26 de novembro de 2013

Lerbd no SoBD.

Serve o presente post para anunciar que por ocasião do Salon de Bande Dessinée de Paris, a ter lugar durante este próximo fim-de-semana, teremos a grande honra de participar numa pequena mesa-redonda no ciclo de conferências (na 2ª "ronda", dedicada às "bandas desenhadas do sul"), no qual partilharemos e discutiremos algumas ideias sobre a banda desenhada portuguesa, sobretudo contemporânea. Em companhia do investigador de história da banda desenhada portuguesa (e não só) Leonardo De Sá, esperamos poder contribuir para uma discussão viva e pertinente.

Sendo o "cadinho" deste Salão um outro que agora é uma sua parcela, o Salon des Ouvrages sur la BD, isto é, Salão de Obras Sobre Banda Desenhada, as dimensões da história, investigação, crítica, abordagens disciplinares, são particularmente vincadas e estão asseguradas, o que nos parecer ser algo diferente de outros certames similares que conhecemos.

Convidamos aqueles que estejam nas redondezas do 3ème arrondissement que deem lá um pulinho...

Les gens normaux. AAVV (Casterman)

Este projecto antológico, que mistura géneros tais como os da reportagem, testemunho, autobiografia e ensaio, na banda desenhada, encontra-se numa linha que começou há décadas atrás com Paroles de taulards, em 1999. Projecto colectivo que conta com inúmeros agentes, editoriais, criativos, artísticos, e a nível mesmo de logística à sua produção, estes projectos podem-se englobar num sentido geral como a criação de condições para que pessoas possam contar as suas histórias, nos seus termos, pelo meio da banda desenhada. Isto é, através de várias estratégias de produção, procurar que cidadãos do mundo os quais rara ou parcamente têm acesso aos instrumentos que os tornarão agentes relatantes da própria história, possam encontrar um caminho a essa mesma expressão. O projecto começou com os “taulards”, isto é, os presos, e atravessaria “classes” tais como os surdos, os iletrados, os drogados, os imigrantes… e agora os homossexuais. Longe de querer tornar cada um desses grupos “comparáveis” entre si por uma qualquer perspectiva, ainda assim emerge a ideia, ancorada em factos e atitudes generalizadas, de que todos esses “grupos” são, de uma forma ou outra, marginalizados pelas estruturas normativas das nossas sociedades, as quais criam uma noção, ilusória, falsa, fantasmática, de “normalidade” - a infografia “sem marca” da casa de banho dos homens - a partir do qual todo e qualquer desvio será visto como “diferente”, “desvio”, “marginalizável” se não mesmo “marginalizado” de modo efectivo.

Les gens normaux nasce de um gesto entre as publicações bd Boum e Les rendez-vous de l’histoire, com a Casterman (esta última aceitando este projecto no quadro da sua colecção Écritures à medida de Japon e projectos similares), projecto que convidou Hubert (apenas Hubert) a recolher dez testemunhos de contactos da cidade de Touraine, entre lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais, os quais depois foram transformados em bandas desenhadas curtas. O fito é portanto criar uma massa crítica de experiências reais e ancoradas em casos singulares e individuais que poderão dar um “rosto humano” ou pelo menos uma “escala doméstica” a questões que muitas vezes são discutidas e esgrimidas em quadros absolutos, abstractos e muitas vezes na ignorância, e ainda as mais das vezes na ausência quase total de uma compreensão de como estabelecer diálogos entre as partes, mormente aquelas que se vêem a si mesmas como “opositoras”. Os artistas convidados a estas “traduções” são Cyril Pedrosa, Alexis Dormal, Virginie Augustin, Jeromeuh, Zanzim, Simon Hureau, Merwan, Freddy Nadolny Poustochkine, Freddy Martin, Natacha Sicaud e Audry Spiry. Com a excepção dos autores de Portugal, de En silence, de que faláramos, a maior parte destes autores não são de forma alguma nem de primeira linha na fama nem tampouco na conquista de linguagens particularmente singulares e diferenciadas. Ainda assim, já havíamos mencionado um projecto de Martin, também. A ideia de que este não seria o espaço ideal para pesquisas que levassem ao desenvolvimento de uma linguagem mais vincada e forte seria imediatamente desmontada pela participação de Baudoin em Paroles de taulards, cuja história é uma das mais concisas mas ainda assim visualmente, a um só tempo, estruturadas e livres dos seus trabalhos. Ainda assim, temos aqui autores cuja arte é digna de nota nos seus gestos mais contínuos, como Sicaud e Merwan.

Além do mais, para contextualizar as palavras dos testemunhos, apresentam-se ainda textos curtos dos mais variados autores (políticos, activistas, investigadores, historiadores) que não apenas constroem uma imagem do espaço da “homossexualidade” enquanto tema político recente em França (devido à lei dos PACS, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adopção homoparental, etc.), mas integram-na em discursos variados e alargados no tempo: da medicina à psicologia, passando mesma pela religião, a legislação e o papel “cultural”, revisitando a Antiguidade, a Revolução Francesa, os séculos XIX e XX… Estes textos são escritos por pessoas como Éric Fassin, Maxime Foerster, Florence Tamagne, Louis-George Tin e Michelle Perrot, a última das quais alguns leitores poderão reconhecer como uma das coordenadoras do imenso projecto História das Mulheres no Ocidente, cujos 5 tomos foram publicados em português pela Afrontamento.

A ordenação entre histórias dos testemunhos e estes textos complementares estão organizadas de maneira a que a leitura linear se possa informar mútua e/ou consecutivamente. E as histórias, como não podem deixar de ser, são tão diferentes como os caracteres humanos dos intervenientes: temos mulheres e homens que saíram de relações anteriores heterossexuais, temos pessoas que se identificam enquanto homossexuais desde tenra idade, temos pessoas cujos confrontos com as respectivas famílias foram de extrema violência e incompreensão e outros em que esse factor em nada alterou as redes de ternura e relacionamento. Há histórias que se centram na desaparição mortal de um companheiro, outros que se enleiam nos problemas jurídicos e económicos das relações entre dois homens ou duas mulheres à face da sociedade, histórias tristes e histórias felizes, histórias trágicas e histórias banais. Mas acima de tudo, o que deveria sobreviver da leitura conjunta é de facto a “banalidade” das experiências, no sentido em que as emoções, medos e alegrias têm de facto um denominador comum a que se deve adjectivar como “humano”. O título é, como se compreende, uma provocação. A “normalidade” - e não foi preciso Arno Gruen para pensar nisso? - não existe em si mesma, mas apenas uma conformidade a certos princípios sociais que são passageiros, ou voláteis, mas que, acima de tudo, não deveriam tornar-se obstáculo para a felicidade dos outros. É curioso o estudo da palavra “heterosexualidade”, a qual foi empregue como “desvio a uma norma” nas disciplinas médico-psicológicas, e apenas mais tarde, já no século XX, tomada para representar “o normal”, ou pior, “o natural”.

Se seguirmos, por exemplo, a cartografia do desenvolvimento das representações dos homossexuais (e lésbicas, se se preferir uma distinção que respeite não apenas a “diferença biológica” mas os esforços políticos específicos das mulheres) proposta por Didier Eribon, em Réflexions sur la question gay, entender-se-á que é muito recente (e não totalmente desprovida de escolhos) a emancipação, e constituição mesmo, dos homossexuais enquanto sujeitos. Estas questões, de dimensões políticas, económicas, jurídicas, etc., não são de forma algum matéria secundária ou complementar em relação à vida quotidiana dos entrevistados. Bem pelo contrário, são elas os obstáculos ou blocos que constroem a progressão das suas vidas. Estas dez histórias mostram dez pessoas, não dez “modelos”. Mas ainda assim dez pessoas que poderão servir de dez exemplos às formas como navegar essas representações. E são muitas, como se imagina, as noções que estimularão a discussão. De facto, Les gens normaux será menos um livro de entretenimento - ou não o será de todo - mas antes uma forma de pensar essas mesmas noções. Quer já elas façam parte do quotidiano dos leitores quer sejam ainda matéria tabu das suas considerações.

Regressando ao filósofo francês, Eribon constitui parte da sua discussão em torno da ideia da linguagem enquanto constituinte do sujeito, e foca sobretudo no insulto (aliás, a tradução inglesa elege mesmo a palavra como título). Eis uma cena famosa, citada: em Brokeback Mountain, Ennis, enquanto rapazinho, é exposto ao cadáver de um homossexual morto pelos cowboys da  área, e esse exemplo serve de advertência, lição moral e política, mas igualmente como argumento para evitar que os jovens “escolham” aquele caminho. Eribon, sob o signo dessa cena, indica como “a homossexualidade é portanto proscrita das relações prescritas entre os homens”, recordando quase os princípios do Levítico. O insulto surge assim como a interpelação de Althusser - Eribon diz mesmo ser uma das “mais notáveis (e concretas) formas” da interpelação - apontando como a constituição destes sujeitos é feita, à la Foucault, entre as estruturas de domínio e os processos de resistência a esse poder. Eribon também aproveita de Foucault a noção da “heterotopia”, espaços outros que se encontram no seio de um mundo social pejado de regras e limitações e normas disciplinares, mas nos quais se consegue ocupar um espaço de escapatória a esses mesmos poderes, ao destino da subjugação. Menos do que utopias, as heterotopias são espaços que marcam a diferença para com os restantes espaços, e no interior do qual o sujeito poderá encontrar outras formas de se constituir enquanto sujeito. De certa forma, todos os relatos de gens normaux procura precisamente essa constituição. Quando homossexuais ocupam lugar de personagens de banda desenhada sem que a sexualidade seja o aspecto central - como nos casos da ficção científica, de Artifice a Nu-MenI (de que falaremos em breve), ou todos os exemplos nos super-heróis norte-americanos - isso ainda é notícia, porque estimula o “grau de diferença” dos restantes textos…

Essa constituição, porém, não se constrói na ilusão de uma direcção entre aquele que fala e o que lê/vê sem mediação. Bem pelo contrário, depois do, e no, prólogo desenhado por Pedrosa, as condições das entrevistas de Hubert às pessoas são não apenas mostradas mas debatidas, ele próprio surge sempre representado no plano do enquadramento das histórias, mesmo que todas elas optem por uma analepse que torna visível os pretéritos de cada um. Essa inclusão do entrevistador, desenhado de modos diferentes por cada artistas, servem menos para uma flutuação da personalidade de Hubert do que para sublinhar o carácter mediado e flutuante, ou seja, necessariamente dialogante, entre todos os intervenientes, inclusive o leitor. Em todos os casos, jamais estamos perante histórias definitivas, normalizadas, portanto, mas em espaços de fluxo, em espaços de esperança de que o diálogo possa ser cada vez maior.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

22 de novembro de 2013

Living Will no. 1. André Oliveira e Joana Afonso (Ave Rara)

Forçosamente como no caso de Sandman: Overture, a leitura de Living Will terá de se pautar pela sua edição parcelar. Sendo este apenas o primeiro de sete capítulos, numa publicação de dezasseis páginas (portanto um caderno duplo somente), imaginamos que haverá um ritmo relativamente lento da sua estruturação, mas isso permitir-lhe-á também uma tranquila entrada na vida dos leitores que se entregarem à sua construção.

A escolha da língua inglesa é uma estratégia que não importa pôr em causa em si mesma, sendo judicioso e compreensível o desejo de chegar a um público mais alargado que as poucas centenas de leitores potenciais no nosso país. O único senão terá que ver com o facto de que existem determinados tipos de jogos de linguagem que apenas conseguimos escavar no nosso próprio idioma, na nossa língua-mãe (que poderão ser mais do que uma, é certo), e que existem sempre limites ao uso das línguas estrangeiras, limites que expõem uma navegação menos própria entre os seus vários registos e tons, a ausência do quotidiano aturado nelas, uma dimensão que escapa à mera ideia da comunicação. Por isso Wiigenstein, em Culture and Value, fala de um “disgust” que sente em relação ao Esperanto, por ser uma língua fria, que apenas pode “brincar” às línguas e não possui, não permite, não respira as associações “naturais” que uma língua pode ter. Se é cedo para compreendermos se há um ritmo vivo do inglês para além da comunicação entre as personagens, o título estipula logo os espaços em que se criam os profundos pontos fortes do projecto.

Em inglês, “will” tem a sua raiz etimológica imediata no antigo inglês *willan, que significa “desejo”, “vontade”, que derivará por sua vez da raiz indo-europeia *wel-, relacionado com “preferência” ou “escolha”. algo, portanto, que nasce de uma tomada de consciência de si mesmo, dos seus limites e dos objectivos que estão para além deles. O seu uso para se referir a um documento jurídico específico data do século XIV. É de facto incrível que uma sociedade tenha desenvolvido um mecanismo que possibilita a uma pessoa, enquanto viva (living), possa exprimir o seu desejo (will) sobre a suas propriedades depois da sua morte. O uso da palavra “propriedades” não é inocente, da nossa parte, e pretende apontar à sua própria ambivalência. Se no sentido contextual imediato significará todas aquelas possessões e objectos que pertenciam ao vivo, também poderiam significar as qualidades intrínsecas da própria pessoa, a sua natureza, o seu carácter.

Living Will é a história de um velho, Will (um terceiro sentido para a palavra, então), que se apercebe da inexorável proximidade da morte e, no momento em que é tocado pelas suas raias, resolve dar início ao que adivinhamos ser uma pequena grande odisseia em que resolverá as pontas soltas do que lhe resta da sua vida. Adivinhamos também que cada número centrar-se-á numa dessas resoluções, e que elas lhe permitirão a um só tempo regressar a momentos anteriores da sua vida, mas também libertar-se da sua canga para poder partir mais leve. Assim, mais do que uma questão de “testamento” e disposição da riqueza material (um dos sentidos, primários, de will), o que Will pretenderá é um último, consciente, totalmente livre e por isso ambicioso acto da sua vontade: a disposição do seu próprio ser. Para além de um sentimento de sobrevivência e de procriação, que Will compreende, sem melodrama nem melancolia, mas uma paradoxal resignação jubilosa, já não estar ao seu alcance, a “vontade” estrutura-se nesses próximos desejos de coisas a resolver, assuntos por tratar, pontos por dar.

Neste primeiro episódio, André Oliveira e Joana Afonso criam os espaços primários do protagonista, e a pequena constelação de que parte. Tendo em conta a necessária celeridade com que os autores têm de trabalhar, vemos determinados signos de relações a surgirem de imediato, mesmo que merecessem um tratamento mais alargado - a sua proximidade, ainda que autónoma, dos proprietários do pub ou com o jovem médico, a picardia com os inquilinos ou senhorios. Aliás, o episódio da visita ao médico, até por estar em duas páginas autónomas (6 e 7) “entaladas” entre a chegada de Will à sua residência, parece desligar-se da cronologia do resto da diegese, mas poderíamos interpretar essa aparente falta de fluidez de encaixe com a própria percepção confusa do tempo do velho. De resto, existem mecanismos de travessia cronológica, como quando no final do episódio, a nossa (leitores) passagem de página, implica necessariamente uma travessia diagonal para o passado de Will.

Não é a primeira vez que o tema da velhice é abordado de modo maduro e que prefere centrar-se naquele cliché a que se chama “escala individual”, em vez de grandes princípios generalistas que apenas tocariam outros clichés. Talvez no cômputo geral, Living Will possa ser pensado em conjunto com Rugas, El arte de volar, Une plume pour Clovis. É cedo para o afirmar, não é cedo para o imaginar ou mesmo desejar. Se há necessariamente uma perspectiva criada e apresentada por dois autores jovens, o argumentista e a artista, os autores procuram ainda assim compreender em parte a perspectiva da experiência de um homem de mais de 80 anos, até pela sua dimensão física. A página que mostra a queda, rápida e curta, à porta do pub, mas que se apresenta numa metáfora de queda tremenda, ou o sincopado e lento movimento de se ajoelhar junto a uma cómoda demonstrando o peso da sua história, são apenas duas imagens que revelam essa perspectiva. A mala de recordações, de papéis e fotos guardadas, poderá dar a entender que há um peso particular do passado, mas todas essas peças são pistas afinal para o imediato futuro de Will.

Joana Afonso não se desvia do registo de O Baile, no sentido da sua abordagem “abonecada”, que na verdade é mais apropriada a géneros com humor ou de explorações narrativas mais convencionais, havendo algum desconcerto com a gravitas que se pretenderá explorar neste projecto (sobretudo pelas suas estratégias de figuração, estilizadas com recursos mais típicos de uma banda desenhada convencional ou de uma certa escola de animação). Afonso, neste seu registo, está próxima de um Rui Lacas (mais dos Asteroid Fighters do que Hän Solo), de Jim Mahfood, ou de Jamie Hewlett, menos no aspecto da figuração, do que a plasticidade dos corpos permitem imaginar. Não obstante, é essa mesma leveza que obrigará decerto os seus leitores a compreenderem a lentidão e atenção que são necessárias votar as estas páginas. A leitura, em termos físicos, pode ser rápida, até pela quantidade de vinhetas sem texto, ora interrompendo diálogos já de si esparsos, pensamentos na primeira pessoa já de si lacónicos, ora criando mesmo sequências que isolam os gestos e as reminiscências. Mas em termos de experiência, podem levar a vida toda.

Impresso a duas cores (preto e vários gradientes muito esbatidos de vermelho, quase castanhos ou sépias; cada número perseguirá uma cor, mas adiante interpretar-se-ão esses usos conforme os eventos retratados), num simples caderno, e sem grandes pirotecnias, Living Will apresenta-se como um projecto não apenas sustentável mas humilde e que pretende preencher um caminho apenas de passos percorridos, e não de promessas, de uma forma decidida muito similar à da própria personagem.  Por ocasião do Festival de Beja chegar-nos-á o segundo capítulo.
Nota final: agradecimentos ao autor-editor, pela oferta da publicação. Site da plataforma editorial.

20 de novembro de 2013

Sandman, Overture # 01. Neil Gaiman e J. H. Williams III (Vertigo)

Depois do que se tentou com Avengers, Endless Wartime, intentaremos aqui outro exercício. Há uma grande dificuldade da nossa parte em conseguir escrever sobre séries em curso, sejam elas curtas ou prolongadas, de comic books. Este formato não convida a considerações que possam ser vistas como totalizantes, uma vez que são sempre apenas uma parcela de um percurso maior. Não é que a “leitura totalizante” seja sequer possível, claro está, mas é pelo menos uma ilusão possível a de que face a um texto fechado, coeso, um arco completo (um álbum, um trade paperback, um livro, etc.), será possível tecer considerações mais sólidas. Talvez seja um erro, mesmo. Mas um comic book, um texto de uma poucas dezenas de páginas que sempre promete desenvolvimentos e curvas e desvios no mês seguinte (ou prazos maiores) torna ainda mais complexa essa decisão de leitura. (Mais) 

18 de novembro de 2013

Hellboy: The Midnight Circus. Mike Mignola e Duncan Fegredo (Dark Horse).

Quando faláramos brevemente do comic book regular desta personagem, já se previa a leitura deste novo livro, de quase 50 páginas. E, de facto, enquanto esperamos a (lenta, protelada) continuação e conclusão do novo capítulo da saga de Hellboy in Hell, Mignola oferta-nos mais uma vez com um relato da infância do seu protagonista. Não sendo a primeira vez que temos acesso aos primeiros anos de existência de Anung Un Rama entre os humanos, e dentro do “cânone” dos eventos (uma vez que muitos dos episódios que tivemos da sua infância eram cómicos e poderiam ser vistos como apócrifos), este é porém o projecto mais alargado e mais bem constituído. Se quase todas as outras histórias do Hellboy em criança e sobretudo em Hellboy Jr. eram legíveis como “scherzos”, The Midnight Circus torna-se desde logo parte substancial do projecto em moldar em profundidade a biografia e personalidade da personagem. As associações ao mito, por assim dizer, de Hellboy, são variadas, tendo cada uma das personagens com que ele se cruza papéis que serão preponderantes no futuro da sua cronologia interna, quer aqueles que já testemunhámos enquanto leitores dos seus livros quer do que ainda se adivinha vir a desenvolver em Hellboy in Hell e para além disso. Hellboy ainda está bem aquém da senda que o colocaria no caminho percorrido em The Right Hand of Doom, onde compreenderá a sua mão como a “chave” do Apocalipse e o seu papel no advento dos dragões lovecraftianos. Uma herança que ele negará, mas que acabará por levar-lhe a melhor.
 
Uma das formas de ler este livro será a de lhe encontrar um arco entre a relação inicial e a final entre o pai adoptivo, o investigador paranormal Bruttenholm, e o filho, Hellboy. Se no início, eles parecem algo distantes entre si, no fim estão conscientes do que os une, precisamente por ter sido sublinhado durante a separação. Num dos momentos de analepse há mesmo um momento de comovente ternura, de um modo talvez pouco implícito. Hellboy pergunta pelo pai, e a forma como os autores gerem as imagens (ver adiante), a perspectiva, o espaço em redor do jovem, fazem conduzir para esse sentimento crescente, que tem lugar precisamente no momento, na economia desta narrativa, quando tal sentimento vai servir para o rapazito demónio tentar “escapar” da força gravitacional e sedutora do circo… Curiosamente, também não é a primeira vez, na ordem da leitura [noção importante, e que abordaremos quando falarmos de Sandman: Overture], que vemos Hellboy a confrontar um circo demoníaco: em 2003, John Cassady havia criado “Big-Top Hellboy” para o primeiro número de Hellboy: Weird Tales (de que mostramos uma imagem no parágrafo presente). Nessa história, Hellboy confessava que “sempre detestou circos”. Perguntamo-nos se, em retrospectiva, The Midnight Circus exporá as razões desse desapreço.

Até certo ponto, podemos considerar The Midnight Circus como uma superficial adaptação da novela de Carlo Collodi, Pinnochio. Dizemos “superficial” por duas razões. Em primeiro lugar, pois não sendo directamente uma adaptação dessa narrativa, ela é citada explicitamente, tornando os elos de ligação óbvios, mas ainda assim reduzidos aos “eventos principais” (a fuga para o circo, a queda na barriga da baleia, o encontro com o Gato e a Raposa), e sem entrar em grandes pormenores (as personagens que fazem as vezes do gato e da raposa não são, respectivamente, cega e coxa; não há tempo para “criar vida” na barriga da baleia, etc.). Em segundo, porque esses “eventos” são transformados em módulos básicos de modo a servirem antes à construção da história em questão e a realidade de Hellboy. No entanto, ao contrário de outros exercícios similares, desinspirados e de resultado trivial (pense-se em Batman: Noël, de Bermejo, por exemplo, ou nas inúmeras utilizações do “Inferno” de Dante), o resultado de Circus é sólido e significativo no interior da narrativa alargada desta personagem.

Ao contrário do que poderão pensar aquelas pessoas que nunca leram o livro original, mas “conhecem a história” (na verdade, não a conhecem) através das versões do filme da Disney ou de adaptações a livros ilustrados infantis mais modernos, a obra de Collodi poderá parecer-nos hoje pejada de episódios de extrema violência, crueldade e mesquinhez. Le Avventure di Pinocchio. Storia de un burattino veio a lume num volume em 1883, contando a estranha e fantástica origem de “um pedaço de lenha”, cujas primeiras acções e palavras revelam de imediato a sua indelicadeza e grosseria, e que serve lição atrás lição mas num estranho paradoxo: se o fito global e final é de facto alertar para a necessidade da obediência, do estudo, da conformidade nos papéis sociais, há um claríssimo prazer e deslumbramento com todas as infracções feitas pelo pequeno rebelde. É curioso que o proprietário do circo, nesta história (e que na verdade é o tio de Hellboy, Astaroth), quando pergunta a Hellboy se conhece a história de Pinóquio a partir do filme (o qual, sendo de 1940, poderia perfeitamente ter sido visto pelo pequeno demónio), fica surpreendido por este conhecer o livro. Numa analepse, quando Hellboy está a ler o livro, instado por uma educadora que o quer afastar dos comic books (um nível metatextual irónico), vemos uma página ilustrada – pelo próprio Fegredo, e não se referindo nem às ilustrações originais de Mazzanti nem a qualquer outra edição existente, mas citando o texto com correcção – e a surpresa de Hellboy. Essa surpresa servirá não apenas de “gancho” da curiosidade de Hellboy junto ao circo da meia-note, mas também uma pista para o relacionamento que ele terá com outras criaturas tratadas como “bonecos” no seu futuro, nomeadamente Abe Sapien e o homúnculo Roger.

Como escreve Giorgio Manganelli em Pinóquio: um livro paralelo, espécie de exercício menardiano sobre o livro de Collodi, “Na imobilidade tipográfica, o espaço entre um sinal e outro é infinito”. Podemos compreender que The Midnight Circus é portanto um desses saltos entre sinais, um livro que nasce de outro livro, ou no cruzamento de dois livros. Se Manganelli lê em Pinóquio narrativas fragmentárias, enigmas, interpretações variadas e polivalentes, é por se tratar de um desses livros maiores, como o Quixote, o Robinson Crusoé, a Alice, e outros, que estimulam o desdobramento de novas histórias e textos a partir dos seus interstícios. Não nos parece que The Midnight Circus reescreva o próprio Pinóquio, que nos permita relê-lo de forma nova, é certo, mas nem sempre é esse o propósito destes diálogos intertextuais. Mignola e Fegredo conseguem antes elevar a um ponto perfeito a simplicidade das suas missões. Acima de tudo, este é um conto acessível, acertado e comovente.

A associação de Hellboy a Pinóquio não é de modo algum inocente, se tomarmos em conta o tema recorrente daquilo que Scott Bukatman chamou de “máquinas desobedientes”, encontrando uma tradição que liga a marioneta ao “aprendiz de feiticeiro” (de Goethe, mas também o da Disney), as personagens de Out of the Inkwell dos Fleischer, e até a Maria de Metropolis. Hellboy não é propriamente uma personagem que escapa ao seu autor, não atingindo esse nível de metatextualidade (como ocorre, por exemplo, no Boneco Rebelde de Sérgio Luiz); mas ele é afinal de contas um demónio que, em primeiro lugar, escapou do Inferno e de um inexorável destino de destruição absoluta, e em segundo lugar, daquele conforto e carinho que lhe havia sido proporcionado pelo Professor Bruttenholm. Tal qual como ocorre na cegueira de Pinóquio face aos cuidados de Metre Gepetto, seduzido o rapazinho pelos imediatos prazeres da aventura. Como mais uma vez escreve Manganelli: “a obediência e sabedoria de Pinóquio são incompatíveis com a sua história, com as suas aventuras. Em termos literários, a sua história é sempre «história de uma desobediência»”.

As referências que vamos encontrando espalhadas ao longo a narrativa são relativamente fáceis de serem detectadas e lidas, não estando propriamente a atravessar as densas malhas ora eruditas de Promethea ora populares de Top 10, ambas de Alan Moore e artistas. Por exemplo, o comic book preferido de Hellboy é Lobster Johnson, de que já víramos aventuras durante a saga, e que é um pastiche das personagens simples dos anos 1940 (inclusive o Capitão América, The Shadow, etc.), e os cartazes no circo anunciando cada acto escolhe uma panóplia circunscrita, recordando o filme de Tod Browning, Freaks, mas não procurando outro tipo de fugas.

Se o estilo visual de Mignola se tem apurado nas últimas décadas até ao seu quase esquematizado estilismo dos nossos dias, mas em contrapartida surgindo pouco, o trabalho de Fegredo nesta série (dos arcos “The Darkness Calls” a “The Fury”, etc.) insuflou-a com um outro tipo de peso material. Os desenhos de Fegredo encontram um ponto muito feliz, a nosso ver, de equilíbrio entre o naturalismo e o cartoon (determinadas expressões faciais e posições do corpo raiam um excesso teatral mas que se coadunam perfeitamente com o ambiente, o humor ou a suspensão de realismo em curso), e com pormenores a nível das texturas do mundo (tecidos, natureza, paisagens, arquitectura, etc.) que ancoram toda esta fantasia numa verosimilhança legível. Muito possivelmente a composição/planificação das páginas é discutida entre ambos, uma vez que as estruturas típicas de Mignola (vinhetas silenciosas, isoladas e sucessivas que criam ambiente, uma certa maneira de interromper cenas de acção com exposições paralelas, etc.) parecem dar lugar a uma fluidez mais normalizada. Ainda assim surgem composições como esta que abre o parágrafo (apenas metade da página), em que há duas possibilidades de ordem de leitura, acentuando a atenção bifurcada das acções em curso.

Mais uma vez, Dave Stewart surge aqui como um colorista exímio, demonstrando como a dimensão da cor não serve somente para tornar palatável a comercialização destes trabalhos, como tem mesmo um propósito narrativo quase autónomo, ou um papel de significação inegável. Pois existem três ou quatro registos diferenciados. Em primeiro lugar, a cor “normal”, um esquema cromático que tem sido empregue na série contínua, uma paleta que ainda que restrita quer dar conta da “realidade”, do nível actual dos eventos no interior deste universo diegético. Temos ainda as três páginas que dizem respeito à analepse, que seguem o mesmo esquema, mas com ligeiras alterações, de castanhos e beges mais vivos, e mais claridade. Quer num caso quer no outro, as manchas do vermelho vivo da pele de Hellboy sobressaem nitidamente. Há também umas breves vinhetas expositivas apenas a lápis e castanhos, para dar conta do historial do “gato” e da “raposa”. E finalmente temos as páginas que dão acesso ao domínio soturno do circo, onde estão ausentes as fortes e espessas linhas negras dos contornos, e se opta por uma aproximação mais diluída, gestual. É quase como se estivéssemos perante a técnica do lavis, da parte do próprio Fegredo, e fossem as aplicações sucessivas das aguarelas as que garantiram as texturas e volumes dos ambientes e objectos. As cores aqui estratificam-se em azuis e cinzentos metálicos no imediato exterior nocturno (reparem-se sobretudo nas cenas de “transição”, quase sempre operadas de modo perceptível), laranjas e amarelos atenuados para quando irrompem as luzes e as chamas, e no interior aquático da baleia um uso de tons glaucos judicioso. 

O sonho de Pinóquio é tornar-se um rapazinho como os outros, mas para isso ele atravessará muitas provas e metamorfoses, perdas irreparáveis e grandes dores. Não será isso o que os autores querem mostrar em relação ao pequeno Hellboy também, sabendo nós o preço que pagará pela humanidade que, em todo o caso, ele parece conquistar desde logo nesta pequena fuga?

16 de novembro de 2013

Avengers, Endless Wartime. Warren Ellis e Mike McKone (Marvel)

Gostaríamos de experimentar um exercício. Se neste espaço privilegiamos aqueles textos que de uma forma ou outra apreciámos ou nos estimularam a escrever, preferindo passar em silêncio aquelas obras que, de medíocres, triviais, ou cujos elementos a discutir acabam por ser exíguos, a mescla de expectativa e desilusão com este projecto leva-nos a querer dar a ver o que seria possível num texto negativo. Ao contrário da sabedoria popular, que por vezes se engana, a tarefa da crítica não é “falar mal”, nem “botar abaixo”, mas antes tecer um discurso que visa, através de argumentos, uma perspectiva qualquer ancorada e que pretende, enquanto fito último, um diálogo, uma discussão que contribua para a comunidade final dos seres humanos, a saber, a comunidade estética. Se o que faz mover um crítico em relação a um determinado texto é totalmente negativo, ou por outras palavras, se o crítico não gosta de um texto, porquê deixar-se abandonar no doloroso trajecto de tornar palpável essa bílis, que apenas por ser remexida se torna mais biliosa ainda e por isso de baixo interesse em ser interessante para o público?

Daí que este não seja um exercício a ser repetido muitas vezes.

Depois de termos tecido alguns comentários sobre a nova direcção editorial da Marvel, cuja promessa rapidamente se gorou pelos mecanismos expectáveis e pelas economias normalizadoras de registos narrativos e visuais da companhia, ainda assim havia uma pequena esperança de que a nova linha de “graphic novels” pudesse significar um alento a este universo de referências. A associação do nome de Warren Ellis ainda estimulara mais essa expectativa, mas Avengers, Endless Wartime acaba por ser mais uma caixinha de boas intenções do que de um texto bem desenvolvido.

Parte destas expectativas estarão relacionadas com a colecção “Graphic Novel”, que nos havia chegado às mãos através das traduções da Abril durante os anos 1980, com títulos que ficaram na memória dos seus leitores, até porque, existindo menos material e menos acesso ao mercado internacional, tudo o que surgia com um grão de diferença no interior desta economia dos super-heróis parecia digno de atenção. Se alguns desses títulos sobreviveram em todo o seu conjunto, desde A Morte do Capitão Marvel, o Demolidor de Miller e Sienkiewicz, o volume de Alien Legion, outras recordam-se mais pelo impacto visual, como o Homem-Aranha de Wrightson, o Drácula de Jon J. Muth, e outras ainda por serem material em relação ao qual não estaríamos, na altura, preparados, e deixaram mossa (Void Indigo, de  Steve Gerber e Val Meyerik). A partir desse primeiro (para nós) gesto, sempre que surgiriam formatos especiais (“prestige”, “graphic novel”, algumas mini-séries, etc.), estava associado a um conjunto de constituintes permanentes: histórias isoladas da “continuidade”, pelo menos de um modo suficiente para serem apreciadas por um público maior que o habitual, histórias mais desenvolvidas por terem mais espaço para isso, explorações mais espectaculares ou complexas por elementos usualmente fora da economia mensal, e, acima de tudo, um tratamento gráfico que a tornava desde logo especial, digna de nota (mesmo que tenha havido um número de coisas feias). Ora, todas essas expectativas verificaram-se com este título. Però

Para aqueles que têm acompanhado os títulos com os Vingadores de Jonathan Hickman (Avengers e New Avengers), mesmo no interior do crossover Infinity, saberão que tipo de estruturas narrativas altamente contemporâneas, e até experimentais (bebendo de fórmulas de jogos electrónicos, formatos ficcionais televisivos, a cultura youtube, etc.), podem ser empregues no seio do mainstream de super-heróis para, em primeiro lugar, gerir um número impressionante de personagens que poderiam assumir o protagonismo mas se tornam como que elementos de uma verdadeira equipa (e não uma pirâmide móvel, com um líder isolado e os “especialistas” em cada um dos seus papéis) e, em segundo lugar, conseguir criar uma dinâmica fluidez entre elas, fazendo ainda assim emergir a noção de uma narrativa coesa, com propósito e um “arco” definido e legível. Endless Wartime centra-se naqueles Vingadores afectos aos filmes (de modo a compreender tratar-se de um projecto que pretende chegar antes aos leitores casuais ou não-leitores conquistados pelos filmes), a saber, Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Hulk, Viúva Negra e Hawkeye, numa confusa mescla entre os desenvolvimentos que estas personagens têm sofrido no “universo normal” (616), as intervenções estilísticas e narrativas dos Ultimates/Marvel Now, e factores dos filmes. Wolverine junta-se a eles, pois Wolverine é sempre o factor “edgy” que tem de entrar para subir a parada da violência, da entrega quase gratuita mas “necessária” a essa violência, da história que estiver a ser desenvolvida. E ainda temos a Capitã Marvel Carol Denvers, que tem sido impelida pela companhia de modo evidente, e poderá vir a ser mais uma das personagens a chegar aos ecrãs no futuro. Ou seja, desde logo há aqui uma clara vontade de gerir o melhor possível as personagens enquanto propriedades intelectuais transmediáticas desta companhia integrada (não é apenas a Marvel, mas a Disney).

Essas estruturas não se conseguem desenvolver aqui, contudo. Ellis até parece “forçado” a trabalhar com estas personagens e tenta encaixá-las em fórmulas habituais da sua escrita. Ellis quer que algumas das personagens tomem conta do “cínico” que costuma ser o seu protagonista (Elijah Snow, Spider Jerusalem, Michael “Desolation” Jones, etc.), mas parece não estar seguro qual das personagens aqui deve assumir esse papel… então vai apimentando os diálogos de todos com “bocas”, de uma forma que as torna todas cheias de fastio, arrastando-se na relação que têm de manter com os demais… Em vez de criar geometrias interessantes entre estas personagens, Ellis acaba por construir apenas barragens seguidas de diálogos cínicos, de respostas e ripostares, que acabam por ser demasiado vincados para se tornarem factores de moldagem das personagens (de resto, com um historial mais ou menos conciso que poderia ter sido usado mais elegantemente). Quase todos parecem não ter elos de amizade entre eles, e até têm atitudes algo “desconectadas” com os outros membros, como se fosse uma aglomeração de solitários.


Não é a primeira vez que Ellis tem estes “brinquedos” na mão. Para além da oportunidade que teve em citar pastiches dos vários Vingadores ao longo dos “arcos narrativos” de The Planetary, Ellis trabalhou em títulos com Wolverine, escreveu a trilogia Ultimate Galactus, que envolve todos estes personagens (versão Ultimate), escreveu uma das mais celebradas e hard sci-fi histórias do Homem de Ferro (da continuidade), escreveu Ultimate Human, com essa personagem e o Hulk… e até havia criado um curioso exercício “meta” com Ruins, uma espécie de Marvels ao contrário. Em Endless Wartime, porém, Ellis não explora nenhum dos seus pontos fortes. Ou melhor, acaba nos seus pontos fracos: não ser capaz de criar uma história em que os heróis se têm de manter “limpos” (pelo menos o Capitão América, por demais jogado “contra” o papel de Wolverine). É como se se tivesse lavado o cinismo e o humor negro e tivesse ficado algo sem muita personalidade, quase mecânico. Além do mais, se uma das coisas que pode funcionar nestas personagens é a forma como teriam de trabalhar juntos – e sendo uma equipa líquida em termos de membros, todos estão envolvidos porque o desejam, porque sabem trabalhar para isso, porque têm como fito algo comum -, o tratamento de Ellis transformando-os em uma mão-cheia de pessoas que parece serem forçadas a colaborar não se coaduna com a “marca”. Até a entrada de Bruce Banner/Hulk parece mais de um funcionário a picar o ponto do que um momento alto da narrativa. Que essa fosse uma estratégia perfeita em The Planetary, ou os “seus” Wildcats, ou outra equipa, é uma coisa, mas a equipa mais “clean” dos super-heróis, é simplesmente não fazer o trabalho de casa.

A menos que seja um projecto de Ellis: o minar “por dentro” estas personagens. Mas isso não faria sentido, nem resultaria, pois a história em si, os eventos e gestão deles, não chega sequer a ser significativo.

O ponto de partida da história é uma boa equação entre o cliché e a ideia original. O cliché é que “fantasmas do passado” de Thor e Capitão América os revisitam na contemporaneidade, mas isso poderia até ser bem gerido (como o é, por exemplo, no recentíssimo Captain America: Living Legend, de Andy Diggle e Adi Granov): em primeiro lugar, faz-se uma aliança em retrospectiva dos caminhos dessas duas personagens durante a 2ª Grande Guerra, que poderiam vir a ser explorados de uma forma curiosa e produtiva; depois ancora as mesmas personagens na história quer real quer da fictícia que lhes pertence mas é igualmente significativa para as personagens e os leitores que os acompanham desde as suas origens (1941 e 1962, respectivamente). No entanto, o cruzamento logo acaba por cair em clichés ainda mais ridículos: os inimigos acabam por ser demónios da mitologia nórdica transformados em mísseis nazis. Sim, o combate destes Vingadores será contra, basicamente, dragões-drones argardianos nazis. Isso bastaria para fazer ruir o edifício, mas os leitores de Ellis poderiam ainda assim esperar que a alucinação techno-mágica ou oculto-tecnológica poderia ser escavada até um ponto profundo (recordemo-nos dos conceitos loucos em Global Frequency, City of Silence, Supergods…), como costuma ser pelo escritor inglês… mas não é. Aliás, a trama da origem destas criaturas, a sua continuidade na era contemporânea, e depois a sua resolução (através da violência massiva, que surge como “inevitável”, o que abre a grandes possibilidades de leituras ideológicas) é desordenada, lacunar (quem é que Wolverine encontrou, afinal?), e, no fundo, algo ridícula.

É verdade que Ellis tenta evitar aquele mecanismo óbvio que seria colocar todo o destino do planeta Terra em perigo. Não se trata aqui de uma invasão alienígena (é-o apenas quase) nem de uma ameaça de um conquistador global (é-o apenas quase), mas um inimigo localizado. Existe também um outro equilíbrio entre as relações intricadas com pequenos elementos do universo Marvel para entreter os nerds atentos, e coisas mais ridículas como a menção de um conflito num pequeno estado fictício do Médio Oriente, entre o Irão e o Afeganistão, a Slorénia, com a capital Tblinka. Não percebemos sequer se isto é para ser sério, se serve para “associar-se a temas reais” ou é apenas um disparate pegado. Seja como for, se esta se trata de uma graphic novel auto-contida de mais de 150 páginas, um one-shot de preço elevado e altos valores de produção (física) e de publicidade, esperar-se-ia, lá está, uma espectacularidade desmesurada, que se verifica, afinal de contas, quase todos os meses em todos os pequenos comic books que a Marvel produz. Nada há de negativo numa exploração consciente e dominada dos elementos e convenções tipificados que constituem um género altamente estilizado como este, e pode-se mesmo atingir a perfeição no seio desse género. Já havíamos aventado sobre este aspecto a propósito de algumas séries, e mais recentemente com Smoke/Ashes. Todavia, este caso é uma prova acabada que o nome do autor não é de facto suficiente para assegurar uma conquista nessa direcção.

Talvez se tivesse desejado uma história menos densa e negra, que pudesse servir o seu propósito de conquistar novos públicos, com uma história “leve”, tal qual como nos filmes, de certa forma. A mescla de vários desejos é muito nítida e o resultado é medíocre, infelizmente. Porque Ellis tenta enfiar, mais uma vez à força, uma “relevância social” destas personagens no “nosso” mundo, mas de uma maneira duplamente falha: em termos estruturais, através de intervenções de um narrador externo, com legendas esparsas ao longo da narrativa, mas que apenas desequilibram a fluidez geral, e não dialogam directamente com o resto das opções; em termos sociais, porque o mundo seria deveras diferente se existissem pessoas destas nos destinos das nações, e melhores projectos de banda desenhada exploraram essa via… Ellis atira umas quantas “notas” dessas ideias e espera que colem à narrativa. Nem sequer um determinado vigor que se esperaria do género está presente (como o havia explorado em Nextwave, por exemplo).

E finalmente temos a questão do aspecto visual do livro. Tendo em conta a forma como era vendido, esperava-se que se escolhesse um peso maior para a prestação artística. A arte de Mike McKone é, pura e simplesmente, má. Não péssima, não totalmente feia, mas incompetente para o seu propósito, ilegível na sua relação narrativa, desajeitada em muitos pormenores, e, muito francamente, desgraciosa. Na maior parte dos casos, as personagens são desprovidas de emoção, e isso é notório da forma como o artista desenha os rostos. E há também uma falta de coerência interna, como se não fossem as mesmas pessoas de vinheta para vinheta, com opções toscas em termos de rostos ou mesmo posições dos corpos (ou, no caso que mostramos, uma espécie de repetição de rostos no Capitão América e o Thor). Mesmo algumas cenas de grande acção não têm dinamismo, ou então a ausência de cenário, objectos ou mesmo linhas de movimento parecem enquadrar as personagens num líquido espesso que as suspende. A opção de tornar todas as composições de acção em estruturas oblíquas por McKone pode dar um efeito de dinamismo, mas é apenas superficial, e é até mesmo uma “espectacularidade” que confunde a leitura (um pouco como os movimentos de câmara nos filmes de super-heróis, que parecem uma montanha-russa mas em nada ajudam a perceber os movimentos, que ganhariam em imitar antes bailados ou natação sincronizada, à la Power Rangers). E se bem que as personagens femininas, a Viúva Negra e a Capitã Marvel, não sejam abusivamente representadas a partir de uma perspectiva sexualizada (ajuda o facto de que os uniformes delas cobrem o corpo todo), há aquela vinheta de Natasha Romanova que põe tudo em causa, e sublinha a imaginação fantasiosa sexualizada dos artistas e leitores usualmente associados a este género (posições que revelem a um mesmo olhar o peito generoso e anti-gravitacional e o traseiro afro-brasileiro recauchutado não constituem o melhor exercício de yoga)…

O tratamento das artes-finais e das cores digitais é também particularmente medíocre, tornando todo o projecto numa espécie de camada empastelada, sem brilho, sem vida. Tendo em conta a existência de um Gary Erskine, um Leinil Yu, um Jae Lee, um John Cassaday, um Alex Maleev, um Andy Granov (para apenas mencionar os mais competentes e interessantes artistas deste género a trabalhar agora na Marvel), ou até os portugueses Jorge Coelho e Filipe Andrade, que insuflam uma frescura e dinamismo aos títulos em que trabalham (mas menos interessantes pelas direcções narrativas que seguem), poder-se-ia imaginar uma alternativa mais brilhante e acabada para estas “graphic novels”.

Enfim, talvez seja uma parte nostálgica que gostaria de facto de encontrar material deste quadro de referências que fosse digno de partilha para além do público habitual, mas é possível que isto apenas seja um dos sintomas que confirma a mediocridade geral destas produções, e explica porque não há necessidade de visitar o mainstream, quando existem tantas alternativas…
Nota final: imagens retiradas de ficheiros digitais. Agradecimentos a Hugo Almeida pela correcção de uma informação que colocámos na versão original, já corrigida: faláramos de um pastiche dos Vingadores em The Authority, mas isso era do Mark Millar e Frank Quitely... Nerd alert indeed.

14 de novembro de 2013

The Deal. Gerardo Preciado e Daniel Bayliss.

Sendo raro fazermos trabalho de mera divulgação, não queríamos porém deixar passar esta pequena oportunidade, e remeter-vos a uma curta peça de fan fiction com o Batman e Joker. Feito com admiração patente pelas histórias destas ersonagens, mas ao mesmo tempo com impaciência à repetição dos mesmos mecanismos de sempre, e com um claríssimo desejo em que uma forma "adulta" tomasse de facto conta destas criaturas (mesmo com os incómodos momentos à la Al Columbia), The Deal parece-nos ser uma história excelente (pelo menos, vários furos acima das platitudes e patetices que têm saído no novo Batman Black & White, por exemplo). A citação do discurso com que o Bill Hicks fechava as suas performances é muito bem integrado, parece-nos.
Link.

Smoke/Ashes. Alex De Campi et al. (Dark Horse)

Este livro é uma colectânea, integral, da obra da escritora norte-americana Alex De Campi, que se apresentara, em primeiro lugar, na mini-série Smoke (de 2005), e que depois em 2012 encontraria desenvolvimento num comic digital, Ashes. A nossa leitura foi feita de modo seguido, como se de um volume se tratasse, e apesar das diferenças entre um título e outro em termos de abordagem visual, tratamento narrativo, e as expectáveis distâncias diegéticas, eles conseguem coordenar-se com alguma fluidez.

A primeira história faz com que o caminho de uma jornalista de investigação, a britânica (de descendência paquistanesa, indiana?) Katie Shah, que procura compreender os meandros que unem os poderes políticos de um governo britânico em falência com os interesses petrolíferos da OPEC, se cruze com o de um assassino do governo, o albino Rupert “Cain”, transformado em “ponta solta” que precisa de ser eliminada. Como uma boa história mainstream, há um equilíbrio perfeito entre a conflituosa construção da relação entre estas duas personagens tão distintas e de mundos apartados, o busílis da acção centrado na teia de espionagem, corrupção política e financeira, e desejos de controlo societal, e ainda as várias dimensões possíveis de retrato, projectado e distorcido, da sociedade britânica num futuro já aqui ao virar da esquina. O surgimento de um outro assassino, uma espécie de ciborgue sem cara, vai tornar o ritmo ainda mais acelerado e a aparada mais alta, como é de esperar.

Aquele ambiente policial, político e financeiro torna Smoke (e depois Ashes) num título próximo das temáticas da distopia, projectando-se num futuro próximo as consequências do que já se verifica nos nossos dias. Se na televisão poder-se-ia falar de Black Mirror, na banda desenhada haverá toda uma série de exemplos com grandes afinidades a este duplo título, de V for Vendetta a The Adventures of Luther Arkwright, passando pela saga de Grendel, o Dan Dare de Grant Morrison, o seu The Invisibles e outros. Os autores prestam particular atenção para os pormenores que povoam a paisagem urbana, desde o modo das pessoas comunicarem, à cintura de controlo em torno da City, passando pelos graffiti (as menções a Banksy são por demais evidentes), modas, linguagem, etc. Importa, portanto, olhar todas as escalas em jogo em Smoke/Ashes.

Ashes, a segunda história, sequela, que poderia ter sido lida isoladamente, parte de uma ideia central de ficção científica: a de que uma consciência de um jovem rapaz (que descobrimos ser o ciborgue de Smoke, antes acidentalmente morto por Cain “invade” a internet e procura vingar-se através de toda uma série de acções que “desligam” serviços e equipamentos, lançando a civilização num estádio recuado e dificultoso. Há aqui uma faceta provável de crítica (“dependemos em demasia da internet”, etc. e tal), mas isso não é, felizmente, explorado de forma explícita, havendo antes uma opção em concentrarmo-nos não nessa moralidade, mas nas acções necessárias à sua correcção, que passa por Cain revisitar o seu passado, ser capturado por ele e aí encontrar alguma solução.

Ashes  foi publicado cinco anos depois de Smoke e é precisamente esse o tempo que intervala a cronologia das histórias (criando um sentimento junto aos leitores que acompanharam as séries originais próprio da “serialidade”). Mas curiosamente, é com o segundo título que se permite recuar no tempo cronológico, contribuindo para uma backstory de Cain que apenas havia sido mencionada ao de leve no primeiro livro. Ou seja, Ashes continua, expande e complefixica o universo de referências de Smoke.

Alex De Campi não é uma escritora de hard sci-fi comics como um Warren Ellis ou um Masamune Shirow, por exemplo, mas não deixa de querer investigar as consequências do impacto da tecnologia, não apenas no seu fetiche imediato, mas nas implicações que terão nas redefinições permanentes dos relacionamentos sociais, dos aproveitamentos políticos, das novas sendas da economia, e por aí fora…. Tendo em conta as profissões das personagens, o jornalismo e os serviços secretos são objecto óbvio de análises, não diria continuadas e aturadas, mas pelo menos em destaque. Mas além disso, De Campi, nestes dois trabalhos, parece saber navegar com mestria o interior dos géneros. Não concordaremos com o entusiasmo com que muitos críticos recebem Smoke/Ashes como “reinventando as possibilidades da banda desenhada”, sobretudo se tomarmos em conta muitas das verdadeiras pesquisas artísticas, expressivas e ensaísticas que conhecemos deste território. Mas o maneira como esta obra é devedora, com conhecimento, respeito e saber, à tradição do melodrama de géneros (espionagem, policial, de acção, etc.), em nada faz desmerecer a nossa atenção e compreensão do seu domínio efectivo.

A dimensão visual, de resto, corrobora essa linha de interpretação. O desenho de Igor Kordey, artista exclusivo de Smoke, faz recordar por demais o primeiro Patrick McEown, o de Grendel: War Child. Há o mesmo tipo de figuras sólidas, anatomicamente consistentes e verídicas, mas com suficientes intervalos que permitem expressões mais dramatizadas e dinâmicas, composições de página clássicas e funcionais, e um trabalho de cor (aqui de Len O’Grady) que, não deixando de procurar sobretudo um efeito geral naturalista e convencional, não deixa de ser imediatamente legível. Smoke, neste aspecto, é um trabalho bastante normalizado, legível, competente, criando um excelente trabalho mainstream, como os artesãos do cinema de Hollywood do bom velho tempo.

Ashes, por outro lado, é criado de uma forma muito mais alargada (até por o primeiro livro ter cerca de 150 páginas e o segundo quase 300). Poderíamos dizer que é menos rigoroso ou coeso, mas isso dever-se-á, naturalmente, à diversidade dos autores que trabalham no título. Gostaríamos de dizer que essa flutuação e emprego de vários artistas corresponderia a uma clara estrutura que diz respeito à diegese - por exemplo, movimento entre vários momentos cronológicos, um crescendo qualquer na representação ou outros aspectos passíveis de “heterogeneidade gráfica”. A razão, porém, começa do lado da produção. A sequela de Smoke começara entre Campi e Jimmy Broxton, através de uma campanha na Kickstarter. Porém, por uma razão ou outra, as divergências entre escritora e artista levou a que se tivessem desvinculado, e Broxton não só não daria continuidade ao projecto que tinha em mãos, como nem sequer se encontrarão neste volume as páginas que havia desenhado [mostramos um exemplo, ao lado das publicadas, dos Sobreiro]. Campi teve, porém, a felicidade, de contar com toda uma série de artistas, para sequências mais ou menos breves.

Se existem vários casos em que a diegese pede por esta flutuação de estilos ou registos (seja através de autores de assinaturas diferentes seja um mesmo autor a criar abordagens e pastiches diversos) - e apenas a título de exemplo, recordemos a saga de Supreme nas mãos de Alan Moore e companhia – no caso de Ashes criam-se momentos muito diferenciados, também, mas menos consonantes com o que vai sendo contado e/ou revelado. Existem momentos em que isso se torna mais claro, como no caso das alucinações “internas” quando Cain está a ser torturado – um emprego desconcertante de imagens de um livro ilustrado infantil e depois de um pastiche neo-rafaelita podem revelar receios ou traumas profundos das personagens, ou modos de negociarem com estruturas míticas transhistóricas -, mas na esmagadora maioria dos casos é só por ser uma “passagem” entre episódios ou cenas (ou, melhor dizendo, de artistas).

O início do novo capítulo está nas mãos dos brasileiros Milton Sobreiro e Felipe Sobreiro, que apresentam uma prestação sólida e competente, ainda que com alguns desequilíbrios que colocam em causa a fluidez natural dos corpos das personagens. No segundo capítulo, uma parte correspondendo ao passado é desenhada pela delicada Carla Speed McNeil (a qual, confessemos numa nota pessoal, foi o factor que nos levou a comprar o livro, e desejar ter sido ela a artista principal), e uma outra, passada numa base norte-americana, por Richard Pace, com a convencionalidade necessária. Esta estrutura com três registos visuais para três “linhas narrativas”, faria pensar numa continuidade, mas se existem alguns argumentos para dizer que cada um dos próximos capítulos ou suas secções são desenhadas por artistas diversos para dar conta de uma qualquer inflexão interna, a verdade é que não há uma estrutura elegante de ponta a ponta. Ainda assim, com páginas desenhadas por R.M. Guéra, Dan McDaid, Bill Sienkiewicz com algumas páginas, inclusive as do fecho, Colleen Doran, Mark Chater, Alice Duke, Alem Cúrin, Jesse Hamm, James Smith e Matthew Hernandez, e a capa da colecção por Tomer Hanuka, haverá certamente estímulos para muito gostos, e questões de flutuação visual para explorar.

No cômputo final, porém, há boas razões para crer que de facto este é um projecto de Campi, mais do que uma colaboração criativa entre a escritora e a sua troupe de artistas. Sendo um título mainstream, ele é de uma qualidade que ultrapassa a maioria das produções constrangidas àquelas personagens mais famosas dos super-heróis, até mesmo no que diz respeito ao modo como exploram os aspectos do real em que se inserem. Smoke/Ashes é bem mais directo nessa relação, e mais inteligente na exploração das consequências. E sem quaisquer moralismos ou heroicidades inultrapasáveis. Se Cain, até mesmo enquanto assassino albino, parece ter todos os ingredientes para se tornar um inderrotável campeão, as suas fragilidades estão sistematicamente expostas, a sua humanidade não se oculta, e isso é demonstrado, de uma forma feérica, para não dizer maravilhosa (na acepção literária da palavra), no final da saga. Se não poderemos dizer, eventualmente, que esta é uma obra-prima, incontornável, ou um monumento aos géneros, ela é seguramente uma prova cabal da capacidade de equilíbrio de Alex De Campi em gerir todos aqueles clichés necessários à sua edificação, ao mesmo tempo que os anula e impede outros de emergirem com as suas personagens diversificadas, inteligentes. Não há quaisquer maniqueísmos claros neste texto, mas antes zonas ambivalentes e fluidas, tal como o fumo, ou restos de narrativas passadas, nas quais ainda adivinhamos a presença de algo vivo ou que pode regressar, como as cinzas.

12 de novembro de 2013

Playground. Berliac (Ediciones Valientes)

É na capa que notamos desde logo as hesitações, ou arrependimentos, ou as hipóteses várias, do que o autor desejaria chamar ao seu projecto. Mas para além das palavras rasuradas “novela gráfica”, “documentário” ou “banda desenhada”, poder-se-ia ainda arriscar a presença dos termos “ensaio”, “exercício de improvisação”, “inquirição d’arte”…

Playground é, a um só tempo, uma espécie de apresentação sumária dos processos de trabalho que levaram John Cassavetes à realização de Shadows, o filme de 1959 que marcaria o início do que se viria a chamar de “cinema independente” nos Estados Unidos, um bloco de apontamentos do autor argentino sobre a sua própria prática da banda desenhada, inquirindo questões de relacionamento entre banda desenhada e cinema, da representação do real, do realismo propriamente dito, do que significa a palavra “banda desenhada” [historieta] por oposição ou contraste a “arte”, de opções de formato e em que medida elas alteram o objecto textual, e, finalmente, também um exercício de imitação das pesquisas pela improvisação de Cassavetes no cinema, transpostas para aquelas possíveis numa banda desenhada.

A própria descrição do objecto leva a que haja esta abordagem fragmentada, já que cada uma destas linhas de desenvolvimento apresenta-se sobre formas diferenciadas. Tudo o que diz respeito a Cassavetes, sejam desenhos do equipamento, mimeses dos fotogramas, ou dos corpos e gestos dos actores, ou da paisagem urbana (néons, ruas pejadas de carros à noite) de Nova Iorque, é apresentado através de um sólido trabalho de linhas a grafite, repetidas, entre a modelagem académica e a liberdade de esquisso dos sketchbooks contemporâneos publicados tal qual. Nalguns casos, surgem várias vinhetas, compostas de forma simples mas imitando expectativas usuais da banda desenhada, e mesmo quando aparecem imitadas as perfurações da película de filme, não só remete a técnicas habituais de representação de filmes na banda desenhada, como faz surgir questões de uma “tradução” transmediática relativamente transparente onde o fotograma isolado da sequência equivaleria a uma vinheta. As partes que dizem respeito às reflexões sobre banda desenhada parecem ser páginas arrancadas ou digitalizadas/fotocopiadas de um seu caderno de linhas, cheias de apontamentos caligrafados, e colagens de vinhetas de outros autores, esquemas e listas e colunas comparativas, até mesmo um pedaço de guardanapo ou toalha de mesa, salvando um apontamento que se torna argumento ou peça do discurso construído. Há ainda um print screen de uma conversa num programa de chat com Pedro Franz, também sobre as questões ontológicas do uso da designação de “banda desenhada” para o tipo de pesquisa artística que ambos os artistas perseguem.

O livro tem uma sobrecapa em cujas badanas surgem desenhadas mãos projectando sombras numa parede, e em gestos que fazem surgir animais. A primeira página do interior mostra um projector emitindo o seu foco de luz na direcção das próximas páginas que leremos. Se esta página em particular poderá fazer lembrar outros projectos de banda desenhada que se iniciam ou mergulham nesta forma, tal como alguns projectos de Vicent Fortemps, Berliac pretende criar uma tessitura a um só tempo extremamente densa, por um lado, e fluida e aberta, por outro, entre o cinema e a banda desenhada. Densa, pois o autor quer explorar vários pontos de contacto entre as duas formas artísticas sem atravessar aqueles pontos mais comuns e fáceis de analisar, e que são usualmente os objectos de estudo nos livros e ensaios académicos e semióticos (narrativa, coordenação de cenas, relação imagem-texto, mise en scène, expressão dos actores/personagens, iluminação e cor, etc.). Berliac está interessado em algo mais próximo do “espírito”. Fluida, pois jamais quer apresentar decisões ou noções resolvidas, mas colocar em movimento as questões (daí que o título saliente a dimensão lúdica, descomprometida, do “recreio”).

Por exemplo, num quadro o autor opõe cartooning a desenho, e a partir daí criam-se toda uma série de oposições - que seguramente se devem entender como pólos num espectro, tensões e variações, e não dicotomias claras e absolutas -: entre ler e ver, ideias e emoções, descrição e expressão, decisão e improvisação, formulação de uma experiência e experiência em si. Isto é muito curioso e dá que pensar, sem qualquer dúvida. De facto, ler neste sentido é reconhecer, e reconhecer é enquadrar o visto em categorias preparadas, pré-concebidas, e não ver propriamente visto (pela primeira vez). Isto é, enquadra-se a experiência numa sua fórmula, e não na experiência. Eis um exemplo: a tristeza pode ser representada, ou “formulada”, por um rosto constrito com lágrimas a escorrerem pelos olhos, e de braços inertes ou levantados no ar em desespero. Mas porque não procurar outras formas de expressar a tristeza, que movam os leitores a uma visão inesperada?

Daí que os jogos de projecção de luz e sombras, de gestos em devir-animal e de uma maquinaria em torno do acto teatral (apenas uma forma de entender o cinema), criem uma estrutura complexa de referências, em cujos interstícios Berliac tenta navegar o seu discurso.

Os aspectos em que o autor se foca na realização de Shadows prendem-se sobretudo com todos os aspectos técnicos, desde o formato da película ao trabalho de captação dos gestos dos actores por Cassavetes, passando pela dimensão do som, uma camada mesclada em que nasce uma matéria diferenciada obrigando o espectador a ver, e não a simplesmente ler. No entanto, não se está aqui em busca de uma justificação pelos abusos ou a espectacularidade da técnica. O próprio Berliac, apesar de apresentar Playground com técnicas que o desviam de territórios mais convencionais da banda desenhada, não explora as suas opções técnicas de forma a que elas se tornem no primeiro plano. Bem pelo contrário, todas essas técnicas surgem como que na sua forma própria (isto é, não se ocultam em nome de uma “ilusão de realidade”) para dar a ver a sua matéria própria. Falando de Buñuel, escreve Jean-Claude Carrière em A linguagem secreta do cinema, “Essa preocupação em conter a técnica em favor  de uma coisa mais sutil, essa opção deliberada de evitar efeitos, essa desconfiança em relação à sempre sedutora beleza, parece particularmente perigosa (…) A rejeição do virtuosismo pressupõe segurança em relação à força do que está sendo mostrado”. Essas palavras poderiam, ainda que com distinções muito particulares (sobretudo tendo em conta a questão da determinação tecnológica do cinema, que é menos clara na banda desenhada), a esta nossa área. E Berliac pretende criar mecanismos idênticos no seio desta disciplina da banda desenhada, mesmo que lhe ocorra escapar a essa designação. A nosso ver, porém, se queremos acreditar que a banda desenhada é de facto uma arte, então não há qualquer necessidade em buscar uma outra palavra, mas permitir que essa palavra seja ainda servida com estas experiências, diferenciadoras, mais radicais, pois são essas experiências que fazem o próprio meio crescer. Usar outra palavra seria provar que a banda desenhada não pode ser isso também. Essas experiências de experiências próprias.

Um aspecto importante em Playground é que não há sombra de ironia no que é apresentado. Não quer isto dizer que o livro seja grave ou sério, que não se permita ao auto-humor, a uma frescura nas buscas que intenta (e atinge). Significa isto que há uma entrega genuína à matéria que explora, uma apaixonada ausência de distância dessa matéria (como deve ser a paixão, de resto). Recordemos que identificámos pelo menos dois registos no livro, acima. Como compreender, então, essa ausência de distância na ideia dos dois níveis de “representação”? haverá “um real” de partida em relação ao qual se estabelecem esses dois níveis diferenciados, essas facetas corresponderão a distâncias únicas? Não. O que ocorre são apenas pequenas variações de intensidade em relação às matérias que podem ter um nome diferente - “o filme de Cassavetes” e “práticas de banda desenhada” - mas que no fundo se tocam, ou emergem, ou convergem, num mesmo plano. O do livro.

Talvez haja apenas dois pequenos pontos de contestação, ou melhor, de discussão, possíveis. O primeiro é a consideração do cinema enquanto “arte audiovisual”. É o teórico francês Michel Chion que cunhou o vocábulo “áudio-visão” (em 1990), para dar conta do facto de que “na combinação audio-visual, uma percepção transforma a outra e transforma-a: não ‘vemos’ a mesma coisa quanto a escutamos, não ‘escutamos’ a mesma coisa quando a vemos”. o que importa não seria a formulação conjunta do audiovisual e no cinema como uma das suas expressões, mas antes uma consideração dessa junção como uma ferramenta de imersão mais propensa à distracção, e o cinema como uma plataforma que procura criar tensões ríspidas entre as duas matérias (som e imagem), de maneira a que elas se estimulem mutuamente. Como disse Harvey Pekar, e de certa forma repetido, enquanto fórmula, precisamente, por muitos críticos de banda desenhada (e não nos excluímos desse grupo), “a banda desenhada são só palavras e imagens. Podes fazer tudo com palavras e imagens”. Certo. Até certo ponto. E se não fossem apenas “palavras e imagens”, mas antes “imagens que surgem enquanto palavras e palavras que se comportam como imagens”, ou, e se esse “e” fosse substituído por outras relações, por “através de”, “apesar de”, “com”, “não obstante”, “em vez de”, “em tensão com”…?

Na verdade, se audiovisual é um termo que pode mesmo ser jogado em oposição ao cinema, como se notará por exemplo no nome da instituição que tutela essa disciplina em Portugal (ICA) ou na expressão do crítico Serge Daney, que criou um trocadilho de alguma fama, “odieux-visuel”, o que é que isso nos permite escavar? Não se trata aqui de uma questão jurídica, mas sim filosófica, estética, até ontológica - o tal “espírito” indicado atrás -, que recupera o cinema para um território de expressão autoral (por mais complexo que o seu obrigatório trabalho de colaboração seja), retirando-o do mundo comercial, de entretenimento, e de fitos que não têm a ver com um retorno à própria alimentação da arte enquanto tal. Nesse sentido, aos poucos, poder-se-ia considerar também um afastamento de alguma banda desenhada (a de Berliac e outros autores) daquela mais afecta aos veículos e circuitos do entretenimento (a esmagadora maioria da produção de banda desenhada). E Playground pertenceria a esse grupo.

O outro ponto terá a ver com o suposto “naturalismo” de Cassavetes. Um dos interesses principais deste era o trabalho dos actores (a formação de Cassevetes era formado como actor, não como realizador), mas Cassavetes não estava interessado em colocar em primeiro plano a própria materialidade do cinema, as suas contradições, a confissão do seu artificialismo. O autor analisa, ainda que brevemente, a questão do realismo enquanto introdução do “real” ou do “quotidiano” em projectos tão díspares quanto as gekigá de Tatsumi, algumas histórias da E.C. Comics (as de Kurtzman, presumimos), a obra de Oesterheld e Pratt. E, muito certeiramente, coloca de lado o tratamento isolado de diálogos quase inconsequentes ou, no campo a imagem, desenhos hiperrealistas ou pseudo-fotográficos, para revelar outro cuidado e atenção: “na banda desenhada [cómic], então, o realismo não pode passar pelos seus elementos em separado (palavras e imagens), mas antes por a. a combinação de elementos, e b. a justaposição destas combinações: é a forma [diríamos antes “modo”] o que daria como resultado uma experiência mais ou menos real”. Ou seja, regressamos àquela ideia da banda desenhada não como meio de junção de dois códigos, tratamento superficial da hibridez, mas antes numa intersecção produtiva e geradora. No entanto, e é aí que Berliac parece não perseguir a consequência do que prepara, que é o facto de ser o próprio modo (de combinação, a aliança, as opções e os resultados “textuais” o que vai criar o real. E isso permite a que haja uma larga escolha de estratégias nessa criação, desde o suposto naturalismo despojado de Cassavetes, aos abruptos e desconcertantes artificialismos de Godard, passando pelo humor e dúvidas de Moretti, ou a austeridade plúmbea de Béla Tarr… E, no campo da banda desenhada, o isolamento silencioso das personagens de Ware poderão encontrar um eco na verbosidade conflituosa das de Tomine, ou o dinamismo de borracha das de Tatsumi podem rever-se no hieratismo das de Adrian Koch.

No entanto, há uma pista dessa mesma consequência em Playground, e à qual desde logo nos aproximámos nas linhas anteriores. O autor apresenta uma lista em que coloca, de um lado, nomes de realizadores e, do outro, nomes de autores de banda desenhada, tanto num caso como no outro nomes “autorais”, de uma forma muito alargada. Essa lista encontra-se rasurada (aliás, Berliac integra os aspectos materiais do seu fazer o mais visíveis possíveis, não impedindo que do visível artificialismo do fazer possa emergir um sentir genuíno das suas personagens ou ambientes), recordando como no título uma hesitação, ou uma reconsideração do pensamento, mas deixando-o apresentável à mesma. Como ler estas hesitações? Servirá para que entendamos a “evolução” do autor em relação a um ponto particular? Será que serve para que aceitemos aquela visão rasurada como um ponto de vista ultrapassado, errado, que devemos abandonar também? Mas porque revelá-lo então? Talvez possamos ver essas ideias como algo que o autor deseja que consideremos, que pensemos naquelas questões, mas com a consciente decisão de que nada é definitivo, que apenas pode servir de ponto de partida para começar a elaborar melhor as nossas questões, e não crermos em respostas finais de qualquer espécie.

Nessa lista, Orson Welles surge equiparado a Will Eisner, Fritz Lang a Alberto Breccia, Cronenberg a Charles Burns, Pasolini a Crepax, Kurosawa a Senpei Shirato, Imamura a Tatsumi, Oliver Reed a Caniff, etc. As junções de Woody Allen e Charles Schulz, Gus Van Sant e Jeff Lemire, Todd Solondz e Daniel Clowes estão ainda mais rasuradas, quase ao ponto da ilegibilidade, como se o “arrependimento” fosse ainda mais intenso, ou o repensar desejasse anular sequer essa ideia primeira.

Isto levaria de imediato a discussões, mas superficiais. Por exemplo, por que razão se equiparariam realizadores e artistas italianos ou japoneses entre si, em vez de cruzamentos mais internacionalizados, ou “unidades cronológicas”, como aquela entre Reed e Caniff, Welles e Eisner, Mélies e McKay, os Lumière e Töpffer, e não considerações transhistóricas (há uma décalage nesses pares, mas a longo prazo, esbatem-se as décadas)? Mas a junção de Tarkovsky e Vicent Fortemps, Béla Tarr e Andrea Bruno, Herzog e Battaglia já aponta a uma mais intensa e estimulante passagem entre um meio e outro que se desliga de nacionalidades, tempos ou mesmo semelhanças superficiais e vai a níveis matéricos mais profundos. Por hipótese, e respectivamente a esses três pares, uma certa consideração do tempo enquanto fluido lento, uma busca por imagens austeras cobertas com o pó da humanidade, e uma construção de um mundo áspero. Se bem que podemos encontrar aqui nomes que parecem trabalhar em pólos opostos do “mercado” ou das linguagens internas à banda desenhada ou outras estruturas conceptuais (p. ex., David Lapham vs. Fortemps, Eisner vs. Crepax, McKay vs. Battaglia), todos eles poderão, repetimos, ser agregados enquanto autores que desenvolveram linguagens altamente reconhecidas quer em termos formais, figurativos, composicionais quer mesmo no que diz respeito às narrativas, à gestão da linguagem emocional das suas personagens, e até mesmo ao espaço que ocupam na história do seu meio de eleição.

E tal como os nomes dos realizadores arrolados, todos esses nomes de artistas da banda desenhada, de uma forma ou outra tentaram e conseguiram libertar-se de uma visão, à época, empedernida do que era permitido criar com esses instrumentos (mesmo que tenham levado a epígonos igualmente empedernidos, ou eles mesmos tenham dado azo a “regras” depois seguidas sem a mesma vitalidade). E não será esse mesmo o fito de Playground, a de criar um pequeno mas brilhante espaço reflexão sobre a necessidade contínua que uma área artística tem de encontrar momentos de despertares sucessivos?
Nota final: agradecimentos ao editor, pelo envio do livro.