4 de outubro de 2013

Battling Boy. Paul Pope (First Second)

Depois de algum tempo sem publicar trabalhos de maior fôlego, Paul Pope regressa com uma saga não apenas com uma espécie de homenagem à banda desenhada de super-heróis que terá lido em criança, como criando um texto que possa ser lido precisamente por crianças. O primeiro termo de comparação que se nos surge é com El heróe, de David Rubin, por beber da mesma matéria genérica (super-heróis), temática (mitologias e contemporaneidade), estilística (hiper-dinamismo, figuração naturalista e expressiva, cores vivas digitais). Mas onde a obra do autor espanhol se permite a uma maior liberdade de representação da violência, da sexualidade e até da moralidade, a de Paul Pope coíbe-se àquele intervalo “permissível” a leitores na idade escolar. (Mais) 

Como dissemos, apetece encontrar em Battling Boy uma homenagem idêntica a todo um imaginário da Marvel e da DC num momento mais recuado da sua história, antes da sua reinvenção pela “maturidade” e um grau semelhante ao de Watchmen no que diz respeito às “versões prismáticas” do que se poderiam chamar arquétipos do género dos super-heróis. Começamos por seguir um herói chamado Haggard West, que terá elementos de Batman, de Rocketeer, de Capitão América, de Homem de Ferro, e de Adam Strange, e de Orion, defensor da cidade de Acropolis, que se encontra sitiada por um exército diverso de criaturas monstruosas, que parecem precisar de raptar crianças para um fim ainda não explícito. Esta cidade partilha alguns elementos com as de uma metrópole norte-americana, mas com pormenores fantasiosos. Depois passamos para uma outra esfera de existência, num espécie de reino superior, uma cidade flutuante, que tanto terá de Valhalla como do satélite da Liga da Justiça (mais propriamente, recorda a cidade New Oa, do Lanterna Verde de Kingdom Come), e onde vivem os deuses. É esse o lar do herói que acompanhamos, sem nome, mas que se assemelha por demais a uma espécie de Thor (ou a um dos inúmeros personagens desenhados por Kirby com capacetes estrambólicos). No entanto, essa cidade panteão não é apenas habitada por deuses de aparência ou origem nórdicas, já que há uma diversidade cultural muito alargada: as personagens todas vão recordando traços das mitologias grega, mexica, assíria, indiana…


A história começa com uma cena intensa de acção na qual o herói West é morto, abrindo um vácuo na defesa da cidade dessa invasão, apesar dele deixar  a sua filha, Aurora (que começa a surgir como uma espécie de Bucky ou Robin). A preocupação dos deuses com este mundo leva a que o herói similar a Thor resolva enviar o seu filho, Battling Boy, para esse mesmo campo de batalha, até por ele acabar de fazer treze anos e, logo, se ver obrigado a cumprir o seu ritual de passagem, a que dão o nome de “Rambling”. O seu sucessivo combate com os monstros por vir assemelhar-se-ão portanto a provas, aos seus Doze Trabalhos, sublinhados pelo pormenores, divertido, da sua colecção de doze t-shirts com animais estampados, dando-lhe acesso ás capacidades desses mesmos animais e totens (aqui há tanto de Animal Man como de Ben Ten como de Hércules, recordando mais uma vez a obra de Rubín citada).

O livro não contém qualquer indicação de que se trata de um primeiro volume (de dois, graças a informações editoriais). Não existe numeração, prefácios, pistas na capa, folha de rosto ou lombada. Caso não se esteja de aviso prévio, poderá dar-se o caso que a leitura se aproxime do fim (sentida pela diminuição gradual do número de páginas) e se aperceba o leitor que nenhuma resolução se aproxima, bem pelo contrário, novos enigmas são mostrados, sobretudo a descoberta que um demónio no fundo do submundo, e por trás da invasão monstruosa, parece conhecer a realidade do supramundo dos deuses. Aliás, servindo de teaser, antes do lançamento do livro, havia surgido um comic book, intitulado The Invincible Haggard West  no. 101, com a indicação dupla de “número final” e anunciando a morte do herói. Ou seja, criava-se a ficção de que esta se trataria de uma personagem famosa, com um grande historial atrás de si, e ao qual acederíamos no preciso momento da sua morte e consequente preparação para “o que vem a seguir”, com Battling Boy a tentar ocupar o seu papel. Tendo em conta que este projecto já era conhecido desde 2007, e a quantidade de material promocional, impressões, posters, capas, um trailer animado, e páginas refeitas circularam, veremos quanto tempo distará até à sua conclusão.

Nessa sua estratégia, Battling Boy está muito próximo dos vários imaginários criados por títulos do shonen mangá (até o público coincidirá), em que o primeiro episódio surge com centenas de páginas (um pouco mais de 200), e o foco é sobretudo o “crescimento” da personagem principal, um rapazinho destemido, mas ao mesmo tempo inseguro e pouco familiarizado com o universo em que acaba de ser lançado… As afinidades de Pope com a mangá já vem de longe, como se sabe, desde o seu trabalho na Kodansha, mas há aqui, sobretudo pelo trabalho de cor digital de Hilary Sycamore (o nome de Nathan Schreiber circulava ao início, mas desapareceu do livro), uma relação equidistante com a banda desenhada europeia. Os traços de Pope continuam no seu nervosismo cinético e fluidez de linhas excessivas, que dão uma grande textura e peso aos tecidos, paisagens urbanas e outras, corpos, muito próximo de Jill Thompson, corroborado pelo trabalho competente, suave e “claro” de Sycamore (que apenas usa gradientes nas expansões de solo e céu, tirando antes partido de muitas cores planas distribuídas por objectos diferenciados), mas mantendo a elegância e beleza dos desenhos de Pope. Na verdade, se contrastarmos os desenhos originais e a versão colorida, vemos que se mantêm as linhas, e o género “exige” a cor, mas ganharia outra dimensão sem ela; essas linhas têm peso suficiente. No entanto, se  a composição é relativamente convencional, ele procura efeitos de distensão do tempo através do uso de longas sequências para representar cenas de acção, ou splash pages e double splash pages para momentos de maior impacto, vinhetas sem texto, ou balões curtos e diálogos distribuídos ao longo de páginas, acelerando a leitura, etc., tudo estratégias mais típicas da mangá. Sobretudo a shonen, como se disse.

Dissemos acima que Battling Boy remeteria para um momento anterior à conquista da dita “maturidade” no género dos super-heróis norte-americanos, mas esta afirmação precisa de ser temperada, ou melhor, o entendimento do que significa “maturidade” tem de ser ponderado. Afinal de contas, ela diz apenas respeito, na maior parte das vezes, às mesmas esferas da violência e sexualidade, simplesmente tornadas explícitas - se Batman matava nas primeiras histórias, e o Super-homem era um bruto, agora já vemos heróis a espalhar sangue de modo gore; se a tensão sexual foi sempre algo mitigado ou simbolizado, agora temos cenas de sexo ou pelo menos um bacoco erotismo (heterossexual, claro) escarrapachado na cara. De Watchmen, são raras as obras ou autores que tenham herdado as suas implicações políticas ou as preocupações de compreender o todo social, ou um qualquer equilíbrio de representação dos papéis societais. A maioria da produção é, a um só tempo, para os adultos e leitores maturos uma desilusão (a menos que ainda se cultive uma abordagem arrested development e de fanatismos algo básicos, o que não tem nenhum mal em si, mas é bastante revelador da tal “maturidade”), e para os leitores mais jovens incompreensível e desinteressante. Há em quase todos os estudos demográficos uma constante - nos mercados em que não apenas existe um mercado propriamente dito, com alguma diversidade, como dados para com eles fazer estudos sustentados, já que em Portugal nem uma coisa nem outra, apenas “impressões” - em encontrar mais raparigas a ler mangá do que banda desenhada de super-heróis (e mesmo europeia), e mais adolescentes de ambos os sexos interessados em títulos japoneses do que de outras paragens, graças ao tipo de cultura que implicam (de relações em grupo, canais de distribuição e troca de ideias, etc.) e o impacto emocional que esses mesmos títulos acarretam, em detrimento dos outros, mais focados em “acções” e “eventos”. Aliás, a história é relativamente pública. Pope queria fazer um projecto para todas as ideias com Kamandi, a personagem de Kirby na DC, mas o editor recusou, dizendo que trabalhavam para um público adulto. Essa recusa colocou-o num caminho diferente, e, francamente, mais perto das suas forças (independentemente de Batman: Year 100 ter preparado o terreno).


Paul Pope consegue destilar todos os aspectos mais positivos destes pólos de produção - diríamos o imaginário norte-americano dos super-heróis, o dinamismo e envolvimento emocional da mangá shonen, e a carga visual da bd europeia - para criar um título descomprometido, divertido, legível e bem-disposto. Se nos recordará coisas como Captain Marvel/Shazam e Kamandi (uma fonte, como vimos) e Scott Pilgrim e King City (companheiros destes “campos misturados”), está mais ciente da cultura contemporânea em que se insere do que o primeiro e é conduzido a um público mais jovem que o segundo. Em inglês há uma expressão muito curiosa para significar o esforço máximo que se pode fazer para que algo tenha sucesso, “pull out all the stops”. Literalmente, esses “stops” referem-se aos puxadores de um órgão (o instrumento musical), os quais, se puxados, permitem uma maior massa de som, ou seja, o volume ao máximo. De facto, Paul Pope parece ter feito uma lista exaustiva de toda a espécie de clichés, mecanismos narrativos, tipos de herói (e parafernália adjunta), gadgets, problemas, distribuição de papéis e personagens, ideias fabulosas para vilões, mesmo que bebendo de todas as mitologias e imaginários possíveis, poses dramáticas, o anúncio do ataque (aquele tropo das personagens gritarem o seu poder ou modo de ataque, antes de o fazerem), e mesmo uma série de frases feitas. E, claro, o toque especial de Pope em ser atento ora para culturas novas em expansão nos EUA (futebol de rua) ora para toda uma massa de objectos cool (um carro vintage, uma arma de plasma que parece uma lâmpada, salas ocultas dentro de salas ocultas, arquitectura moderna, padrões decorativos dos aborígenes da costa norte do pacífico, etc.). Como disse um dos leitores deste livro, Paul Pope cria mesmo um título "Bam! Zzak! Kablam! Pop!"

A oferta da First Second é de uma grande diversidade, mas se tivéssemos que encontrar algum descritivo seria aquele cliché de “divertimento salutar” ou “delectare et docere”. Quer dizer, em primeiro lugar, há uma concentração particular em trabalhos dirigidos a um público mais jovem, nalguns casos crianças, noutros adolescentes, mas sem jamais isso significar um mínimo denominador comum, e no interior de uma economia de géneros e representações equilibradas. Adicionalmente, veja-se a quantidade Na verdade, Battling Boy até acaba por tender mais para convenções dos super-heróis, mas para que depois permita esta tal exploração normalizadora. Aliás, as funções pedagógicas são claríssimas na forma como as relações entre pais e filhos são mostradas: retrospectivamente, aquela entre Haggard West e Aurora, e em acção, aquela entre o guerreiro e o seu filho Battling Boy. Se bem que todo o livro se centre nesta personagem, e na forma como ele terá que assumir as suas responsabilidades e ganhar uma total autonomia face ao seu pai, mas uma autonomia que viva da sua confiança nos outros, essa “lição de vida” e crescimento estão desde logo assegurados na narrativa - a parte de docere de Battling Boy e de toda mangá shonen, enfim. Será muito interessante de facto - veremos como é o desenvolvimento - a relação entre a filha de Haggard West, Aurora (espécie de Robin, Mathilda de Léon) e Battling Boy. [A qual, entretanto, teve direito a um spin-off]

Mas que o delectare é fortíssimo, não restam dúvidas.
Nota final: agradecimentos à editora pelo envio do livro (e informações), neste caso uma “advanced copy” de um título que é lançado publicamente na próxima semana, ao mesmo tempo que a versão francesa (Dargaud).

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