28 de maio de 2013

Sob o signo de Hellblazer 2.

Identificação? O próprio termo “identificação” - palavra-chave do tal inquérito e estudo em que participámos - é de uma complexidade extrema, a qual apenas aumenta por surgir mascarada por uma palavra que parece ser inteligível de um modo corrente. No entanto, se tivermos em conta as acepções que ganha em diferentes contextos disciplinares, veremos como pode ser algo de bem diverso no seu uso e que não permite que se confunda entre os campos de saber. Não deixa de ser algo temerário querermos, aqui, num par de parágrafos, expor esse assunto, mas esta não é mais do que uma tentativa heurística e que limpa o terreno para avançarmos até onde pudermos (o estudo citado, por exemplo, não explicita o que significa esse termo, o que poderá levar a condições de resposta, pelos participantes, muito díspares entre si). (Mais)

Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que existe uma distinção marcante entre a “identificação psicológica” e a “identificação semiótica”. No artigo “Revealing Traces: A New Theory of Graphic Enunciation” (in The Language of Comics: Words and Image, 2007), Jan Baetens torna essa distinção claríssima, destrinçando, para mais, os processos de identificação primária e secundária de cada campo. Correndo o risco de simplificar em demasia através de termos sucintos, eis o que se poderia resumir dessa argumentação: 1. na psicanálise, a identificação primária é o reconhecimento do si enquanto uma entidade autónoma, e a secundária relaciona-se com a topografia do complexo de Édipo, a tripartição id-ego-superego e a identificação no famoso psico-drama (independentemente das constantes e resolutas críticas a esses sistema, e mesmo tendo em conta as transformações que se operaram nos próprios escritos de Freud, esse edifício mantém-se nas suas linhas gerais); 2, na semiótica, a identificação primária é a assunção do ponto de vista omnisciente do aparato que dá a ver o mundo ficcional (se no cinema se pode indicar a câmara, na banda desenhada, poder-se-á apontar o meganarrador ou focalizador), e a secundária é a proximidade maior a uma personagem em detrimento de outra (as mais das vezes, claro, essa identificação é feita em relação aos protagonistas, uma vez que aparecem mais vezes, as acções relacionam-se sobretudo com eles, é deles que partem as principais decisões diegéticas, etc.).

Portanto, em termos psicológicos, isto é, numa acepção restrita a esse campo, a identificação é entendida como a assimilação de aspectos de um outro sujeito, o que, de resto, é parte intrínseca do processo de constituição da própria personalidade. Se existe um seu sentido semântico transitivo, de “identificar algo”, como ocorre, para Freud, no trabalho do sonho – quando se identifica um objecto como representando uma categoria ou classe de objectos – existe essoutro, reflexivo, mais vincado, que tem a ver com a identificação do si com um outro, o que pode envolver outros conceitos, da empatia à incorporação e projecção, por exemplo, mas com os quais não se confunde, antes permitindo uma distinção mais específica, na construção teórica da psicanálise. Isto ainda se complexifica com o desdobramento desse processo na identificação do si com o outro, ou do outro com o si, o que é diferente. Este processo pode ou não incluir – e é muito difícil numa sociedade como a nossa que não o faça – personalidades fictícias. Seja como for, são esses processos que podem levar a que imitemos outras pessoas em aspectos que nem notamos ou a passar a interpretar as outras pessoas de acordo com ideias que temos delas.

Numa outra perspectiva, um outro artigo de Jonathan Cohen, intitulado “Defining Identification: A Theoretical Look at the Identification of Audiences With Media Characters” (Mass Communication & Society, 4.3, 2001), no qual, apesar do que se depreende, o autor parte de ambas as esferas disciplinares – a semiótica e a psicanálise – , Cohen providencia instrumentos muito específicos. Para além de partir do mesmo pressuposto de que o processo de identificação psicológica faz parte do desenvolvimento natural das pessoas, Cohen baseia-se em Bruno Bettelheim para entender esse fenómeno, acima de tudo, como a partilha de uma perspectiva do outro, internalizando a sua visão do mundo, ou, nas palavras do articulista, “a oportunidade para uma experiência empática [vicarious]”. Isso leva à tal distinção entre as identificações semiótica e psicanalítica, que no artigo de Baetens é muito clara. Cohen tenta estipular as suas ideias, afirmando que a “identificação é uma resposta à comunicação de outros que é marcada pela internalização de uma perspectiva, em vez que de um processo de projecção da nossa própria identidade noutra pessoa ou noutro objecto.” Não é bem a mesma coisa que no caso de Baetens. Se o teórico belga faz mesmo uma destrinça clara entre a assunção psicológica de características do outro em nós mesmos e a distribuição da atenção actancial por uma personagem na economia de uma narrativa, Cohen pretende antes apontar para o exercício cognitivo em que como suspendemos a nossa própria personalidade para partilhar algumas das emoções dos protagonistas dos textos que seguimos.

Cohen distingue a identificação de outros processos psicológicos tais como a interacção parassocial, a afinidade ou a imitação. Os elementos que definem a identificação podem ser apresentados do seguinte modo sumário: o seu processo é de natureza emocional e cognitiva, alterando o estado de consciência; a sua base é a compreensão e a empatia; trata-se de um posicionamento (nosso) enquanto personagem (e, mais importante, durante o acto de recepção do texto); implica uma absorção e uma libertação emocional no texto. O autor deste estudo deixa em aberto os caminhos que ainda são necessários estudar, mas admite que o estudo da tecnologia, da produção textual, do contexto de recepção e até mesmo os perfis do público particular, uma vez que todas essas dimensões interagem nesta reacção com as personagens. Não é estranho compreendermos que o tipo de imersão no cinema é de uma intensidade muito particular em relação à banda desenhada e/ou à literatura (haverá sempre quem dirá que a sua entrega é maior nas letras do que cinema, mas o próprio aparato tecnológico desta segunda forma de arte fala a um número maior de sentidos físicos do que no caso dos livros, e a relação manipulatória do tempo de fruição é também menos controlável pelo espectador, ceteris paribus).

É à luz da complexidade deste fenómeno, das diferenças que essa palavra significa conforme estamos a descrever uma realidade psicológica ou uma tensão e gestão semiótica, que torna insustentável - ainda que um bom ponto de partida para a sua discussão - a argumentação utilizada por Scott McCloud em Understanding Comics (no segundo capítulo), tantas vezes repetida sem ponderação, especificação ou crítica, como se se tratasse de uma ideia óbvia, transparente, ou mesmo um dogma, por outros autores, inclusive os académicos.

Então, o que devemos entender quando dizemos que “nos identificamos com uma personagem” (o que é bem diferente de nos identificarmos com uma pessoal real, com a qual interagimos de modos bem diversos e mais imersivos)? Possivelmente, estaremos a querer dar a entender que uma determinada personagem se torna imaginativamente mais interessante do que outra, independentemente do seu papel actancial numa narrativa – isto é, o “tempo” que ocupa na economia da narrativa, o número de relações que estabelece com as restantes personagens, a importância das suas acções e atitudes para com a causalidade da diegese, etc. As mais das vezes, essa identificação recairá no ou na protagonista, claro está, mas pode haver casos muito distintos, que se prenderão com o contexto sociocultural do receptor, as circunstâncias históricas da sua leitura ou até mesmo a predisposição psicológica de cada um (daí que se possa achar Darth Vader ou Skeletor muito mais sedutor do que Luke Skywalker ou He-Man, por hipótese, e se imitem/assumam os papéis dos “vilões” nas brincadeiras infantis, e não dos “heróis”). Esse interesse conduzirá então a uma sujeição, por assim dizer, da consciência da própria identidade para que se experiencie o mundo (ficcional) através da perspectiva de outro (a personagem). Logo, a identificação mais rapidamente será com Mortimer do que com Septimus ou Ahmed em Blake & Mortimer e com John Constantine do que com Astra ou Chas ou Kit em Hellblazer.
E é essa identificação, essa escolha, que nos faz decidir que uma dada personagem é “mal” representada nas mãos de um (novo) autor… Sobre isso será o próximo post. Parte 3.

Sem comentários: