26 de abril de 2014

Exposição "Succedâneo" na Moagem (Fundão).

Serve o presente post para divulgar mais alargadamente um texto que escrevemos para a folha de sala referente à exposição "Succedâneo", n'A Moagem - Cidade do Engenho e das Artes. Trata-se de uma mostra das produções fanzinísticas de João Bragança, do famoso Succedâneo e outros fanzines-objecto. Esta exposição estará patente entre 12 de Abril e 18 de Maio, e é merecedora de uma visita, uma vez que estes objectos, apesar de terem já estado expostos noutras ocasiões, como por exemplo no Tinta nos Nervos, encontra-se aqui apresentada não apenas de forma exclusiva, o que permite sublinhar a sua importância, o seu lugar único na produção nacional, mas também internacional, mas além disso abrindo um caminho para, de uma forma especial e exclusiva, pensar estes objectos e território sem pedir favores a outras áreas artísticas de maior consolidação social. O texto procurou responder às várias solicitações necessárias a uma folha de sala para uma exposição desta natureza, de uma forma o mais sucinta possível (o que é uma qualidade, como sabem, desconhecida para este escrevinhador). Ficam aqui os agradecimentos a João Bragança e a Pedro Novo pelo convite, e os parabéns pelos 10 anos de estranhezas.(mais)



Armazéns e arquivos, fetiches e fósseis, Ou, os fanzines em ruínas de João Bragança.  A história do desenvolvimento etimológico da palavra “fanzine” não é particularmente complicada, nem tampouco se estende demasiado no tempo. Porém, na sua curta vida, atravessou um bom número de áreas distintas, agregando significados por vezes distantes, talvez mesmo incompatíveis, mas que ainda assim vão sobrevivendo nos seu usos. Os projectos editoriais de João Bragança arrastam consigo, como um fóssil, alguns dos sentidos mais recuados da palavra, mesmo que a publicação Succedâneo tenha sido, como dissemos noutra ocasião, o fanzine menos e menos zine que conhecemos.

Fanzine”, significando estritamente uma publicação dedicada a um qualquer tema “amado” por um grupo de interessados, os “fãs” (em si mesma uma palavra que abrevia os “fanáticos” de uma área de interesse, seja ele o desporto ou uma linguagem cultural), remete à passagem das décadas dos anos 1930 e 1940 nos Estados Unidos (se bem que se possa ainda criar uma história mais alargada da “underground press”, de que o escritor Alan Moore fez um esboço, “Going Underground”, na sua revista Dodgem Logic no.1). Tratavam-se de publicações produzidas por não-profissionais e através de tecnologias de reprodução mecânica acessíveis e baratas (mas também de uma qualidade gráfica, em termos técnicos, limitada), sendo a fotocópia tão-somente aquela que pautou as experiências de quem os cultivou no final dos anos 1980 e início dos 1990, em cujo intervalo Bragança se inscreve (a Succedâneo existiu entre 1996 e 2006, contando 32 números, aos quais se acrescentam outras experiências editoriais). Tendo-se iniciado com amadores da ficção científica, rapidamente se estenderia a outros géneros fílmicos ou literários, como o horror, ou à música, como o rock'n'roll e mais tarde o punk, e a banda desenhada, um modo expressivo particular, com a sua própria história e espaço social. Mas a palavra nasce da junção das palavras inglesas “fã” e “magazine”, que em si mesma vem de um sucessivo empréstimo: do francês (magasin), deste ao italiano (magazzino), e deste ao árabe (makhzan), que também daria origem ao vocábulo português que cobre o seu sentido original: “armazém”. A palavra em inglês perderia esse significado pelo século XVIII, que a empregaria a vários tipos de publicação, sempre na ideia de ser um ajuntamento, mais ou menos organizado, de objectos heteróclitos ou partilhando algo em comum.

O fanzine pós-punk, que agregaria a sua específica cultura e ética do do-it-yourself (faça-você-mesmo) viria a contribuir com duas faces decisivas. Por um lado, aquela formal, que permitiria a abordagem do bricolage, da assemblage, a total displicência para com regras de etiqueta, de design, da gramática, da correcção burguesa, etc., sublinhando assim uma atitude de conflito. Por outro lado, a face da emergência de uma politização do indivíduo, bebendo quer do feminismo quer das conquistas sociais de várias minorias societais (em termos de representação cultural). De facto, um dos teorizadores do fanzine, Stephen Duncombe, no seu artigo “'I‘m a Loser Baby': Zines and the Creation of Underground Identity” (in Hop on Pop: The Politics and Pleasures of Popular Culture), escreve o seguinte: “O que [a cultura underground] faz, porém, é criar um espaço no qual os indivíduos podem experimentar alternativas ao status quo: novas formas de configurar a noção de comunidade e solidariedade, contra-definições de trabalho e consumo, e... reimaginar o mais basilar dos blocos de construção política: a identidade” (sublinhado no original, p. 228).

Duncombe procura uma análise muito próxima de uma subjectivação que é extremamente politizada, e que se corrobora por uma grande parte dos fanzines que analisa – assim como pela cultura da banda desenhada underground dos anos 1970 e, mais tarde, a alternativa dos anos 1990, que lhe está associada, pautada sobretudo pelo género narrativo da autobiografia. No entanto, o caminho procurado por João Bragança é outro, bem diferente, mas que não explora menos “novas formas de configurar a noção de comunidade e solidariedade”, até precisamente pela construção absolutamente circunstancial e colectiva dos seus objectos e, se quisermos estender o seu título - sucedâneo, algo perfeitamente substituível, diminuído na sua individualidade pela função - numa metáfora que enquadre esse processo, pela deslocação que procura fazer do seu sentido último. Se o pessoal é político, o Succedâneo não procura remeter a um cerne pessoalizado, de um indivíduo, empírico ou simbólico, mas a uma atomização que ainda assim permitirá a emergência de “novas personalidades, ideias e políticas” (Duncombe: 247).

Se os primeiros números do seu fanzine principal começam em passos mais ou menos tradicionais, mas desde logo integrando muito a ética dos objectos encontrados, da apropriação, do apagamento das marcas autorais - práticas que no mundo da arte são desde logo etiqueta de confirmação da autoria, mas que na esfera social da banda desenhada/fanzines apenas aumentava o peso do ruído que as apaga da centralidade dos palcos que mereceriam -, aos poucos começam a integrar plataformas formais, de suporte, de materialidade, que remetem a esferas que lhe são exteriores: postais, cromos, fotografias de objectos, papel de parede, cadernos pautados ou quadriculados, cadernos de escola do velho regime, naperons” de plástico prateado e/ou dourado, flyers (por vezes das performances do próprio Bragança), publicações de vários tamanhos, com vários tipos - gramagem, cor, textura - de papel num só número, etc. Isto é, aos poucos, o arquivo vai aumentando, o armazém vai abrindo mais espaços.

O uso da palavra arquivo não é, de forma alguma, inocente. Usamos este conceito de um modo bem específico, e associado àquele que está previsto num texto de Jacques Derrida, “Archive Fever: A Freudian Impression” (in Diacritics. Vol. 25, no. 2). A criação de um arquivo não é apenas um processo de selecção e integração, mas igualmente de exclusão, e uma exclusão particularmente poderosa, uma vez que o que é excluído é excluído da própria possibilidade de arquivamento, isto é, da memória. A “tecnologia arquivística... determina... a própria instituição do evento arquivável” (Derrida: 18). Os arquivos de João Bragança, porém, como é constatável de imediato, são construídos à margem das mais habituais considerações políticas e sociais do que é merecedor de salvamento oficial. Podemos encontrar no Succedâneo não apenas um arquivo do imediata e quase-espontaneamente efémero como um arquivo de ruínas instantâneas, os sinais da fragilidade intrínseca de uma cultura, industrial, tardo-capitalista, que se apresenta como uma sempiterna e prístina juventude capaz de uma produção continuamente perfeita e sustentável. Bragança, actuando como uma espécie de recolector, ou melhor, de respigador, aponta de imediato para as quebras do vaso, para a o bicho na maçã da árvore do Bem e do Mal, serve-nos uma sandes de restos de ontem. Derrida explica como, no acto de arquivar, “esta passagem institucional do privado para o público nem sempre significa uma passagem do secreto para o não-secreto” (10). Como no caso do Anjo da História de Benjamin, o acto de respigagem de Bragança permite-lhe ter os olhos bem abertos na direcção das ruínas e até mesmo assinalá-las, mas está fora do seu alcance a sua recuperação.

A dimensão material desse trabalho é por demais visível. Depois daqueles primeiros passos que fariam escapar a Succedâneo ao formato clássico da “revista fotocopiada e agrafada”, viria a incluir saquinhos de plástico, mangas de plástico de embrulho enroladas que serviriam de capas, até encontrar outros suportes-capa, como caixas de plástico, luvas de trabalho industrial, sacos de dejectos de cão. A inclusão de objectos tridimensionais também não se faria esperar. Sementes, pensos higiénicos, solas de borracha com pitões, CD-Roms, revistas antigas (isto é, revistas que não a própria Succ, como também era conhecida, mas títulos-parasita, ou pelo contrário, hóspedes dos quais a Succedâneo se tornava o parasita - eis outra metáfora possível de explorar), pão, etc. Até encontrar dois excessos, digamos assim, nos dois últimos números, ambos de 2006: o carrinho de madeira (dois exemplares) e o saquinho de pó branco suspeito (sendo uma obra “pós-11 de Setembro”, ela pode ganhar leituras de uma provocação), ou por outras palavras, o fetiche máximo do objecto raro e o mínimo no objecto atomizado (mas como todos os fetiches, insistindo na sua materialidade e traduzindo um qualquer afecto, de acordo com Laura U. Marks em The Skin of the Film. Intercultural Cinema, Embodiment, and the Senses, e que voltaremos a citar; pg. 80). Esses objectos, extensivos ou redutores, lançam dessa forma pistas, mesmp que contraditórias, não apenas materiais para o mundo, pois já não se trata de representação, mas de inclusão e participação. São mapas para uma performance sobre o mundo, uma vez que seria possível plantar as sementes, usar a luva e as carteiras, comer o pão (possível, mesmo que não aconselhável), conduzir o carro. Estas questões de forma, multisensoriais e multimodais, vêm exacerbar o papel de actividade política desde logo prometidas na ética primeira do fanzine. Voltando a Marks, “as questões da forma não podem ser separadas das condições políticas em que estas obras são produzidas” (10).

Não há aqui espaço para discorrer sobre o estado da arte da publicação em que Bragança trabalhou, mas compreender-se-á facilmente que o caminho por ele trilhado, e os seus colaboradores (entre os quais, alguns celebrados da banda desenhada, como Janus e Isabel Carvalho, mas não só), era quase perpendicular às expectativas comerciais criadas pelo mundo mais visível das artes, da performance, da banda desenhada.

Essa materialidade parece não só cumprir como estender uma das potencialidades do conceito da “imagemtexto”, de W.T.J. Mitchell, que é o de providenciar “locais epistemológicos múltiplos”, de acordo com Tanya K. Rodrigue (“Postsecret as Imagetext: The Reclamation of Traumatic Experiences and Identity”, in The Future of Text and Image: Collected Essays on Literary and Visual Conjunctures; pg. 47). Pois ao mesmo tempo João Bragança numerava e assinava cada um dos exemplares da publicação. Qual a razão desse acto adicional? Sublinhar precisamente o método do arquivo? Ou enquanto imitação do mundo da banda desenhada, obcecada com a ideia da dedicatória, que é uma espécie de transubstanciação do objecto mecanicamente reprodutível em objecto-único? Ou mesmo do mundo da arte (livros de artista inclusive), também obcecado com o conceito (a um só tempo estético e económico) da “assinatura”? Bragança agrega assim experiências advindas de áreas tão distintas (ou próximas, conforme o enquadramento disciplinar) como os postzines de banda desenhada, os livros de artista, os objects trouvés, etc. São práticas que tanto partilham alguns gestos como ocupam espaços distintos, e que encontram no Succedâneo, mas igualmente nos dois números do Pecarritchitchi (sendo o primeiro um tubo de plástico com um livro feito de selos e uma moeda e o segundo um livrinho cuja capa é uma minúscula amêijoa), catalisadores.

Cada número surge assim como um sinal de actuação no seu determinado momento histórico. Tratou-se de uma performance de arquivamento desse bloco de sensações determinado espácio-temporalmente, mas ao mesmo tempo era um acto falhado, se entendermos o arquivo como algo capaz de nos devolver esse mesmo momento “tal como era”, númeno, impossível. Se entendermos como forma de fotografar a ruína, de nos confirmar a falha e a necessidade de repetir o acto de subjectificação, o acto político, porém, então é um gesto feliz, é um perfeito gesto de deslocação - temporal, espacial, conceptual - do fóssil. De novo, Laura U. Marks: “Eis então a diferença entre fetiches e fósseis. Os fósseis retêm a forma do levantamento cultural, convidando perpetuamente à descodificação de conflitos passados. A sua qualidade 'radioactiva' pode diminuir à medida que são feitas ligações ao estrato histórico em que foram criados, mas eles não desaparecem. Os fetiches, apesar de serem tão densos em termos de significado quanto os fósseis, tendem a dissolver-se depois da sua necessidade se ter dissipado” (124).

Recuperar o Succedâneo, portanto, num meta-exercício de arquivamento (ou museificação), tem de servir o propósito de não deixar dissipar a necessidade da função.
Nota final: todas as fotografias são de João Bragança.

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