14 de maio de 2014

Comics and the Senses. A Multisensory Approach to Comics and Graphic Novels. Ian Hague (Routledge).

Uma vez que a entrevista com Ian Hague ficou muito longa e, esperamos nós, informativa, e termos de providenciar uma review em inglês deste mesmo livro noutro lugar, remetemos a essas extensões alguns dos outros aspectos em relação ao livro que as origina. Comics and the Senses é um livro, a um só tempo, empolgante, pertinente, corajoso mas também intrigante, e até, talvez, excessivo. Não significa que seja desnecessário, mas é um gesto que provocará algum estranhamento e até controvérsia. (mais) 

Se bem que a esmagadora maioria das descrições da banda desenhada se fique pela coordenação das imagens e dos textos (ou imagens enquanto texto, a textualidade da banda desenhada, etc., não se referindo somente à matéria verbal), enquanto arte material ela é, desde sempre, multimodal. Aliás, as questões da materialidade e da multimodalidade têm sido cada vez mais debatidas em toda uma série de formas artísticas (da literatura ao cinema), inclusive a banda desenhada. De uma forma sumária, podemos dizer que a multimodalidade da banda desenhada se apresenta de duas formas: a representacional e a material. Pela primeira referimos-nos a todas as formas como, através das suas especificidades formais, a banda desenhada consegue transmitir uma ideia de modos aos quais não tem acesso ou que não emprega ela mesma. Afinal, é através das imagens, icónicas e simbólicas, que se representam modos como o som, ou o movimento. Isso terá ainda associações a uma outra inflexão destas noções, que é o da multisensorialidade. Se nós nos apercebemos que um determinado objecto numa banda desenhada é pesado, perfumado, pungente, azedo, horrísono, etc., não é porque tenhamos acesso às (hipotéticas, ficcionais, imaginadas, representadas) sensações, mas porque as imagens, e por vezes alguns textos (o caso clássico das onomatopeias para os sons), representam essas sensações. Isto é aquela dimensão que o Ian Hague chama de “sinestesia, ou a estimulação de um sentido através de outro (o que pode ocorrer fisiológica, psicológica ou retoricamente)” (pg. 21).

Mas por outro lado, para além dessa questão da representação, podemos pensar nos vários modos como uma banda desenhada, enquanto existente e objectual, joga com os nossos sentidos reais. Pensem nesta situação: quantas vezes estamos a ler um livro, imaginemos com mais de 100 páginas, e à medida que lemos e sentimos (usualmente) no lado direito o número de páginas a diminuir, essa sensação exacerba a excitação de chegarmos ao fim? Ou, para quem segue edições que utilizam serigrafia, sente aumentado o prazer da leitura por sentir os cheiros particulares dessa técnica numa nova publicação? Ou gosta de ouvir o som grave de uma página que vira pela primeiríssima vez num álbum recente, ou a espinha a espreguiçar-se pela primeira vez? Ou, mais recentemente, sente a importância histórica e a sua redenção ao ler alguns dos clássicos da banda desenhada de imprensa norte-americana nas edições desmesuradas da Sunday Press? Ou pelo contrário, sente alguma segurança e descontração no manuseamento despreocupado de uma revistinha barata? “A banda desenhada é polissémica não apenas nos seus conteúdos visuais, mas em toda a sua fisicalidade”, escreve Hague (22).

Um outro aspecto importante, fulcral mesmo, é que este aspecto está sempre presente. “A materialidade não se encontra numa posição de 'ligada/desligada' na sua importância. Está sempre 'ligada', apesar de alguns elementos puderem ser mais ou menos proeminentes conforme a situação, tanto espacial como temporal”, afirma o autor. Esses elementos a que se refere haviam sido discutidos por Ernesto Priego: texto, espaço, habitat e interface físico (isto é, o corpo humano), e são codeterminativos entre si (23). Nunca existe um acto de leitura sem um desses elementos. Isto tem uma importância em relação à discussão da “digitalização” da banda desenhada – dos processos de criação, fabrico, transporte, divulgação, e, claro está, o próprio acto de leitura. Em vez de entendermos a leitura digital como necessariamente mais “pobre”, temos é de analisar quais são as diferenças efectivas, antes de entrarmos em juízos de valor generalistas. E é simplesmente errado falar-se de “desmaterialização”. Nesse campo em particular, mas sempre abrindo-o a outras ligações possíveis, Hague discute vários títulos, como Robot 13 ou a versão digital de Scott Pilgrim, ou o livro sensível ao calor Keep Our Secrets, de Jordan Crane, e como eles abrem “um uso da tangibilidade que vai além do visual. Por isso, ao passo que a tactilidade é um elemento fundamental da leitura da banda desenhada, esta não é uma razão para a tomarmos como um dado adquirido” (117).

Ora, se a “leitura não é apenas um simples acto de recepção, [mas] uma extensão do leitor num espaço metafísico; um processo cognitivo através do qual o sentido é impresso em informação sensória de acordo com os códigos através dos quais essa leitura tem lugar” (28), o que importa é estudar as próprias condições de possibilidade desse mesmo acto: metafísico, sim, mas físico apesar de tudo. Isto vai permitir duas coisas a Hague e a quem aprender algo com esta lição: em primeiro lugar, vai permitir “negarmos a neutralidade da perspectiva ideal da relação leitor-texto” (38), isto é, irmos além de uma ideia, algo ingénua se fora de uma consciência crítica, de que todo e qualquer acto de leitura de um determinado “mesmo” texto será idêntico de leitor para leitor; em segundo lugar, traz de novo os “papéis epistemológicos e afectivos na nossa compreensão do meio” (58), complexificando o acto de leitura.

Este mundo da relação entre a banda desenhada e as sensações reais vai muito mais longe, e é precisamente isso o que Ian Hague investiga. Desde experiências de banda desenhada comestível às várias interacções entre esta arte e som real (dos audio cartoons às versões “expandidas” permitidas por plataformas digitais aos discos ou pautas integradas nas histórias), passando pelas tarefas envolvidas na factura de um livro que contribuem para os vários prazeres que a sua leitura implica, são várias as dimensões que o investigador explora. Abordando alguns elementos bastante familiares e comuns e outros mais originais, o seu propósito central é colocar em crise – para levar a uma discussão mais consolidada e profunda – a ideia da banda desenhada ser “um meio puramente visual” e, consequentemente, “acentuar como os elementos não-visuais são tão fundamentais como activos na produção de sentido no seio deste meio” (145). Com esse fito em mente, Comics and the Senses é a um só tempo um livro que opta pela simplicidade e por uma variegada abertura.

Simples no sentido em que o autor estrutura o seu livro a partir dos cinco sentidos “clássicos” (visão, audição, tacto, gosto e olfacto), suspendendo outro tipo de abordagens mais sofisticadas e complexas, mas também menos familiares junto ao grande público (talvez a propriocepção, a perceção de temperatura, o equilíbrio, a “certeza que vamos vomitar” ou a “vontade de fazer xixi” possam, de uma forma ou outra, serem exemplos fáceis de entender que possam levar a outras descrições). São esses sentidos que são estudados, ainda que ele mencione outros (temperatura, por exemplo). Mas abertura no sentido em que ele escava cada um deles com pormenor, atenção para exemplos variados, e uma argumentação sólida sobre cada passo.

O estudo ou emprego da noção de “sensualidade” - num estrito sentido de associação aos sentidos – em relação ao acto da leitura não é de forma alguma novo, e já foi estudado, sobretudo no que diz respeito à literatura, de formas bem diversas. Pense-se, ainda que não se trate de um estudo, na maravilhosa abertura de Se numa noite de Inverno um viajante de Calvino, em que todo o corpo e disposição física, emocional e mental do leitor é abordada “antes” da narrativa começar (escrevemo-lo entre aspas pois é uma ilusão). No que diz respeito à banda desenhada, entre vários nomes percursores desse tema (mas que jamais estudaram a fundo), um passo decisivo neste campo é o artigo de Pascal Lefèvre, “Como recuperar a sensualidade na análise teórica da banda desenhada”, cuja versão original data de 1994, e seria publicado em português em 2000, na Quadrado (vol. 3, no. 2). E a especificidade dos sentidos foi também alvo de um longo estudo, em italiano, por Marco Pellitteri, com Sense of Comics. La grafica dei cinque sensi nel fumetto (Castelvecchi: 1998), que depois daria origem a uma série de artigos e desenvolvimentos em várias línguas. Curiosamente, e apesar de podermos dizer que o livro de Pellitteri se confina sobretudo à discussão dos sentidos enquanto representados, e não lida com a corporalidade, a materialidade dos sentidos directamente, como Ian Hague, este último não cita este estudo. Veja-se a entrevista para um aspecto importante da necessidade de abordar este assunto, sobretudo no que diz respeito a uma (ainda) falta de diálogo internacional entre as teorias da banda desenhada que vão sendo desenvolvidas.

Se há alguns mais aspectos que se poderiam discutir mais criticamente tem a ver com, por um lado, a por vezes falta de entendimento em que medida é que estes aspectos estudados por Hague são diferentes daqueles verificados noutros meios (por exemplo, questões de design de livros em termos gerais), e a dificuldade que será criar instrumentos críticos que sejam sempre empregues para tomar em conta a experiência sensorial da banda desenhada. Isto é, duvidamos (nós não o procuraremos integrar sistematicamente, a menos que seja significativo de um modo especial) que a crítica da banda desenhada passe a debater a temperatura, o som ou o cheiro dos livros, por exemplo (mas esta forma de discutir é demasiado anedótica para ser tomada a sério, no fundo). Por outro lado, existem dimensões que talvez pudessem ir mais longe, como a questão da performatividade dos mundos ficcionais da banda desenhada (que poderiam debater desde as adaptações às brincadeiras de crianças com bonecos até mesmo ao cosplay, desde o mais inócuo – nas “convenções” - ao mais politizado – as máscaras de V nas demonstrações), ou a “localização” das sensações. Existirão seguramente diferenças fundamentais, sensórias, com um “mesmo livro”, entre um leitor britânico, alto e espadaúdo, jovem e atraente, fleumático, inteligente, no clima cinzento, e um outro português, baixinho e peludo, com problemas de costas e de visão, e abafado pelo calor? Isso alterará a leitura de seja que livro for, mas em que medida é que 1. aproxima ou afasta do texto em si, 2. poderá ajudar à inflexão da consideração crítica sobre esse mesmo texto? Na entrevista, abordam-se todas estas perguntas, que se abrem a infinitas desdobragens de sexo e sexualidade, idade e classe social, etnia e nível cultural, etc.

Seja como for, Hague não está argumentar que todos os sentidos estejam a ser estimulados em toda a sua potencialidade em todos os exemplos. Nem todas as bandas desenhadas se podem comer! O autor não procura qualquer tipo de generalização aplicada universalmente, nem procura criar noções aplicáveis de uma forma essencial. Há uma selecção de instrumentos, exemplos e facetas muito judiciosa, que não procura qualquer tipo de exaustão (na entrevista, falamos de mais exemplos estudados por Hague assim como das inevitáveis “ausências” que não são críticas, mas podem servir para entabular um diálogo). O objectivo principal do autor é por demais atingido, e é claro: “Ao passo que o modo ocular-cêntrico dos estudos de banda desenhada implicam uma interacção sem corpo [disembodied] entre ideias, ideias transmitidas da banda desenhada para o leitor, os vários aspectos das bandas desenhadas que aqui estudámos frisam o facto de que a leitura da banda desenhada é na verdade uma experiência obviamente física que tem lugar em múltiplas modalidades sensórias simultaneamente” (144).

Poderão então encontrar a nossa conversa com Ian Hague aqui.

Nota final: os nossos agradecimentos a Jan Baetens pela intermediação da obtenção deste livro, à editora, pela oferta do mesmo, a Marco Pellitteri e Pascal Lefèvre, por alguma troca de impressões, e a Ian Hague, pela disponibilidade e simpatia de sempre. 

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