marcado pela sua diversidade. Mas no caso deste título em particular, a nacionalidade tem um papel decisivo, ou pelo menos uma sua integração na história nacional, e a escolha da forma e modo de edição é determinante também em relação ao seu significado geral. (Mais) 
Olivier Schrauwen pertence a uma nova geração de autores belgas de expressão flamenga que procura seguir tendências internacionais de uma banda desenhada contemporânea, tanto atenta à sua própria história global e prismática como a novas formas, mais livres de géneros, de abordagens visuais convencionais, ou até mesmo de coerência de estilo. Não se pode falar de “escola” no seu sentido clássico. Se o “território” em si produziu nomes incontornáveis na história da banda desenhada infantil, como o de Willy Vandersteen, ou autores que na esteira das escolas de Bruxelas e de Marcinelle apagariam a sua “belgitude” em nome de uma maior integração em mercados internacionais – numa primeira fase, francês, depois, europeu – como Morris, Bob de Moor, e mais recentemente Kamagurka (de Cowboy Henk, divulgado em Portugal através da brasileira Animal), no tempo presente a saúde dessa produção muitas vezes fica-se pelo circuito Flandres-Holanda, através de editoras como a Bries, a Oogachtend, mas também a holandesa Oog & Blik, entre outras menores. Ainda assim, têm aparecido casos de sucesso internacional, graças a traduções e prémios, como os de Brecht Evans, Judith Vanistendael, e mesmo Pieter de Poortere.
Todavia, isso não significa que os autores não traduzidos não procurem também dialogar com um mundo mais alargado. Tão-somente não o conseguiram até agora. Mas basta olhar para a forma como compõem as páginas, o número de referências visuais que se convocam nelas, os temas abordados, para verificar que nada têm de provinciano nas suas tentativas de expressão. Schrauwen é um caso particular de sucesso, sobretudo com My Boy. O crítico belga Gert Meesters falou da obra de Schrauwen como que criando “uma rede de estilos” e, realmente, uma passagem de olhos mesmo que cursória pelo volume The man who grew his beard (Bries e Fantagraphics) mostrará como cada narrativa, pois trata-se de uma antologia de histórias curtas, senão mesmo no interior de cada uma delas, o autor revisita toda uma série de registos figurativos, estilísticos, composicionais, cromáticos e até no que diz respeito a outros aspectos da materialidade da imagem (brilho, nitidez, efeitos que imitam formas de fabrico e impressão das imagens), etc. que compõe a história da banda desenhada.
Já em My Boy, o livro que o lançara num certo estrelato, notava-se a forma como as pequenas histórias não podiam ser lidas de uma forma independente do conhecimento da história da banda desenhada. De certa forma, existem algumas afinidades com aquilo que verificáramos em relação ao trabalho de Closser, se bem que este autor norte-americano não apenas surgiu depois – pelo menos em termos de grande visibilidade – como não procura reinventar a tradição que mima, como víramos. Se Closser cria um “faz de conta” em que a sua obra teria um lugar hipotético num passado reinventado, Schrauwen deseja que olhemos para o passado de uma forma mais crítica. Isto é, ele quer assegurar, como queria Walter Benjamin, que olhamos sempre para o passado através dos olhos do presente. Na verdade, Benjamin utiliza uma expressão que transforma o telescópio numa forma verbal, e esse aparelho óptico, criando uma proximidade sem destruir a distância, é perfeito para dar conta do mecanismo criado por Schrauwen.
Benoît Crucifix, num ensaio inédito, fala ainda de um “estilo citacional” deste autor, o que é muito apropriado, mas em vez de uma aproximação somente a um ou outro autor em particular – como nos casos mais óbvios de McCay (não apenas o do Little Nemo mas também de Sammy Sneeze e Rarebit Fiend) ou Hergé, ou mais obscuros como Charles Forbell) – interessará mais a abordagem e apropriação materialista, da cor da impressão, que ganha neste caso um valor patente e gritante na superfície. E aqui há um elemento importante que nos liga à primeira parte da discussão, sobre a circulação social, editorial e material. É que, curiosamente, apesar da circulação dos seus livros “maiores” e de ter presença em títulos prestigiantes como a Strapazin, a Canicola, Kuti Kuti, Mome e a kus!, o autor parece ter-se virado para plataformas independentes e até mesmo de auto-edição, em baixas tiragens, primeiro com Le miroir de Mowgli, de 2011, e agora com esta trilogia (falta o terceiro número ainda) impressa em risografia.
De que se trata Arsène Schrauwen? É precisamente o tema que permite apresentar Schrauwen como um autor belga do seu tempo. Crucifix, no mesmo escrito, fala de uma “ideologia residual” do colonialismo presente neste título, mas que é já herança das explorações sobre o mesmo tema nos livros anteriores do autor. Podemos mesmo dizer que o colonialismo belga pode ser mais do que um tema, ou então entender “tema” de uma perspectiva musical, em torno do qual se vão explorando várias composições. Em Arsène essa obsessão torna-se instrumental e central pelo facto de se tratar igualmente de, pelo menos se crermos na afirmação textual do autor, uma biografia do avô.
Basicamente esta trilogia reconta as “aventuras” do avô Arsène na “colónia”: a sua partida de um cais belga, o isolamento a que se entregou durante a travessia no barco, que levou desde lá a pequenos episódios quase-psicóticos, a sua chegada ao destino onde se encontra com o seu primo empreendedor e que lhe promete um lugar de trabalho num projecto megalómano, que constrói com o apoio financeiro do pai da sua mulher, uma segunda fase de isolamento que o leva quase à loucura – ou pelo menos à travessia de uma fase louca, provocada por levar à letra um conselho de um companheiro de viagem, que lhe cria uma imagem de perigo biológico na densa e misteriosa África, etc. Mas rapidamente as dendrites do perigo se estendem à sexualidade (ele apaixona-se pela mulher do primo), à violência (cita-se uma intriga de um romance pulp que lê [ver prancha adiante], que promete ser um espelho do que se passará na intriga da sua própria vida), às distâncias raciais (o branco colonizador versus o selvagem local), e até mesmo alguns traços que parecem nascer da banda desenhada do tempo histórico correspondente – uma cidade futurista à la Saint-Ogan, o carro anfíbio digno de um Franquin, as alucinações tenebrosas típicas de um Haddock em delirium tremens, etc.
Se acreditarmos que este projecto é de facto “real”, isto é, que há mesmo aqui um pacto histórico de que o autor está a contar-nos eventos reais ocorridos na vida do seu avô, é por demais visível como todos os elementos diegéticos não deixam de espelhar as estruturas e ingredientes que fizeram toda a história de um número de géneros da banda desenhada de aventuras da primeira metade do século XX, e até para além disso. Mas tal como nos casos anteriores, em que a citação não deixa de criar uma certa distância que nos exige a reler essas mesmas aventuras, “sombras” ou “fantasmas” sempre presentes – enquanto “traços” - nesta obra presente – em termos cronológicos – Arsène quer ser lido enquanto também comentário dessa outra tradição criativa.
A colónia, por exemplo, não é chamada pelo nome (Congo, quase certamente), mas simplesmente como “colónia”. Há uma recorrente repetição dessa ausência noutra escala na forma do “rapaz” que vive numa barraquita perto da casa de Arsène, que lhe traz cerveja e ovos, lhe limpa a casa e faz outros serviços, mas nunca aparecendo fisicamente – nem sequer a partir de uma perspectiva externa e universal. Há portanto um apagamento dos traços locais da colónia e os seus habitantes – quando surgem, é apenas em cenas que representam descrições de outras personagens que não Arsène, logo imaginamos serem imagens mentais do protagonista, e os corpos dos “nativos” não diferem na roupa e aspecto dos cabelos, por exemplo, do que outros belgas, ainda que não tenham rostos – um apagamento que não deixa de ecoar com a “des-belgização” típica que ocorreu na banda desenhada belga entre as décadas de 1920 e 1930 (em Tintin, em Spirou, etc.), para que essas personagens fossem mais “acessíveis” a um público mais vasto, como já citámos.
Na Bélgica fala-se mesmo de um “Congo à papa” e de uma “Belgique à papa”, imagens que nutrem a ideia de uma narrativa fechada, suave, sem grandes problemas de herança multicultural, de violência, de atropelos éticos, religiosos e de um grande custo humano, e onde a perspectiva congolesa é simplesmente apagada. Nesse sentido, não é muito diferente do fenómeno de “silenciamento” ou “indiferença” que pauta a atitude em Portugal para com o seu passado colonialista, se bem que existam diferenças quer de grau quer de natureza entre as relações das duas “metrópoles” com os respectivos territórios africanos.
O crítico de arte Hal Foster, num seu ensaio intitulado “The Funeral is for the Wrong Corpse” (em Design and Crime and Other Diatribes) fala dos modos como, no círculo das artes, existem várias categorias ou versões de uma “sobrevivência” (a expressão em inglês é “living on”) de processos, técnicas e posicionamentos críticos em relação às instituições que se perseguem em momentos mais tardios (no seu contexto particular, e simplificamos drasticamente, como o modernismo sobrevive no pós-modernismo). Estas categorias não são puras, antes surgindo como graus ou intensidades momentâneas e que se cruzam, sendo aquelas que ele chama de “espectral” e “não-síncrona” a que mais parecem adequadas para caracterizar este livro.
Em relação à primeira, estamos a falar da utilização de, por exemplo, formas ou estratégias de géneros anteriores, mas de uma forma diluída, espectral, ou como Freud diria, unheimliche: a acção no Congo traz de imediato à mente toda a banda desenhada que se relacionou com o projecto colonizador, quer se o queira unilateral e redutoramente entender como racista, paternalista, civilizador, obsceno, inevitável, histórico. O processo é bem mais complexo do que isso, e os instrumentos pós-coloniais que têm lido Tintin, Zig et Puce, Spirou, e outras séries menos conhecidas do público português, ou até mesmo trabalhos de outros países (como Portugal) em relação às suas ex-colónias (veja-se o trabalho de Mark McKinney), têm libertado muitos dos elementos a ler nesses textos originários. Mas Arsène Schrauwen faz parte desde logo, enquanto texto primário, desse discurso secundário também sobre esses outros passados. Há momentos mesmo em que a transformação física do avô Schrauwen num louco barbudo, isolado e alucinando nos faz pensar num capitão Haddock, como dissemos, mas abandonado no tecido histórico a que nunca, afinal de contas, pertenceu de pleno direito.
Quanto à categoria “não-síncrona” de Foster, refere-se ao uso de técnicas aparentemente obsoletas para as deslocar socialmente no presente. Associando-as ao “fora de moda” dos Surrealistas, estudado por Benjamin, Foster explica como esta estratégia “cria pressão sobre as ideias preconcebidas totalitárias da cultura capitalista, e questiona a noção de intemporal de que se reivindica.” Isso é visível também em Arsène, pensamos, por um lado por o autor estudar formas de produção, materialização e circulação que não estão no seguimento “natural”, ou pelo menos “expectável” do seu sucesso comercial e editorial anterior (ele deveria afinal “crescer”), e ainda mais por empregar risografia, uma técnica que recupera formas de trabalho de impressão mais artesanais (uma espécie de nostalgia por tecnologia recente parece ter tomado conta de todo um sector de banda desenhada independente), como também, por outro lado, trabalha sobre a intemporalidade suposta das séries de banda desenhada sobre as quais, mesmo que de modo oblíquo, trabalha.

Haveria ainda algo a dizer sobre o trabalho de cor, de composição de páginas e até mesmo de figuração e representação, que é paradoxalmente simples – em termos técnicos, se preferirem – e complexo – em termos das suas repercussões de significação. O uso de vinhetas de cantos arredondados para imitar formas cinemáticas, ou de romances visuais dos anos 1920 e 1930, o uso de um inglês pejado de erros e imprecisões, etc. seriam ainda outros elementos.  Todavia, talvez com o terceiro volume possamos regressar à discussão, pois seguramente que este será um título estimulante nos próximos anos.

Nota final: agradecimentos a Benoît Crucifix, pelo empréstimo dos livros. 

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