31 de maio de 2013

Sob o signo de Hellblazer 4.

Horror. Se podemos descrever o horror enquanto categoria que compreende vários meios (o cinema, a literatura, a banda desenhada, e até a música – escute-se o fim de Bucketheadland 2 no escuro) e sub-géneros, o que os unificará será menos um dado número de figuras, de imagens ou de estruturas narrativas, que se verificam ou não, do que um arranjo delas conducente a um efeito emocional determinado. A história, complexa, do (supra-)género é relativamente recente, sendo fruto de desenvolvimentos na modernidade, e encontra-se em Le Fanu, por exemplo, um dos mais importantes percursores para o horror moderno, a saber, a inscrição de acontecimentos sobrenaturais num mundo ordinário, onde personagens vulgares padecem, muitas vezes psicologicamente, dos acontecimentos que os enclausuram. O tratamento mais estruturado que conhecemos do tema é aquele proporcionado pelo filósofo norte-americano Noël Carroll em The Philosophy of Horror Or, Paradoxes of the Heart (Routledge 1990), que tenta pelo seu tratamento abarcar o máximo de textos que, pre-teoricamente, a maioria de nós incluiria nessa categoria (além do mais, o que Carroll tem a dizer sobre identificação é também muito útil; muito simplesmente, não existe “identificação” propriamente dita, mas uma assimilação parcial de ponto de vista, compreensão, simpatia, etc.). Apesar de se poder criticá-lo (e há quem o faça) por seguir por vezes, quase dogmaticamente, os princípios do senso comum, em vez de procurar outras intensidades, é a partir das suas lições, sobretudo, que estabeleceremos os nossos instrumentos. Independentemente das formas categóricas que Carroll constrói, ou de colocar demasiado a tónica na figura do “monstro” (que ele define de modo essencialista), há muito para aprender nos seus escritos. (Mais)

29 de maio de 2013

Sob o signo de Hellblazer 3.

Falhas de caracterização. É portanto graças à existência dos mecanismos de identificação - por um lado, psicológica, que pode levar à imitação de comportamentos  ou de aspectos físicos, por outro, semiótico, que leva a opções no interior das histórias - e de investimento emocional que certas personagens se tornam mais importantes do que outras, e se nutrem sentimentos que ultrapassam a mera fruição dos textos. Tudo depois depende do resto da vida pessoal de cada leitor, em que as frustrações podem ou não encontrar lugar na forma como se relacionam com estes universos ficcionais, mas de uma maneira ou outra, elas ditam a própria leitura dos novos textos. Para mais, tendo em conta os contornos típicos desta cultura popular, sobretudo a sua serialização a longo prazo – conhecendo Blake e Mortimer desde a infância, acompanhando mensalmente as aventuras de uma personagem como Constantine há vinte anos – é inevitável que esse processo encontra formas de expressão. (Mais)

28 de maio de 2013

Sob o signo de Hellblazer 2.

Identificação? O próprio termo “identificação” - palavra-chave do tal inquérito e estudo em que participámos - é de uma complexidade extrema, a qual apenas aumenta por surgir mascarada por uma palavra que parece ser inteligível de um modo corrente. No entanto, se tivermos em conta as acepções que ganha em diferentes contextos disciplinares, veremos como pode ser algo de bem diverso no seu uso e que não permite que se confunda entre os campos de saber. Não deixa de ser algo temerário querermos, aqui, num par de parágrafos, expor esse assunto, mas esta não é mais do que uma tentativa heurística e que limpa o terreno para avançarmos até onde pudermos (o estudo citado, por exemplo, não explicita o que significa esse termo, o que poderá levar a condições de resposta, pelos participantes, muito díspares entre si). (Mais)

27 de maio de 2013

Sob o signo de Hellblazer 1.

Introdução. A razão deste artigo, que terá várias partes a publicar nos próximos dias, nasce de três circunstâncias convergentes, mas que levaram à lavra das considerações que agora se apresentam, e que é menos uma abordagem crítica monográfica do que uma espécie de ensaio de contornos livres. Há pouco tempo, fomos convidados a participar de um inquérito que estuda a questão da identificação com personagens pela parte de leitores de longa data, de séries mainstream (pedia-se que se acompanhasse algo há pelo menos mais de dez anos), e a forma como respondíamos àquilo que nós mesmos entenderíamos por “falhas” na representação dessas mesmas personagens. Ora, pretendendo auscultar, de uma forma muito ligeira, as diferenças com que uma série europeia se distanciaria de uma norte-americana, elegemos Blake & Mortimer e Hellblazer. O segundo elemento é, como se sabe, o final desta segunda série com o número 300, significando, de certa forma, ao mesmo tempo, o fim da experiência Vertigo. O terceiro é uma questão muito pertinente colocada por Teresa Câmara Pestana a propósito da nossa abordagem a Urlo: funcionará o horror na banda desenhada? São estas três linhas e circunstâncias que seguem no novelo seguinte. (Mais)

24 de maio de 2013

Rugas. Paco Roca (Contraponto)

Não sendo um livro propriamente extraordinário, a todos os níveis, Rugas é um contributo decisivo, sobretudo no panorama editorial português actual, para a crescente diversidade de oferta de banda desenhada no que diz respeito a géneros, temas, e humores, fazendo-a desprender-se cada vez mais de preconceitos e generalizações que ainda a enclausuram numa ideia totalizante. (Mais) 

23 de maio de 2013

A menina de vermelho. Aaron Frisch e Roberto Innocenti (Kalandraka)

Ou, A melancolia explicada aos mais pequenos. 3.
A reescrita dos contos ditos tradicionais não é de forma alguma uma abordagem nova, já que ao longo da existência humana temas, estruturas e mesmo contos com personagens específicas têm sido alvo de reinvenções sucessivas. Afinal de contas, é sabido como os contos ditos tradicionais, recolhidos por Perrault, os Grimm, Garrett, são eles mesmos como que corruptelas de mitos antigos através das roupagens dos seus pontos específicos localizados no tempo e no espaço. E os autores de literatura infantil têm encontrado pasto suficiente neles para procederem a transformações que deixam ao mesmo tempo ver a história antiga e uma nova direcção. O Capuchinho Vermelho, pela razão da sua estrutura simples (dizemos nós?), a sua moralidade directa, tem-se prestado particularmente a essas reinvenções, quer no próprio campo da literatura infantil, inclusive ou particularmente a ilustrada (e Richard Câmara, por exemplo, elege-a como obsessão), quer noutros, da literatura ao cinema, do bailado às artes visuais. Esta versão, do recentemente falecido A. Frisch e de uma já grande referência da ilustração, R. Innocenti, inscreve-se nessa produção infinita (entre nós, surgiu ainda uma outra versão, Capuz e o Lobo, por T. Salgueiro e J. M. Saraiva, de que esperamos falar em breve). (Mais) 

22 de maio de 2013

Aves. M. J. Díaz Garrido e D. D. Álvarez Hernández (Kalandraka)

Ou, A melancolia explicada aos mais pequenos. 2.
Logo nas páginas iniciais de Austerlitz, escreve Sebald que “ao contrário das aves que constroem durante séculos sempre o mesmo ninho, tendemos a impelir os nossos empreendimentos para fora dos limites do razoável”. Aves é um livro que sonda precisamente a passagem desses limites, mostrando aves que, como os homens, querem construir ninhos desarrazoados.
Aves é um livro que tanto tira partido de uma tradição milenar, desde Esopo, como tenta auscultar um caminho diferente no seu interior. São os seres humanos arvorados a aves, nesta metáfora, ou as aves reduzidas a seres humanos? E, se apontamos a possibilidade de uma hierarquia logo à partida, em que factor a construímos? Sobre os horizontes mais largos a que porventura o voo permite? Mas porque não compreender antes a verticalidade biológica do homem e a sua visão binocular como base de uma indómita curiosidade e poder em alterar o seu ambiente? A frase de Sebald poderia encontrar dois confins, que a corrigirão ligeiramente: por um lado, no estudo sociobiológico dos animais e na constatação de que alguns deles adaptam e usam tecnologias (pássaros que juntam pontas de cigarros nos ninhos para os desinfectar, corvos que quebram nozes nas estradas), por outro, na franca confirmação de que a sociedade humana jamais poderia expandir-se sem o controlo do ambiente, sem a progressiva transformação da Natureza em Cultura (seguindo uma ideia de Castells), a qual com certeza com as suas consequências intempestivas e funestas.
Na verdade, o que Aves apresenta é uma, a um só tempo, complexa e simples analogia, no seu sentido de figura de estilo, elegendo cada elemento que compõem um termo e buscando os elementos condizentes num outro termo. No caso presente, não são somente as aves e os humanos, mas uma muito particular e desabrida ânsia dos segundos comparadas aos papéis obrigatoriamente simbólicos explorados nas primeiras. Daí que surjam temas sérios e reais neste livro, da guerra à escravatura, dos excessos da moda aos abusos da ciência, à angústia existencial menos ancorada num só factor. Daí que se compreenda, também, que a primeira redução operada, a que aludimos acima, seja a negação daquela qualidade que define os pássaros – mesmo no caso daqueles que a não possuem, como as galinhas, avestruzes ou pinguins – que é o voo. O voo surge como a metáfora dos sonhos humanos, mas negando-o àquelas criaturas a quem lhes pertence por natureza, a imagem que surge é a de uma “coisa” (não haverá melhor termo) que é possível conquistar, que se encontra no fim de um qualquer gesto e esforço simples, mas que permanece sempre fora do alcance pela distracção criada por outras prioridades. Aves é assim é um livro muito sério, e que levará os seus leitores mais jovens a construírem uma capacidade de reflexão para ultrapassar a melancolia.
O livro é composto de doze imensos desenhos, cada um ocupando duas páginas, e não apresentam uma sequência ou uma concentração num mesmo número de personagens. Desenhados a grafite somente, quase se poderia imaginar estarmos perante uma série de quadros em grisaille que constroem um retrato de uma sociedade: hipotética, a das aves, real, a dos humanos. A escolha de vários pássaros (mochos, patos, tucanos, rouxinóis, pardais, melros, colibris, corujas, etc.) cria uma enciclopédia visual que se corroborará numa compreensão das diferenças sociais - recordando, na contemporaneidade, o trabalho de A. Browne com os seus símios -, oferecendo-lhe uma dimensão pedagógica, sem que ela se torne um escolho ao livro. Mesmo não alterando quase nada, através da simplificação gráfica ou de uma qualquer estilização, os rostos das aves, os autores tiram partido dos corpos humanos das suas personagens para instilar uma expressividade que informa esses mesmos rostos das aves, criando claríssimas atitudes que os leitores compreenderão. Na verdade, existem pequenas intervenções nos rostos, dando-lhes esses traços de movimento expressivo tão vivos nos seres humanos (e símios): um papagaio sorrindo subtilmente, uma família feliz de canários, trocando olhares cúmplices, um desencanto no olhar de um falcão… E a representação de objectos e situações que se poderão colocar em momentos históricos mais ou menos distantes, ou indistintos, permite a que se compreenda esta procissão de figuras como ainda mais representantes de uma certa “evolução social”, que nos pertence.
Aves não conta uma história, nem diverte, nem acalenta lições simplistas. É um livro que mostra, de forma directa e crua, e por isso honesta, e por isso mais importante que qualquer outra estratégia, a ultrapassagem dos limites da razoabilidade de que Sebald falava, na citação, e que pede que olhemos, com mais atenção, para o ninho existente.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

21 de maio de 2013

A coisa perdida e A árvore vermelha. Shaun Tan (Kalandraka)

Ou, A melancolia explicada aos mais pequenos. 1.
Há um entusiasmo em torno da obra de Shaun Tan que nos obriga a tentar perceber onde residirá, e a sua razão de ser. Estes dois livros têm características comuns que explicam uma das dimensões da sua valorização (tendo sido mesmo alvo de edição num só volume, com uma terceira história, em inglês), e que se pode isolar enquanto o seu afecto principal. Ambas as histórias são descritíveis como melancólicas, criando desde logo um espaço bem diverso daquele garantido pela esmagadora maioria da produção do género, os livros ilustrados infantis, usualmente presa a princípios pedagógicos ou de ideias preconcebidas e policiadas do que as crianças devem ter acesso. Contudo, se cremos que as crianças são seres individuados, emocionalmente completos e com todas as potencialidades do ser humano, então elas têm em si todo o espectro da existência humana, e não há razão para sonegar-lhes o contacto com as inquirições permitidas pela ficção e pela poesia. É necessário que, na sua leitura com os leitores mais novos, haja mesmo uma preocupação redobrada em dar a entender estes sentimentos, e estes livros são um caminho óptimo. (Mais) 

17 de maio de 2013

Teaching Comics and Graphic Narratives. Lan Dong, ed. (McFarland)

Ainda que a editora da Universidade do Mississippi continue, a nosso ver, a liderar enquanto plataforma da edição de trabalho académico com contornos significativos e que  alargam o enquadramento teórico, histórico e crítico do estudo da banda desenhada, a McFarland continua o seu projecto igualmente interessante, de toda uma série de instrumentos de trabalho, talvez com preocupações mais imediatamente pragmáticas, como a sala de aula. No panorama português, não podemos falar de nenhum tipo de diversidade de oferta no ensino da banda desenhada, logo nem sequer importa fazer comparações. Qualquer alerta à bibliografia crescente é ainda uma necessidade premente.
Teaching Comics and Graphic Narratives. Essays on Theory, Strategy and Practice é um livro que, de certa forma, pode ser contrastado ou comparado com os projectos de Ann Miller, de Duncan e Smith, ou de Vergueiro e Ramos, dos quais falámos, mas que se integra numa bibliografia mais alargada que não é possível cobrir cabalmente. O aspecto diferenciador e significativo é que este livro não apresenta tanto projectos ou modelos abstractos de pedagogias, mas experiências levadas a cabo, efectivamente, em ambientes escolares. Todas as “lições” apresentadas atravessaram a sua exposição, teste, adaptação, e avaliação com grupos de estudantes. E a maioria dos ensaístas não se coíbe de confessar os pontos mais fracos, aqueles em que enfrentaram maiores problemas, obstáculos ou resistências, aqueles que obrigaram a desvios ou improvisações, as facetas menos aptas à elaboração final, onde e quando necessária.
Sendo fácil encontrar o índice do livro online, expliquemos somente que se reúnem aqui dezanove artigos, dispostos pelas seguintes secções: 1. Estudos Americanos, 2. Estudos Étnicos, 3. Estudos Femininos, 4. Estudos Culturais, 5. Estudos de Género [Literário] e 6. Composição, Retórica e Comunicação. Neles encontraremos muitos e diversos instrumentos e enquadramentos conceptuais e filosóficos, explorando-se questões de arte e comércio, da literacia visual, de diversidade cultural e de multiculturalismo, assim como questões de black politics ou relativas aos asiático-americanos. Estudos literários, jornalísticos, sobre representação de género e resistência, Trauma Studies e teorias em torno do auto-retrato são matérias igualmente presentes ou entrosadas pela banda desenhada. Quanto aos objectos de estudo, os textos de banda desenhada abordados, compreende-se The Boondocks, Citizen 13660, The Jew of New York, American Born Chinese, La Perdida, Berlin, City of Stones, Aya de Yopougon, as antologias dedicadas ao 11 de Setembro, entre outros títulos e trabalhos, estudados com maior ou menor concentração.
Em termos gerais, os artigos têm uma estrutura e uma camada de debate bastante simples. O fito é menos discutir as teorias em pormenor, do que expor aquilo que cada um dos educadores tentou no seu campo de experiência, como se de uma breve cartografia se tratasse. E partilhando essas estratégias, esperar que elas possam servir de modelo a seguir ou contrastar. Não obstante, existem muitos estudos que aprofundam de maneira crítica as suas metodologias ou conceitos, apresentando estratégias heurísticas e até mesmo “dando o flanco” aos aspectos que se verificaram mais problemáticos ou falhos nas experiências  reais, como vimos. Bebendo de cursos que, aparentemente, foram dados entre 2006 e 2011, temos aqui muita matéria a ser considerada.
Como escreve Christina Meyer no seu texto, “As narrativas gráficas não são somente produtos discursivos daquilo que se poderá chamar os processos de enquadramento e desenquadramento [enframing and deframing] mas também asserções culturais e específicas a uma cultura de períodos históricos diferentes” (61). Logo, o trabalho de contextualização - das obras, dos públicos, das disciplinas, etc. - é levado a cabo com grande rigor e assim se poderá imaginar a sua aplicabilidade.
Algumas das combinações disciplinares são muito estimulantes, ainda (ou precisamente porque) exigem conhecimentos e balanços muito específicos, como a abordagem de Judith Richards e Cynthia M. Williams ao Persepolis de Marjane Satrapi e a obra artística (sobretudo a dimensão fotográfica) da sublime Shirin Neshat, focando no véu enquanto “um item de vestuário dramaticamente sobredeterminado com simbolismos competitivos”, numa citação de Reina Lewis, pg. 130, e no seio de disciplinas intituladas como Escrita de Mulheres Árabes e Muçulmanas. As professoras apontam desde logo à possibilidade de tratar a banda desenhada como um outro objecto cultural qualquer, com as suas especificidades, naturalmente, mas igualmente apta a um verdadeiro diálogo cultural transversal, e não somente como representantes de uma cultura localizada (por hipótese, a “popular”). E se encontramos de quando em vez, nalguns dos ensaios, algumas frases ou ideias instrumentalizadoras da banda desenhada, como se esta servisse para primeira abordagem, mais “fácil”, “imediata” ou “empática”, para chegar a textos mais complexos de literatura propriamente dita (é o caso, ligeiramente, do estudo de Aya, por Susanna Hoeness-Krupsaw), existem outros autores que abordam os textos de banda desenhada em total paridade ou tensão crítica com objectos maioritariamente textuais: são os casos de Edward Brunner, que no seio dos Trauma Studies agrega banda desenhada muito diversa, poesia e prosa, inclusive prosa “ilustrada”, como o romance Extremely Loud e Incredibly Close, de J. S. Foer, e de Adrielle Anna Mitchell, que aborda casos de não-ficção de banda desenhada para estimular várias noções pertencentes ao campo literário.
Outro dos frutos da leitura deste livro são as formas de interpretação geral nas quais a banda desenhada é ainda enquadrada. Muitos autores assumem - baseados nas suas experiências directas, logo, dificilmente refutáveis, mesmo que haja, da nossa parte, um desejo que não fosse assim - que as novas gerações de estudantes têm interesses moldados por toda uma série de culturas visuais necessariamente simplificadas em termos conceptuais, políticos ou de escopo, podendo falar-se de “gerações” MTV, Youtube, dos blockbusters de Hollywood, de vídeo-jogos, e por aí fora. Dessa forma, a banda desenhada surge então (como no caso explícito de Richards e Williams, pg. 131) como um espaço de negociação entre essa mesma cultura e a literatura e as questões conceptuais abordadas. Ou seja, há ainda uma certa ideia de instrumentalização ou de transformação da banda desenhada em ferramenta de primeiro passo, a caminho de um outro nível de proficiência cultural. Perguntamo-nos, porém, se o seu fito seria o abandono da própria banda desenhada enquanto plataforma, ela mesma, de negociação dessas mesmas questões e exigências.
Sem desprimor para qualquer dos ensaios, que têm matéria mais do que suficiente para nos ensinar muitos novos dados, novas perspectivas, ou fazer ponderar os seus instrumentos e metodologias, haverá sempre inclinações particulares que nos fazem fazer escolhas. Um texto que achamos excelente é o de Alexander Starre, que demonstra o que se pode ganhar em eleger como único texto primário uma antologia de banda desenhada. É claro que essa questão apenas se coloca se as circunstâncias a isso forçarem, mas nesse caso, uma antologia poderá fazer despertar não apenas o instrumentário formal e histórico premente aos textos coligidos, como igualmente o que esse mesmo processo de escolha significa em termos editoriais, políticos, de representação, de “canonização”, etc. O título escolhido por Starre, de um universo mais ou menos encurtado, não poderia ser mais perfeito: a McSweeney’s no. 13, a qual “consegue criar uma identidade colectiva significativa” (46), pronta a analisar e servir de ponto de partida para toda uma série de discussões.
Um outro texto excelente é o de Joshua Kavaloski, que estuda a “história multiperspectival” em Berlin, City of Stones, de Jason Lutes: estudando a forma como este projecto reúne características, ou melhor, “técnicas e estratégias” oriundas do modernismo literário, sobretudo anglófono (uma vez que os grandes nomes da literatura correspondente alemã da época, como Musil, Broch, Rilke, Kafka, Döblin e Mann, preferem concentrar-se num protagonista central), o autor identifica os modos como Lutes emprega o dinamismo (elegendo Walter Ruttman como modelo), a montagem (Joyce, Döblin) e os estados de consciência (Woolf, Joyce, Faulkner), assim como a polifonia estudada em Dostoevsky por Bakhtin (v. sobretudo 156 e ss.) para demonstrar como esta “graphic novel está menos interessada com a história em si mesma do que nas repercussões dela em vidas individuais”, isto é, das variadas personagens que habitam esse livro (153). Desta forma, como ocorre noutros textos, a nossa apreciação das obras reforçam-se, e contribui-se assim também para entender uma certa valorização retrospectiva de certos títulos, um corpus de que o livro de Lutes fará parte, decisivamente.
O parágrafo inaugural do estudo de Derek Parker Royal (que continua  o seu estudo em torno dos estereótipos tais como instituídos na banda desenhada, e de uma forma mais matizada e interessante do que julgámos na vez anterior que com esse estudo nos cruzámos) apresenta como que uma espécie de sumário alongado do que a banda desenhada é [o verbo inicial é mesmo “ser”], que não sendo propriamente uma definição, oferece um quadro muito útil ao início desse debate infindo: “A banda desenhada é um texto compósito feito de palavras e imagens que, tomadas em conjunto, podem ter um impacto muito diferente daquele produzido por modos mais tradicionais da narrativa tais como o conto ou o romance. De forma parecida com os filmes, a banda desenhada apoia-se numa linguagem visual que encoraja um tempo de processamento mais imediato no leitor e, ao nível da interpretação, uma troca mais ‘eficiente’ entre autor(es) e público - pelo menos quando comparado com meios puramente baseados na língua. Isto não quer dizer que a banda desenhada seja um meio de narrativa [means of narrative, importante distinção de uma essencialização possível com ‘narrative means‘] (como muitos dos seus detractores quiseram historicamente debater), nem implica que haja uma ausência de ambiguidade de intenções ou de indeterminação no significado das narrativas gráficas. As imagens que servem de ícones referenciais são presas do mesmo tipo de escorregadela semântica que encontramos nos códigos linguísticos, que em si mesmos, na forma de letras e palavras, também funcionam como ícones de significado. Não obstante, há algo de relativamente ‘directo’ na imagem, na sua capacidade em afectar  a reacção dos leitores. As figuras que compõem a banda desenhada têm uma fricção particular em com a realidade que as palavras não têm, revelando várias ideias feitas, predisposições, e preconceitos que os autores e os ilustradores possuirão” (67). Apesar de ser algo desencorajador a aparentemente eterna necessidade de se explicar a roda, este pequeno texto introdutório pode muito bem servir de elemento para discussão num contexto de ensino.
Muitos dos autores apoiam-se em bibliografias mais ou menos confinadas, se bem que em muitos dos casos ela seja sólida e pertinente, sobretudo no que  diz respeito a cada um dos campos específicos do saber. Todavia, torna-se algo cansativo, no que diz respeito à banda desenhada em si, ver repetidas chamadas de apoio ao trabalho de Scott McCloud, ou a Will Eisner, como se o que estes dois artistas escrevessem fosse uma espécie, não diríamos de dogma, mas de conclusão convincente e quase impermeável à revisão. É o que se passa com a insustentável teoria de identificação de McCloud, repetida, ainda que com variações, por Royal, Cong-Huyen e Hong, Knight, etc. Recordemos que essa teoria aponta à ideia de que quanto mais icónica a representação de uma personagem - o rosto simplificado de Tintin, por oposição a desenhos mais realistas - maior será a identificação. Esta noção não se suporta, ao consideramos (com Baetens) a confusão que se está a fazer entre a identificação no seu sentido psicológico, de identificação complicada entre egos e projecções, e a mais simples gestão dos enquadramentos das interpretações cognitivas em curso no processo semiótico da leitura. Não é que McCloud não seja um excelente ponto de entrada para um certo grau de pensamento sobre a banda desenhada, no vazio, mas não pode ser nem tomado como a última palavra nem como uma autoridade em termos teóricos.
O estudo de Starre alerta ainda a questões mediais importantes, palavra essa entendida de acordo com a sua definição por Mark Hansen, “a especificidade das análises preocupadas com a materialidade do meio e dos media em geral” (47). Recordemos que aquela publicação, editada por Chris Ware, se apresenta como um volume em capa dura, com uma capa desdobrável que faz um poster-banda desenhada, do próprio Ware, vem acompanhada de dois livrinhos separáveis (por Ron Regé Jr. e Porcellino), e que agrega nomes históricos como Herriman e Schulz, pilares do underground como Crumb e Spiegelman, dos alternativos como Clowes, os irmãos Hernandez, Lynda Barry, entre tantos outros. Em si mesmo seria uma espécie de dínamo de algumas das questões abordadas por todos os outros capítulos. Mas não todas. E é isso o que é importante neste tipo de projectos: demonstrar como não há nunca nenhum escopo, por mais largo que aparente ser, que não existe metodologia singular, por mais abrangente que ela pareça funcionar, que esgote a atenção que as coisas merecem.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas na internet.

15 de maio de 2013

The Quay Brothers. Into a Metaphysical Playroom. Suzanne Buchan (University of Minnesota Press).

É bem possível que os irmãos Quay sejam os realizadores de cinema de animação que mais fazem atravessar a sua produção fílmica dos territórios relativamente contidos dessa mesma descrição. Outros descritivos, como “de vanguarda”, “artísticos”, etc., também poderiam ser aplicados, e há outros realizadores que partilham com eles essa presença mesclada, como Jan Svakmajer, com quem partilham afinidades profundas mas não uma filiação propriamente dita, ou Walerian Borowczyk, que é a principal referência-choque que instigou os Quay para este mundo (Borowczyk é o autor daquele que pensamos ser um dos mais sublimes filmes de - pouca! - animação, Les jeux des anges). Curiosamente, a primeira exposição que tivemos aos filmes dos Quay foram os curtos vídeos que produziram para a MTV nos anos 1990, e só mais tarde, já num processo de aprendizagem activa da história da animação nos tenhamos apercebido da sua produção; à qual se vêm juntar filmes com actores, anúncios publicitários e outras dimensões do seu trabalho.
Suzanne Buchan é uma investigadora da animação com um forte pendor de filosofia, informada por algum dos pensamento contemporâneo que tem inflectido a estética, e aberto o discurso crítico a dimensões ontológicas para além das do juízo de valor formalista. Este volume é publicado num quadro de apreciação dos Quay mais alargado, que tem na recente exposição do MoMA (com o seu devido catálogo, de que falremos como peça paralela a este livro) um marcadíssimo sinal. “Os filmes dos Quay resistem muitas vezes a classificações sem ambiguidade: pertencem a um domínio do sonho, de um flâneurismo psicotopográfico e da metafísica”, escreve a autora (52). E é no discurso aqui tecido que esse domínio é visitado.
O propósito da autora é, nas suas próprias palavras, “descrever, contextualizar e explicar parâmetros e sistemas cinemáticos, estéticos e técnicos proeminentes que são características singulares do trabalho dos irmãos Quay no cinema de animação e de imagem real [live-action]. A minha análise não sublinha modelos comunicativos, nem se preocupou com os significados ideológicos ou questões de género e ideologia dos filmes, nem os tentou integrar num contínuo geral da prática cinematográfica. O seu foco principal reside na poética implícita da criação de uma criação artística cinematográfica e a forma como o espectador está activamente envolvido na recepção do filme”, ao que acrescenta ainda, “descrever uma poética temática, conceptual e baseada na prática do sistema de estilo dos Quay, tal como ele se encontra agora. No entanto, fiquei presa a uma espécie de círculo hermenêutico. Entreguei-me a uma análise em forma de sinédoque, relacionando partes da prática artística dos Quay em Street of Crocodiles (doravante, SoC) a toda a sua obra, e como o mundo particular desse filme é construído, explorando a sua singularidade e como certas técnicas continuariam a ser refinadas em trabalhos posteriores” (258).
De facto, Street of Crocodiles, possivelmente o filme mais conhecido dos dois realizadores gémeos (e que faz parte do “cânone” estipulado em Annecy das 100 melhores curtas do cinema de animação), é eleito como uma espécie de coração desta obra, que gira em torno dele, numa espiral que ora se afasta ora se aproxima (uma “análise em sinédoque” escreve Buchan, 258), auscultando várias áreas do pensamento, campos de produção, referências, para melhor voltar à obra dos Quay. Se há uma breve dimensão cronológica, biográfica - que dá a conhecer o trabalho que desenvolveram nos domínios da ilustração, do design editorial, da cenografia, etc. - o propósito de Buchan é, sobretudo, o do desenvolvimento de um discurso filosófico possível sobre os interstícios do cinema, do cinema de  animação e de outras realidades. De facto, a relação entre o cinema e a animação não é de todo uma equação totalmente resolvida, e é preciso revisitar todo um historial de teorias (Wells, Stephenson, Bordwell, Deleuze, McLaren, Cholodenko, Pikkov, entre outros) para encontrar diferentes estratégias de definição e descrição, que pode levar à assunção de um campo no outro - “o cinema da animação faz parte do cinema”, ou “o cinema é todo cinema de animação” (tese derradiana de Cholodenko) - ou uma quase total autonomia entre ambos, o que complica desde logo as novas linguagens cinematográficas pós-CGI.
Nesta investigação, A autora recorre a toda e qualquer informação necessária, mesmo privilegiada, pois conhecendo os irmãos Quay pessoalmente, fala das suas visitas aos seus estúdios, ao próprio processo das filmagens (no caso de Institute Benjamenta), e a certos dados de encontro e construção dos bonecos e cenários. Entrevistas variadas, quer dos irmãos quer dos seus colaboradores (produtor, compositores, operador de câmara, director de som, montador, coreógrafos, escritores, etc.), materiais de toda a espécie (rascunhos e esboços, tratamentos de produção, argumentos, livros, discos e referências) são também pasto. No entanto, a autora nunca abusa desses mesmos elementos, ofertando-os de um modo claro ao leitor para que esta ou este possa re-utilizá-los de alguma forma em futuros desenvolvimentos, ou em contra-argumentações eventuais (começando pela própria pertinência em recorrer a tais elementos para construir um discurso crítico sobre a obra dos Quay).
À autora importa também a correcção a uma ideia muitas vezes repetida, quase de forma banal, mas que não é sustentável numa discussão mais modelada, a saber, a de que a experiência fílmica seria “passiva”. Cognitivamente, isso não é de todo verdade, e o entendimento de um filme exige, por um lado, a “compreensão” (Buchan segue as  lições do académico de cinema David Bordwell, mas Noël Carrol também discute esta “actividade cognitiva” nos seus escritos sobre cinema ou A Philosophy of Mass Art), que se centra nos significados manifestos do texto fílmico, e por outro, a “interpretação”, que busca revelar significados menos óbvios, ocultos (cf. pg. 93). Ora é nesse nexo que Buchan deseja empregar a noção de “apreensão”, a qual é entendida igualmente como condição dessa actividade, tratando-se de “um alcance de algo com o intelecto, mas que também significa um alcance sem a afirmação dessa intelecção e uma antecipação de que aquilo que pode vir pode não ser aquilo que se esperava” (idem). É, portanto, uma forma de compreensão que não passa necessariamente pela razão verbalizável, que ultrapassam a nossa experiência sensível, racional e fenomenal do mundo, apontando à possibilidade de uma impossibilidade de explicação total. É o espaço reservado, nas lições de Victoria Nelson (The Secret Life of Puppets), para o fantástico no nosso presente enquadramento racional pós-Iluminista, um espaço de “crença” para os “não-crentes”.
É esse conceito filosófico que permitirá começar a discutir, em relação à produção dos Quay - não somente dos seus filmes de animação, como SoC, The Cabinet of Jan Svakmajer, Gilgamesh, os Stille Nacht, como também os filmes com actores reais, Institute Benjamenta e The Pianotuner of Earthquakes ou outros projectos -, um território de ambivalência ou de indiscernibilidade que eles criam nessas, menos que histórias, ambientes. É um território irmanável a uma espécie de “Terra da Infância” tal como descrita poeticamente por Baudelaire, Pessoa, Walter Benjamin, Bruno Schulz e Robert Walser: um local mítico ao qual se deseja regressar, e que se vai cristalizando na memória. A menção a Schulz e Walser é por demais crucial, não apenas pelas adaptações que os irmãos fizeram dos seus escritos, e que são mais do que isso, no fundo, mas porque ambos, e os Quay com eles, criam como que uma “ascensão mítica do quotidiano”, para parafrasear uma frase do polaco Schulz. Mais, e este é um dos pontos em que a associação a Svankmajer é mais sentida, os artistas, com os seus filmes, auscultam a “vida secreta da matéria”, sendo essa matéria não apenas aquela que compõem as suas personagens (os bonecos, as marionetas, os actores), mas todos os elementos dos filmes. A autora cita ainda Roger Cardinal, outro importante investigador do cinema de animação, quando este afirma que “todo o ideal do filme animado é suprimir as categorias da percepção normal. De facto, a sua lógica pode até ser a de suprimir todas as categorias diferenciais, e aniquilar as próprias condições da racionalidade” (apud pg. 225-226).
É por isso que a leitura dos Quay pode ou deve ser feita sob o signo da de Schulz, Walser e outros autores. Estes não estão assim tão preocupados com as abordagens mais clássicas à animação - e muito menos às suas estruturas narrativas convencionais, os seus princípios genéricos, os seus ritmos e humores, temas e ontologias mais corriqueiras. Procurando uma outra referência fundamental, a de Heinrich von Kleist, pelo seu Sobre o teatro das marionetas (traduzido entre nós como As Marionetas, Hiena), e abrindo a animação de volumes à manipulação de marionetas e destas a questões sobre o humano, abre-se um outro caminho de interrogação sobre essa indiscernibilidade , entre o animado e inanimado, o objectual e o orgânico, o vivo e o morto, a vigília e o sonho, a inércia e o movimento. “Os bonecos dos Quay funcionam como duplos, como objectos de fetiche, e também fazem surgir questões que recordam as teorias dos duplos, dos simulacros e dos automata, todos os quais figuram nos autores discutidos previamente, e o vitalismo e o animismo encontram-se aqui” (125). E antes, afirmara “a ‘existência’ [da marioneta animada] é definida totalmente pelo processo conceptual da sua construção e animação” (107). Isto é, apesar de sabermos, enquanto espectadores, que aquelas marionetas são objectos inanimados, e que a sua “vida” emerge apenas da “ilusão voluntária” (expressão de Ian Jarvie, citada pela autora logo na introdução) do cinema, tem lugar essa tal paradoxal impressão de uma vida.  A autora cita mesmo os Quay quando estes dizem que “na arte do bonecreiro [puppetry], as mãos pensam muito” (54), apontando não apenas para a noção de eventual controlo, mas do próprio processo, vivo, da manipulação.
Parte da dificuldade em conquistar sempre um público mais alargado, da parte destes filmes (a que muitos outros se poderiam juntar) é o treino intelectual, cognitivo e cultural que temos desde sempre em procurarmos estruturas narrativas convencionais, e jamais abandonarmos o chamado eixo sensório-motor, a causalidade, a linearidade, ou a subsunção a um arco naturalizante de todos os elementos apresentados a uma “fábula” verbalizável, explicável. Os Quay derrotam esses mecanismos. Já num artigo anterior ao livro, “The Quay Brothers, Choreographed Chiaroscuro, Enigmatic and Sublime”, a autora já havia escrito que “os filmes [dos Quay] utilizam muitas vezes a centralidade não-verbal da música para trazer os bonecos e os objectos para a vida no mundo do filme, que não está preso ao princípio organizativo narrativo da palavra falada, à sua especificidade cultural e ao seu antropocentrismo - a ausência dessa palavra é mesmo uma fulcral determinante para que a credibilidade da alteridade desse domínio se estabeleça” (168). Na sua análise a Nocturna Artificialia, SoC, ou The Comb, ela afirmara que essas peças “lidam com níveis cambiantes de consciência, nos quais as alterações visuais e temporais são suspensas e desenvolvidas pelas mudanças na partitura musical e na trilha sonora” (6).
Com efeito, um só capítulo deste livro é dedicado à dimensão sonora e musical - “The Secret Scenario of Soundscapes”, que nos Quay não é de forma alguma uma camada adicional ou fonte de estratégias emotivas après le fait, mas uma das linhas compositoras do todo que eles moldam, tecem e estruturam. Mas, e sempre sob o signo das magníficas e iluminadoras lições da autora, também se poderiam falar de outros elementos, que leva (ainda citando do artigo) ao que os espectadores se envolvam numa “cumplicidade de olhares furtivos, sombras coreografadas (…), uma colagem de estruturas não-narrativas obscuras e fragmentadas” (pg. 4 do artigo). Falamos da luz, que se torna mesmo a protagonista de um projecto como In Absentia, criado em torno de uma composição de Stockhausen, das cores (os monocromáticos dos primeiros filmes, o colorido barroco dos últimos projectos), da palavra dita ou escrita ou transformada, da multiplicidade de planos e focagens, que levam a sempre a uma obrigatoriedade, nos seus espectadores atentos e disponíveis à formação de ideias novas, e não de familiarizações.
Poder-se-ia discutir a anarratividade de Street of Crocodiles, e de outros filmes, com a autora, uma vez que bastando-nos identificar certos elementos mínimos, desde a existência de um eixo espácio-temporal, mesmo que vago, personagens identificáveis como tal e que interagem, eventos em arco (naquele filme, o nó que se desfaz e refaz, as portadas das lojas que se abrem e fecham), mas recusando uma sua redução, existe sempre uma possibilidade sinóptica. Aquilo que poderíamos dizer é que os Quay levam a cabo, a todos os níveis (montagem, imagens, música, som, etc.), um processo de desvios sempre permanentes, uma operação estética texturada e desfamiliarizante dos princípios narrativos.
A análise de qualquer obra de arte permite sempre uma abordagem múltipla e, potencialmente, infinda (a tarefa crítica não tem fim, mesmo que se moa numa circunstância contida). Mas existem obras de arte que são mais passíveis de convidarem, desde logo, a um escopo particularmente vasto. A dos Quay pertence a esse número, e se bem que a multiplicação de referências e associações seria perfeitamente exequível, seria igualmente incomportável. Ainda assim, Into a metaphysical playroom convida-nos a atravessar toda uma série de paisagens fortíssimas do pensamento. Analisam-se dimensões da montagem, dos movimentos de câmara, , do som (da música, da bruitage, dos ruídos diegéticos, da referencialidade revisitada dos mesmos sons, dos efeitos anempáticos, citando o conceito de Michel Chion), da construção de espaços segregados e não relacionáveis - em si mesmos pejados, como Wunderkammern -, e ainda se poderiam visitar as dúbias relações diegéticas e mecânicas entre as personagens, os jogos de olhares entre elas, a aparente falta de expressão das mesmas, mesmo as humanas com actores reais. E de um carga fetichista (que é um objecto sempre que aponta para uma coisa que não está ali). Por essa mesma razão presta-se atenção, e nomeiam-se mesmo, as várias máquinas individualizáveis dos filmes, com particular destaque para SoC: a máquina de rebentar elásticos, a roldana à beira da escuridão, o cubo de gelo e o dente-de-leão, todas elas descritíveis como máquinas “celibatárias”, na linguagem de Marcel Duchamp e Deleuze, também citada pelos realizadores, conjunto a que Buchan dá o nome de “Museu Metafísico” de Buchan).
Citando Deleuze, importará recorrer a outras das lições deste filósofo, para mais dos seus famosos livros sobre cinema, para sublinhar um outro aspecto dos filmes dos gémeos, em torno desses tais espaços isolados e aparentemente não-relacionáveis. Independentemente de, em termos fenoménicos e pré-fílmicos, eles serem unidades físicas auto-contidas e apresentáveis como tais, como objectos de arte mesmo, em exposições, o mais importante é sublinhar as suas características no interior da economia do filme. A maneira como são filmados mantém alguma ideia de isolamento mútuo. Deleuze, no segundo volume de Cinema refere-se à imagem enquadrada como um sistema fechado, e que elas se relacionarão entre si através de “fios” (ele chega mesmo a empregar uma metáfora em torno da aranha). Se este fio for “forte”, o fora-de-campo preencherá a sua função primeira, que é a “adição de espaço ao espaço”, ou por outras palavras a criação de um espaço diegético (usual, expectável, naturalizante); se for “fino”, então a outra função toma a dianteira: “a introdução do transpacial e do espiritual num sistema que nunca está perfeitamente fechado”. Ora é em SoC, Nocturna Artificialia, Gilgamesh e no “estúdio” do Svankmajer arcimboldiano que estes isolamentos espaciais são mais notáveis. Ainda que haja indícios de um “espaço exterior”, até mesmo através do som, ele jamais é visitado, e para mais, alguns dos “lados” desses espaços dão para espaços ambíguos, fantasmáticos, sob a forma de uma Grande Noite, um espaço de escuridão (que analisamos noutra trabalho como associando-o ao goethiano Reino das Mães). Esse espaço outro - mas não no seu sentido foucaltiano, “transpacial e do espiritual” - expande sobremaneira essa abertura.
De regresso ao artigo já citado, Buchan também encontra associações, filiações até, entre a produção dos Quay e o movimento (“anacronicamente cinemático”) Sturm und Drang, na medida em que encontra nelas uma “combinação do estranhamento familiar [uncanny] e do sublime… mas de modo impuro, manchado pelos gestos do Surrealismo, uma estética de psicopatologia erótica, e a maquinaria hermética do oculto medieval e de uma ciência pré-positivista” (5). É nesse sentido que os filmes dos Quays são menos “surrealistas” - palavra que muitas vezes é empregue mais num seu poder fantasmático e apotropaico do que histórica e teoricamente preciso -, e antes reverberadores de uma história e tradições específicas, uma colecção de referências e afinidades que os lança para uma potencial ligação a um fundo aparentemente atemporal e areferencial (não o sendo jamais, claro está).
Estando longe, portanto, de uma certa abordagem familiar, confortável e conceptualmente anódina da animação, ainda nesse artigo - que nos perdoem os leitores por este desvio contínuo na leitura do livro - a autora assinala como “O fantástico não é mais decorativo, mas tornou-se num meio estético sério para expressar a correlação visual das fronteiras dissolventes entre a realidade e a virtualidade, entre as leis físicas naturais e a cada vez mais inconsútil inclusão da fantasia como um dado no realismo ficcional” (12). Esta é uma das portas de entrada para o conceito freudiano do Unheimlich, traduzido em inglês por uncanny e que em português se pode indicar pela expressão “estranho familiar”. Não se trata de uma entrada no reino do maravilhoso, como descrito por Todorov - isto é, um universo diegético em que as coisas que ocorrem correspondem à “verdade” desse mesmo mundo: existem mesmo fadas, é possível voar, etc. -, o que ocorre na esmagadora maioria dos filmes de animação, dados à “magia da fantasia”; mas tampouco é uma entrada no fantástico gótico, que explora as dúvidas sobre percepção e ponto de vista e credulidade entre personagens e espectadores. Trata-se mesmo da entrada num espaço intervalar, incómodo, de dúvida, um mundo “walseriano, meio-acordado, meio-adormecido” (13), que torna as “proibições manifestas da realidade” [de “Das Unheimliche”] de Freud (que a autora cita continuamente), precisamente, manifestas.
Caberá ao espectador, portanto, mergulhar nesse tremendo campo de referências e mecanismos irreais, para construir os seus próprios processos de leitura. “É possível apreciar somente o fluxo de imagens, ou tentar encontrar um significado ou um esquema que funcione para preencher o que nos parecem ser elipses narrativas. Por outras palavras, tentar compreender esta particular forma densa de montagem intelectual dos Quay baseada na intuição e no deslocamento, ela própria tornada possível pela mecânica da ilusão cinematográfica [cinematic]” (147). Mas em Buchan encontramos, pelo menos, uma possível cartografia ou roteiro.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Por motivos profissionais, ainda não foi possível à autora responder a uma curta entrevista, a qual aceitou com amabilidade. Se e quando estiver disponível, avisaremos em post próprio. Com a excepção da capa e de uma spread do interior, todas as imagens colhidas na internet.

On Deciphering the Pharmacist’s Prescription for Lip-Reading Puppets. The Quay Brothers (MoMA).

Este post serve apenas para dar conta do pequeno mas rico catálogo da exposição antológica da obra dos irmãos Quay, suscitada pela leitura da monografia de S. Buchan.
Tendo estado patente no ano de 2012, esta exposição apresentava não somente as pequenas câmara-cenário que eles criaram para os seus  filmes de animação de volumes (as quais estiveram patentes em Lisboa, no Museu das marionetas, em 2008, sob o título Dormitorium), como objectos-instalação, posters, capas de livros, ilustrações, projecções de filmes, e “coisas”, à falta de melhor termo, criadas de propósito para a exposição, como as caligrafias anarmóficas nas paredes. Este catálogo, que tem pouco mais que sessenta páginas, reúne stills de filmes, fotografias das tais instalações e dos cenários, dos bonecos-actores e dos cenários para teatro e ópera, algumas fotografias pessoais, imagens da sua carreira em ilustração, e muitas referências das suas formações artísticas, académicas e culturais.
No que diz respeito a textos, apresenta dois textos curtos, mas muito incisivos. O primeiro é de Ron Magliozzi, comissário desta exposição e responsável no museu pelo departamento de cinema, e que apresenta uma contextualização e uma biografia breves, sem no entanto deixar de tecer algumas interpretações sobre temas recorrentes (a ideia de gémeos, a importância da dança, as relações entre espaços interiores, exteriores e inanalisáveis, como os dos sonhos ou dos trompe-l’oeil). O segundo é de Edwin Carels, importante investigador de Ghent, sobre as relações entre a animação e as artes “em geral”. Intitulando-se “Aqueles que desejam para sempre. A ruminação enquanto ‘máquina celibatária’” (a primeira metade do título remete ao subtítulo do filme Nocturna Artificialia), Carels elege “máquinas celibatárias” dos Quay (o que remete a um ponto discutido no livro de Buchan) como ponto nevrálgico do, digamos assim, funcionamento dos seus filmes, como a propósito da cena inicial, introdutória, de Street of Crocodiles, em que se dá a transição, ou relação, ou negociação, importante entre filme e espectador: “de encenar um olhar para a câmara à captura do espectador no interior de uma configuração espacial”. A exposição Dormitorium, de acordo com Carels, convidava o visitante a “activar [aqueles] espaços”, mas os seus filmes atingem uma mais completa “interpenetração sensória”. Num elaborado processo de crítica à emergência da museificação da cultura, mas relacionando essas instituições aos seus imediatos predecessores, as “Wunderkammer” ou “gabinetes de curiosidades” (e o objecto de transição, a vitrine, que implica o princípio “vê mas não toques”), o autor pretende demonstrar como o cinema eleva essa diferenciação absoluta entre o visual - sempre visível, sempre penetrante - e o táctil - sempre fora do alcance, corroborando a transformação que teve lugar quando a “experiência foi substituída pelo conhecimento”, uma lição que, não sendo citada, soa a Walter Benjamin. No entanto, o cinema particular dos Quay, que convida o espectador, nos mais recônditos rincões dos seus corpos e mentes, a transporem as fronteiras existentes entre vigília e sonho, entre tempo(s) e espaço(s), negam muitas vezes o conhecimento para remeterem a uma nova experiência.
Segue-se uma entrevista aos Quay conduzida por Heinrych Holtzmüller, compositor, no seu sentido gráfico, do século XVI, num desses exercícios tão queridos aos autores de apocrifia, palimpsesto e anamorfose com a matéria da história e das suas vidas e obra. Mais do que revelarem pouco de si mesmos, revelam sempre através destes filtros ficcionais, corroborando a mistificação que muitas vezes desejam fazer em torno deles (por serem gémeos, supostamente “reclusos”, etc.). Essa entrevista permite-lhes não somente atravessarem referências usualmente esquecidas mas fulcrais na sua obra (do teatro de marionetas de Michel de Ghelderode a uma marca de cerveja belga vendida num bar favorito, La Mort Subite) ou questão mais metafísicas mas igualmente instrumentalizadoras nas suas pesquisas. A forma como, por exemplo, as suas opções em alterarem a escala do que a câmara pode “ver”, para dessa forma auscultarem sons imperceptíveis, os outros lados da música, o que uma só letra pode encerrar, ou que mundo se esconde quando simplesmente “nos baixamos” à escala das marionetas (citando, precisamente, Ghelderode).
Nota final: as duas primeiras imagens foram tiradas da internet, através de urls directos.

13 de maio de 2013

Blog bd - Madie. Paul Filippi e Mathias Mercier (Casterman)

A quase exclusiva atenção para com banda desenhada “espectacular” ou “grandes obras-primas” leva por vezes a descurarmos aqueles títulos que, não redimensionando a  arte em si, são capazes, na sua existência singular e na sua relação com os modos de produção a que pertencem (que, a um só tempo, constroem e a tornam possível), demonstrar que a sua presença pode assumir as mais diversas formas, atravessando todo um espectro de intensidades. Madie é um bom caso de lume brando, e por essa razão atinge um apuramento simples, mas consistente.
Este é um livro sobre pequenos descentramentos. Madie vive a sua vida, confortável, burguesa, tudo de acordo com os modos que a vida ganha a partir dos 30 anos nas condições sociais que lhe pertencem. Uma relação séria e permanente parece contradizer expectativas da juventude, que eterniza na sua mente um lado aventureiro que evapora, ou melhor, se revela ilusório. Num grupo de amigos que sobrevive a adolescência em conjunto, uma forma de esbater esses desencantos é a preservação das memórias comuns, de uma qualquer nostalgia, da constante recordação e relançamento de desejos e sonhos. Madie inicia-se com uma morte, a qual desperta um fantasma: a de que um amigo e antiga paixão de Madie, Frédéric, poderá estar vivo e a viver algures. A intriga do livro é precisamente a tentativa de Madie em voltar a contactar Frédéric. Os dois descentramentos principais dirão respeito à tensão criadas entre essas duas personagens: a busca de Madie por Frédéric, como ela mesmo o dirá explicitamente, acaba por revelar mais dela mesmo do que de Frédéric, ou da relação entre ambos; Frédéric, que não é mais do que uma presença mcguffiana, iluminará tudo o que está em torno dele, como se se desenhasse um ambiente e o contorno dele, mas  nada no interior desse contorno. Uma outra camada de descentramento é que a atenção do livro voga por entre esse processo de busca, mas igualmente pela relação de Madie com o seu namorado presente, os seus pacientes (ela é médica), os seus amigos, os seus pais e o casamento conflituoso destes, e a vida em geral, enfim, em modo livre.
Romance familiar, numa escala doméstica e circunscrita a um espaço local, uma vila, não deixam de existir laços a questões mais alargadas, e que apontam, sem propriamente uma abordagem das crises desses mesmos enquadramentos, a um contexto multicultural e político complexo. Um dos amigos, Hocine, é muçulmano, Frédéric, o objecto central da procura e relacionamento da história, é militar, depois fotógrafo, mas parece estar permanentemente insatisfeito com a sua vida, quiçá fruto de algum trauma. Vemos, à margem dos acontecimentos principais, greves, associações culturais de apoio social, pequenas anedotas de personagens secundárias que vão, aos poucos, tecendo uma ideia do social que engloba e envolve esta pequena intriga pessoal. Tudo isso são elementos apenas citados, mas que servem para criar uma ideia de real mais lata e que estimula os eventos sobre os quais o livro se concentra.
Apesar de este livro não passar o “teste Bechdel”, ainda assim não deixa de ser significativo que a protagonista, e titular, do livro, seja uma personagem feminina, Madie, a qual recebe um tratamento singularmente maduro e nada redutor, e haja momentos em que ela estabelece ligações com outras mulheres (a mãe, uma amiga, uma mulher de um paciente, a ex-namorada do amigo que procura, etc.) que, ainda que por vezes estejam a falar de uma terceira personagem masculina (falhando o tal teste), sublinham particularmente as suas personalidades próprias, e não são apenas instrumentalizadas. Mesmo existindo cenas íntimas, e até sexuais, elas nem são explícitas nem procuram efeitos eróticos simples, de titilação dos leitores. Estamos perante um tom calmo, realista, de crises muito comuns e sem sombra de catástrofe.
O tom, de facto, parece ser aquele de um certo cinema contemporâneo, urbano, de redes familiares, em torno das relações, jogos de segredos e mágoas entre um grupo de pessoas que gravitam uns em torno dos outros em constelações mais ou menos autónomas. Poderíamos, no que diz respeito à argumentação crítica, recordar algumas das ideias esgrimidas a propósito de Petites Éclipses, e o rol de cineastas francófonos então citados (Pagnol, Clouzot, Jaoui), sobretudo pelo facto de serem os diálogos elegantes, a um só tempo capazes de um humor inteligente e uma emotividade directa, a sustentarem as relações humanas (em detrimento, talvez, da tal dimensão pictural das imagens, subsumidas até certo grau ao seu programa de representação e eficiência).
Um conceito como o de “alto contexto”, talvez fizesse sentido na análise da trama deste livro. Tal como qualquer ficção, o leitor observa e lê os acontecimentos e diálogos entre um número de personagens, é a partir deles que infere as relações. Existem tipos de texto que são mais explícitos (os casos das narrativas mais comerciais, infantis ou melodramáticas) e outros no qual a inferência é maior. Pensamos que é o caso de Madie, onde apenas nos interstícios do que é dito, na atenção aos intervalos das relações mostradas, é que vamos compreendo os “segredos”. Se numa série de televisão ou num filme, temos uma gestão do tempo, dos silêncios e das mais pequenas expressões dos actores humanos, numa banda desenhada o que corresponderia a esses factores está muito transformado, quase ausente. Os diálogos por vezes em nada contribuem para o avanço da intriga, mas são a matéria própria que torna espesso o contexto emocional entre as personagens, talvez revelando que a esmagadora maioria das nossas “aventuras” possíveis passam-se não com movimento do corpo mas dos afectos.
O trabalho visual de Filippi, corroborado pelas cores suaves de Damien Raymond, inscrever-se-ão numa tendência francesa contemporânea de que já várias vezes falámos e, sem querer reificá-lo em demasia, encontrava em Joann Sfar o seu percursor ou instituidor. Sendo este meio visual autónomo e liberto de um hipotético punhado de referências para todos os seus textos, não importa criar um modelo central contra o qual se procurariam todas as comparações. Bem pelo contrário, deveremos aceitar as regras internas das abordagens a cada texto. Tal como no cinema aceitamos vários níveis de exigência e de ritmo, ou na literatura ora uma mais empolgante gestão dos acontecimentos lineares ora uma exploração da matéria plástica da linguagem, mesmo contra a presença de uma intriga, ou nas artes plásticas a decisão entre figuração ou abstracção, referencialidade ou conceito, não são mais factores hierarquizantes em si mesmos, também na banda desenhada teremos de conviver com os vários estilos, estratégias, escolhas. A tranquilidade do traço em Madie não procura jamais questões de metalinguagem nem de espectacularidade, mas antes uma descomplexada plataforma para a trama narrativa. 
Isto não significa que não se explorem estratégias visuais e compositivas específicas à banda  desenhada, desde aquilo que se pode chamar de “montagem paralela” (em que, por exemplo, duas tiras no topo e abaixo de duas páginas seguem um acontecimento, e o centro dessa dupla página apresenta outra dimensão da unidade espácio-temporal), àquela estratégia de desenhar a personagem sempre na mesma posição, e se altera tudo à sua volta - desde os momentos, aos locais, a outras personagens que a possam rodear - para dar conta de um alheamento e não-participação nos acontecimentos [vejam a imagem anterior], ou outras pequenas metodologias significativas.
Além do mais, aquele tecido social a que aludimos acima está também presente em pormenores apresentados visualmente, nas vinhetas de maiores dimensões que servem de establishing shots intermediários, ou sequências que passariam por travellings em relação a um espaço. A simplificação do traço, das figuras, dos objectos, e dos modos cromáticos não implicam necessariamente uma ausência de textura a esse nível.
E Madie é, acima de tudo, um livro leve mas coesamente texturado.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro (imagem da capa de URL externo)

2 de maio de 2013

Les Jumeaux. Jung-Hyoun Lee (Frémok)

Quantas vezes o adjectivo “poético” é empregue em relação à banda desenhada, procurando antes sublinhar aspectos que têm a ver com representações normalizadas das emoções ou uma qualquer espécie de vagueza mole, ao invés duma mais forte moldagem de todos os elementos que podem constituir a textualidade - entendida quer enquanto estrutura, materialidade e recepção - de uma dada obra? Se tomarmos esta segunda via, encontraremos a poesia em banda desenhada em objectos disjuntivos, não naqueles que dão continuidade às expectativas sociais desta arte. E reforça-se, não se domestica, aquela palavra.
Este livro, publicado por aquela editora que, discutivelmente, tem construído o mais consequente edifício daquilo a que chamámos “a banda desenhada por vir”, reúne toda uma série de trabalhos da autora sul-coreana, do qual já havíamos dado conta, em forma de nota, a propósito de um “episódio” publicado na Glomp 9. Desde logo, este vocabulário (“episódio”) ajudará a querer compreender este livro no interior de categorias familiares. Por um lado, poderá parecer que quereremos subsumir todo o livro a uma apresentação mimética, naturalizada, o que implicaria quase necessariamente uma perda da sua dimensão poética, tudo aquilo que deve permanecer no limiar da familiaridade e, por isso, mantendo a sua quota-parte de permanente mistério. Por outro, talvez possamos acreditar que mesmo tentando uma  explicação aparentemente naturalizante, apenas estamos a identificar elementos específicos que nos permitem avançar numa possível análise, mas jamais a esgotará; mais, tornando-a possível (mesmo que num início somente), lançam-nos precisamente num movimento (quem sabe se perpétuo).
Estas ideias devem ser entendidas num quadro influenciado por aquele espaço de negociação teórica que é criado por algumas correntes contemporâneas da narratologia, proponentes de uma teoria “natural”, de Monika Fludernik, e de outra “inatural”, de Brian Richardson, Jan Albers et al. (e as quais não criam uma dicotomia simples de opostos, mas sim tratamentos diferentes dos textos abordados; falámos desta segunda a propósito de Daytripper). Segundo Fludernik, proponente de uma narratologia natural, “a narratividade…é principalmente baseada num factor de consciência, [mais] do que nas dinâmicas actanciais ou em direcções teleológicas. A teleologia e a dinâmica, em muitos textos experimentais, são constituídos não num nível de intriga [segundo o termo de P. Ricoeur] (com a sua ênfase no suspense) mas no nível interpretativo no qual o leitor impõe uma estética genérica em dados textos recalcitrantes” (Towards a ‘Natural’ Narratology, p. 30; nossos sublinhados). Ou seja, ao considerarmos Les jumeaux enquanto um texto experimental de banda desenhada, e não encontrando nele uma clara e resoluta dinâmica entre as personagens ou uma teleologia simples, é graças à nossa própria capacidade cognitiva, à experiência viva, que acabamos por impor descritivos estéticos que as aproximam de uma maior legibilidade.
Quando somos confrontados com objectos desta natureza, uma apressada consideração levaria a pensar que não haveria qualquer tipo de estrutura, digamos, recuperável, pelo menos num seu sentido verbalizável e analisável. O livro encontra-se, porém, dividido numa série de pequenos capítulos ou episódios, cada qual com o seu título e que se relacionam entre si de modos diversos, para além das guardas (uma densa textura de linhas em grafite cruzadas) e de desenhos paratextuais, com elementos narrativos suficientes. Ei-los: uma primeira parte intitula-se “Morte”, uma segunda, propriamente introduzida como “Os gémeos”, é subdividida em “A casa dos gémeos (a chegada)”, “O gémeo (a saída da cozinha com o corpo)” e “A gémea (o encontro com o peixe)”.
Os dois corpos principais são o de duas personagens, aparentemente andróginas, mas que se inclinariam mais para o sexo feminino. Os seus cabelos lisos, negros e compridíssimos remetem para as representações clássicas dos fantasmas na Coreia (e também no Japão e China, como é conhecido de toda uma série de filmes contemporâneos de terror; não cortando os cabelos, as mulheres tinham-nos longuíssimos, e na morte não usavam nenhum penteado, mas sim soltavam-no), logo a dimensão macabra está desde logo presente. No entanto, quer através de leves indícios nalguns dos retratos dos rostos mais pormenorizados quer por outras estratégias de representação mais óbvios, distinguimos que se tratam de dois gémeos falsos. Existem ainda outras personagens, masculinas, de cabelo rapado ou extremamente curto, mas cujos parentescos não são de forma alguma nítidos ou identificáveis. Em “Morte”, atravessamos os vários cantos de uma casa, atravessada pelas/pelos gémeas/gémeos, como se se tratasse de um ritual de ocupação, e que levará a uma hecatombe de todas as personagens.
Na “história” principal, uma primeira fase de introdução, composta por vinhetas isoladas (duas por página), mostra-nos um homem a chegar a um local de autocarro e a descobrir, perto da sua paragem, um baloiço abandonado (e aparentemente suspenso no vazio). Seguem-se os capítulos divididos pelas duas personagens principais, o primeiro mostrando o gémeo - mas esta decisão pelo sexo é apenas por seguir a palavra -  no interior da casa, com vinhetas marchetadas que aparentemente mostram alguém a carregar um corpo, e, sob um baloiço suspenso, a desaparecerem num tanque de água (imaginamos nós); o segundo, mostrando a gémea no exterior da casa apanhando galhos, e ao mesmo tempo revendo (?) a cena da captura do corpo pela personagem que havia chegado no primeiro trecho, e depois a prostrar-se no chão, mas possivelmente ou intermitentemente sobre uma baleia subterrânea. À beira da casa, um abismo circular na terra serve de leito a um dos gémeos…
Serão estes descritivos suficientes ou redutores? Iluminadores ou confrangedores? Em que medida ajudam a fruir da dimensão poética, que apenas na leitura total dos seus elementos pode funcionar? Que dirigem estas palavras no que diz respeito à possível interpretação da obra?
Questões de desvio parecem-nos centrais. Cria-se uma ideia de que haverá sempre um sentido qualquer que está ausente, refractado, desviado. Não apenas pela questão de gémeos de sexos diferentes, que desde logo cria uma ambivalente equação de identidade e alteridade, proximidade e distância, presença e ausência, mas por toda uma série de objectos que poderão levar à ideia de um espectro reflexivo: o vai e vem do baloiço, a superfície das águas, o espelho, o espaço doméstico versus o espaço exterior, a imobilidade dos corpos e a dimensão de movimento e viagem do autocarro e do baloiço, as vinhetas menores, em planos aproximados, marchetadas em maiores, de planos mais alargados (recordando estratégias muito variadas em que se obriga o espectador e compreender que as imagens veladas exercem um poder maior sobre as visíveis do que estas explicam as ocultas, de que  Baldessari foi expoente máximo, e que na banda desenhada conhecem vários usos narrativos, de Richard McGuire a Schuiten). Uma ambivalência ou um paradoxo que está desde logo presente na ideia de morte, ou no seu (barroco) pensamento durante a vida. Numa palavra, Lee cria aqui uma poderosa alegoria.
Em Origem do Drama Trágico Alemão, Walter Benjamin distingue o símbolo da alegoria através da categoria do tempo, ou da relação daqueles com este, escrevendo: “na alegoria o observador tem diante de si a facies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que desde o início tem em si de extemporâneo [ou “intempestivo”, Unzeitiges], de sofrimento e de malogro, ganha expressão na imagem de um rosto - melhor, de uma caveira” (trad. J. Barrento, pg. 180). As traduções em inglês traduzem aquele último termo por “death’s head”, sublinhando a que realidade se agrega. Recordemos ainda que o mesmo filósofo fala da caveira como espaço onde se opõem a sua “inexpressividade absoluta” dos olhos vazios e a “mais selvagem das expressões” do seu ricto (“Artigos de retroseiro”). A caveira é aquilo que obriga a um olhar para trás, para uma origem perdida (como o do Anjo da História), através da ruína que ela mesma é. A alegoria obriga, portanto, a um olhar histórico, ao contrário do símbolo, que se pretenderia sempiterno, idealizado, redentor, e desligado dos mecanismos da existência humana e do mundo
Se os rostos desenhados por Jung não são propriamente os da morte ou de mortos - as personagens agem, mesmo que essas acções sejam impenetráveis à compreensão -, elas estão imbuídas de um sentido mortal inelutável, de uma inexpressividade, corroborada pela textura permitida pelos lápis, que lhes dão o ar de pedra, de baixo-relevo, de esfinge. Se figurativamente, as figuras esquálidas, quando desenhadas em pormenor, revelando anatomias, texturas, músculos e tecidos da pele, recordam Egon Schiele, e quando mais longínquas se formam a partir de estratégias mais estilizadas e simples, quase de ilustração infantil, o uso da grafite pela autora irmana-a a uma comunidade artística contemporânea alargada mesmo no interior da banda desenhada, com Chihoi, Vähämäki, Manouach ou outros. De novo, regressando à mesma ideia central: a grafite enquanto (agora, aqui) símbolo de mortandade (cinzas) texturada onde pulsa a vida.
A história, aqui, será aquela circunscrita pelos factores de produção, de uma banda desenhada própria ao século XXI, finalmente mais próxima das tendências ou linguagens suas contemporâneas de outras áreas criativas, cada vez mais unidas por preocupações poiéticas (um fazer) do que temáticas ou de representação. E é pela aparente leitura negativa dos elementos narrativos - o não ter uma história, não ter um fito, não ter uma unidade espácio-temporal (precisamente aqueles aspectos que Fludernik e Richardson acham que devem ser lidos positivamente, inaugurando uma narratologia mais abrangente e atenta aos experimentalismos quer históricos quer pós-modernos) -, é pela sua aparente inexpressividade, que a petrificada facies hippocratica surge: uma espécie de doença que corrói, morde, fustiga, enfim, molda o rosto com os instrumentos intempestivos.
Mas alegoria de quê, então? Ao serem suspensas as necessárias redes de referências e ligações diegéticas que se esperariam quer da parte de um enquadramento narrativo realista quer de um qualquer género particular (que lançaria expectativas específicas), os rituais e movimentos de dança entre estes corpos e rostos criam uma noção aberta de relações e reflexos. Cria-se uma fenda, uma fractura de significados, no qual caberá ao leitor e espectador o esforço de sutura, angariando toda a matéria visual e textual (no seu sentido de relacionamento entre as imagens, as estruturas episódicas, espaciais, etc.) para as converter em algo reconhecível e depois (re)integrar num processo histórico. Mas não um julgamento. Aquele esforço, claro está, poderá não satisfazer de forma alguma a familiaridade, mas antes alimentar sempre a irredutível ambivalência, a inanalisabilidade que surge na estranheza de enfrentarmos gémeos falsos: corpos tão distintos e unidos por um fundo comum mas inidentificável nos seus traços presentes. E os quais possuem em si uma conflituosidade interna, uma relação a um só tempo de identificação e de rivalidade e oposição, a um só tempo de distinção absoluta e de confusão. Os gémeos, portanto, sendo cada um deles identificável com um dos sexos clássicos, e corroborados pelos “acontecimentos” e objectos do seu mundo diegético, jogam todo um conjunto de oposições ou binómios metafísicos, desde homem/mulher, exterior/interior, bom/mau, natural/artificial, a outros níveis como familiar/estranho, heimlich/unheimlich, ser/não-ser, vida/morte. E nunca necessariamente com os primeiros termos correspondendo aos segundos, mas criando um espaço de indeterminação, negociação ou correspondências móveis (cujos espaços de penetração são representados pelas vinhetas que surgem encaixadas, por dentro, sobrepostas, cada uma dessas palavras dando conta de uma perspectiva diferente do trabalho visual existente). Ou seja, ao mesmo tempo instituem os traços visíveis dessas dicotomias e negam-nos. E é aí que reside o não-julgamento do leitor: há um esforço em identificar tudo isto, mas não concluir nem fechar. Se o movimento tiver início, também tê-lo-á a poesia que ele encerra.