27 de abril de 2014

Dans ma maison de papier. Pierre Duba e Philippe Dorin (Six pieds sous terre).

Este livro é uma cadeia de diálogos entre linguagens artísticas, de forma a fazer emergir um objecto tão heterogéneo nos elementos que o compõem como na coesão que os unem. O ponto de partida é uma peça teatral para três personagens escrita por Dorin, cujo título completo é Dans ma maison de papier, j'ai de poèmes sur le feu. E de facto, há um incêndio no seu interior. (mais)
Uma mulher idosa, repousando na sua casa, aguarda a morte. Na verdade, não a aguarda, mas é como se a pressentisse, e fala com uma menina pequena, que brinca com uma boneca e vai explorando o interior da casa, não apenas espacialmente, mas também no que diz respeito ao seu tempo, e memória. É possível que sejam avó e neta, ou mesmo mãe e filha, mas é também possível que sejam apenas a mesma pessoa, ou outra configuração. Quando a morte chega, entabula-se um longo diálogo, à la Bergman, Kafka, ou Ligeti, em que o inevitável é adiado apenas um instante (“de um pensamento”, diz a velha), mas um instante que se abre metafisicamente ao infinito ou a toda uma vida, uma experiência longa e sofrida que se revisita e apenas permite um fôlego mais. O cerne da narrativa é ocupada pelo diálogo entre a velha e a menina, que vão construindo um diálogo feito de trocadilhos, jogos de palavras e de acções simétricas e opostas, apagando e acendendo uma luz, e que reflecte os seus nomes: Aimée e Emma. Mas o intervalo de tempo entre as conjugações desse verbo não é suficiente para nos apercebemos jamais qual o objecto concreto desse amor projectado, e ele não servirá de refúgio absoluto da morte que tem de ocorrer.

As escolhas visuais de Pierre Duba, porém, colocam estas hipotéticas personagens em outros corpos, também ele resgatados de uma histórica cultural cheia de referências ricas. A mais óbvia, e poética e intertextual, é “dar o papel” de Morte a uma silhueta reconhecível, a do “Caçador” do famoso filme de Charles Laughton, interpretado por Robert Mitchum. O perfil de pregador-lobo, o assobio assustador, a inerente paciência que esconde uma violência profundíssima e bíblica mantém-se nesta sombra de linhas (numa nota final, o autor revela os nomes dos “actores”, confirmando esta informação, e indicando os nomes das pessoas que terão dado imagem e corpo à menina e à velha).

Este é, portanto, um caso em que o “corpo” que o artista de banda desenhada dá ao texto original vai bem mais além do que uma compreensão básica da adaptação, e que num desvio ou contributo alargado da visualidade acaba por desviar o texto de início para um território bem mais alargado, fantasmático, paradoxal, até mesmo perigoso. Sem necessidade de investir a atenção na biografia do(s) autor(es), é quase seguro que estes usos imagéticos se relacionem com uma memória de Duba, na qual ele encontrou um veículo apropriado para a transmissão da intriga e palavras de Dorin. Duba integra essas memórias pessoais, estéticas, naquelas da velha personagem, que investiga as suas próprias memórias na história, no diálogo entabulado com a menina e com a morte. Não apenas por estarem em dois níveis diferentes – diegese e superfície textual – essas memórias são irreconciliáveis, mas não deixam de estarem integradas uma na outra, numa co-existência que é precisamente o texto total que lemos. Isto é, não estamos a ler “as palavras de Dorin” com ou através “das imagens de Duba”, mas antes a atravessar a “casa de papel”, seus intervenientes e acções, de Dorin e Duba, uma casa com a sua própria dimensionalidade, a sua própria materialidade, a sua própria textura, o seu próprio relevo.

E não é por acaso que agregamos estas palavras, já que Duba é um cultor de uma superfície não-lisa, texturada, acidentada, táctil. Nesse sentido, há grandes afinidades com um autor como Diniz Conefrey, por exemplo, que vive no mesmo tipo de relação em que se periga o texto através de imagens incomuns e pessoalizadas em extremo. Não há qualquer busca por uma “poética lírica”, de lugares-comuns, imagens naturalizadas e domadas, mas antes por relações de grande ambiguidade, ou de fracturas e fugas de sentido. Duba já havia operado a mesma abordagem em torno de poemas de Vesaas no seu Racines.

Noutro aspecto, parece que a relação imediata, física, quase biológica, entre os corpos das mulheres e a casa – o ritual iniciático da menina a apontar à boneca as partes da casa, a nova construção que a morte conduz no final – recorda aquelas construções-desenhos de Louise Bourgeois que também auscultavam todos esses temas embrulhados em torno do corpo feminino, a maternidade, a interioridade de uma casa: as “Femme Maisons”. Aliás, a atenção de Duba para com tecidos, texturas, materialidades do desenho, contrastes cromáticos e de composição, flutuação de estilos figurativos, alterações de escalas e travessia de locais imaginados, etc., levam-nos a pensar na possibilidade de, se não um diálogo, pelo menos um conjunto de afinidades inter-visuais entre as obras daquela artista plástica e desde autor particularmente visual, pictórico (em contraste com “gráfico”, “de legibilidade simples”) na banda desenhada. Claro está que haverá outras referências (a Alice de Carroll será sempre uma espécie de núcleo nestas ocasiões, e contos tradicionais), mas ocorre-se-nos a ideia de que aquela obra em particular, matrilineal, e aberta às questões de uma certa violência sempre presente nas relações familiares, sexuais e da cultura, encontra aqui, neste livro, um eco considerável.

A flutuação de figuração expressa-se através de várias frentes. Não é apenas na alteração de imagens a preto-e-branco, carregadas de sombras de grafite, e aquelas delineadas a suaves cores pintadas. É também visível na alteração e permutabilidade de escalas entre as personagens femininas, ora uma ora a outra assumindo uma escala gigantesca, ora diminuindo para ser acalentada ao colo, ora tendo uma cabeça desmesurada para recordar certos tipos de caricatura e ciclos narrativos de imagem antigos, ora ainda nas várias “substituições” dos rostos: por uma raposa, uma porta e um limão, um desenho sobreposto, um trecho rasgado, um jogo de sombras chinesas... Nessas escolhas, Duba quer provocar uma fractura dos sentidos – que jamais são simples e lineares mesmo no texto, mas que ganham nas imagens uma dimensão exacerbada. Como escreve Mieke Bal em “Figuration”, estes – mas são tantos! - são aqueles elementos que “iludem a coerência destes artefactos. A minha atenção concentra-se sistematicamente naqueles pormenores que parecem estar fora do sítio certo, as contradições que rasgam a obra, os elementos monstruosos que revelam as falhas e as disparidades, as quais, por provocarem admiração, oferecem possibilidades infindas para a compreensão destas obras”.

A verdade é que prestar atenção para com cada elemento individual – o cão amarelo ao colo da criança, o ritmo da luz que acende a apaga, as sombras projectadas nos fundos, que ora ganham contornos figurativos ora abstractos, a importância do posicionamento das personagens num “dentro” ou num “fora”, o seu enquadramento ou não por molduras, janelas e portas, a forma como a luz irrompe pelo quarto escuro nas cenas onde a Morte-Caçador está presente, ou o branco da página irrompe luminoso nas cenas a que poderíamos, mas erradamente, chamar de “oníricas” -, para tudo isso, não faz surgir uma cartografia organizada de “simbolismos”, supostamente interpretáveis através de uma qualquer chave, mas um espaço contínuo e carregado de forças que nos obrigam a leituras múltiplas, simultâneas e todas consequentes.

Voltando a Bal, as “narrativas pictóricas, então, tornam-se um código secreto, uma linguagem subcultural que facilita a produção de narrativas subversivas”. Com a excepção da ideia de existir um “código secreto”, que implicaria existência de um significado último e unívoco, que seria preciso derrubar (e não é, decerto, a ideia central de Bal), há aqui uma concatenação de subversões em relação às expectativas face à morte à vida vivida transformadas em matéria legível. É nesse sentido que a obra de Duba pode ser chamada “poética”, no que “poético” pode ser a banda desenhada – e não somente uma sua associação a ideias superficiais do que a poesia constitui.

O ritmo dessa subversão é pautado por fugas e retornos. Uma visão de conjunto revela desde logo um balanço entre páginas em grelhas regulares e outras composições mais livres, algumas destas ocupadas por uma imagem imensa que ocupa toda a área visual, outras atravessadas por um percurso das personagens, ou pelo menos uma distribuição espacial que pode não corresponder totalmente a um dinamismo físico, mas interno, “onírico”, uma fuga. Também a permutabilidade entre as personagens não quer dar conta de uma confusão entre elas, nem uma identificação mútua (entre a velha e a criança, sobretudo), mas antes uma outra forma de entender o diálogo, como encontro num ponto longínquo, no infinito, uma promessa de osmose. Tal como as linhas paralelas parecem tocar-se no ponto de fuga, mesmo jamais se alcançando esse ponto, ele serve de modelo à potencial união e compreensão mútua entre as dialogantes.

A chegada da Morte-Caçador abre um processo de recuperação da vida. É como se a ameaça provocada pelo Caçador fosse a única forma da mulher se poder reinscrever na sua própria existência vivida, na infância, no regresso a esse estado, aceitando portanto na sua destruição, no seu consumo pelo Caçador, uma possibilidade também de recuperação e reinstauração.

Não sendo “nossa”, não sendo de cada um dos seus leitores, a passagem por esta “casa de papel” seguramente que iluminará, senão mesmo inflamará, se não os olhos ou as mãos, uma qualquer parte dos nossos interiores.

Nota final: Agradecimentos a Anabelle Araújo e à editora, pela oferta do livro.

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