28 de março de 2013

El heróe. David Rubín (Astiberri)

As histórias, ou mitos (i.e., “narrativas”), que envolvem a figura de Hércules, ou na sua grafia helénica, Herácles, não são coerentes entre si, no sentido em que pudesse existir apenas um texto, uma trama, um arco, que albergasse todos os episódios, pormenores e versões. A própria diferenciação entre os nomes grego e latino remetem a tradições e lendas bem diversas, sendo aquelas mais conhecidas de origem grega, num “ciclo inteiro em contínua evolução desde a época pré-helénica até ao fim da Antiguidade”, como reza a apresentação de Pierre Grimal no seu fundamental Dicionário da Mitologia Grega e Romana (reservando 29 colunas para a entrada “Herácles”, contra uma só para “Hércules”, que na verdade poderão mesmo ser personagens sem qualquer relação, apenas retrospectivamente confundidas). Sendo inúmeras as fontes, adições, poemas, peças de teatro, e súmulas, dependerá sempre da perspectiva que se toma a criação de uma imagem deste herói semi-divino. David Rubín escolheu os elementos que provêm sobretudo do mais famoso ciclo, os “Doze Trabalhos”, tais como estipulados em escritos bastante tardios. E aproveita alguns episódios famosos - a destruição das serpentes no berço, o assassinato dos filhos num acesso de loucura, etc. - mas não outros - como a história de Zeus e Alcmena, como contada nos Anfitrião, as peças de Plauto e de Camões, ou a belíssima lenda da origem da Via Láctea. O autor resolve fazer de Hércules filho de Júpiter e Hera, e gémeo de Euristeu, em vez de Íficles, mas a manipulação de todas as personagens envolvidas nas suas lendas encontram aqui, em El heróe, uma consistente e muito bem estruturada versão. Dito isto, não se pode ler este livro somente, ou sequer, como “as lendas de Hércules contadas hoje”. (Mais)

25 de março de 2013

Histórias em quadrinhos diante da experiência dos outros. Regina Dalcastagnè, ed. (Horizonte)

O Brasil tem sido palco de cada vez mais intensos debates em torno da banda desenhada, ou histórias em quadrinhos, a nível académico, com vários departamentos e instituições compondo a emergência de uma massa crítica de estudos e, mais importante, de autores que dão continuidade às suas pesquisas, alguns dos quais se movem em circuitos internacionais. Este volume reúne um pequeno conjunto de ensaios que “foram apresentados e debatidos nas Jornadas de Estudos sobre Romances Gráficos” da “Universidade de Brasília com organização do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea”, como reza a introdução pela editora do projecto, Regina Dalcastagnè (pg. 7). Como é de esperar, com mais de uma dezena de ensaios, apresentam-se aqui representantes não somente de vários graus de análise como de várias universidades ou backgrounds profissionais, e de olhares disciplinares, incutindo nesta colecção uma variedade de instrumentos invejável. Um aspecto extremamente salutar prende-se com a atitude específica para com os objectos de estudo, evitando assim cair num binómio pernicioso e por vezes difícil de largar, por um lado, cair no que a editora chama de um “duplo preconceito”, a saber, a consideração da banda desenhada como literatura de massas e como literatura infanto-juvenil (que deixaram de ser descritivos correctos, paulatinamente, a partir dos anos 1960, mas que seguramente não fazem sentido algum no século XXI), e por outro, transformá-la num mero instrumento de facilitação e/ou introdução a “conteúdos” culturais que são melhor veiculados pela literatura e pelo cinema (basta, por exemplo, consultar o programa de leitura escolar no Brasil, citado num dos estudos, que apenas inclui apenas, com a excepção do Astérix, HQs que adaptam literatura). Ou seja, para além dessas visões “censória e instrumental”, ainda nas palavras da editora, estes estudos entregam-se ao estudo destes textos como campo próprio, distinto e autónomo (o que não o impede, claro está, de se articular com o mundo).
Em termos de objectos, há uma diversidade que permite falar de banda desenhada de super-heróis num largo espectro (Watchmen e The Invisibles), de projectos norte-americanos alternativos (American Born Chinese ou Fun Home, por exemplo), à mangá shoju, e, claro, autores brasileiros, com destaque para os impactos sócio-políticos dos cartoons editoriais, ou, no termo brasileiro, as charges (sublinhe-se que a maior parte das obras estudadas têm tradução no Brasil). O subtítulo da colectânea aponta para um tema que existe enquanto baixo contínuo, e que nos recorda um famoso título de Susan Sontag. Estando nós perante obras autobiográficas ou de pura ficção (mesmo de fantasia), a banda desenhada, enquanto meio artístico de circulação pública e contribuidor para uma memória social, colectiva ou histórica (termos que deverão ser entendidos de formas plurais e dinâmicas), e por mais reduzida que seja mesmo a sua presença e peso, constitui de facto um modo expressivo no qual os leitores acedem a experiências outras, e apenas numa verdadeira interrelação dialogante é que poderão emergir os sentidos que ela, enquanto arte, pode moldar. E cujos resultados podem ser muito variados, desde a empatia à contestação, a corroboração de valores ou um seu uso desviante. Questões de identidade, resposta pública/política, memória individual versus memória histórica/política, são algumas dos enquadramentos dessas pesquisas.
No entanto, antes de passarmos a uma leitura mais individualizada de cada ensaio, necessariamente reduzida (mas esperemos que não redutora), carece fazer um comentário geral. Se todos os autores, em conjunto, dominam campos específicos de saber, e referências importantes e interpelantes do pensamento contemporâneo sobre a cultura, literatura, política e sociedade (Bourdieu, Haraway, Butler, Latour, Foucault, Deleuze, Goffman, Huyssen, etc.), são muito poucas as referências sustentadas dos “Comic Studies”. Com algumas raras excepções, que consultam Thierry Groensteen por razões teóricas, David Hadju e B. Wright por razões sociológicas e históricas ou obras específicas à mangá (os casos de Ciro Inácio Marcondes, Benjamin Picado, Maria Clara Carneiro, Otavia Alves Cé), por exemplo, a esmagadora maioria das referências do discurso sofisticado, travado internacionalmente, e recorrentes a este campo específico de estudo deixa-se ficar por aqueles livros mais populares, um ou dois furos acima do manual técnico, com Will Eisner e Scott McCloud. Menos ensaios ainda citam artigos específicos à banda desenhada, e há mesmo um ensaio que apresenta um posicionamento extremamente discutível face à imensa produção de estudos que existe nesta área há, pelo menos, 20 ou 30 anos (falamos de uma produção plenamente ancorada em instrumentos disciplinares desenvolvidos no seio do diálogo académico, sem menosprezo de trabalhos de outra natureza, historicamente importantes). Ora, é difícil crer numa consubstanciação de uma verdadeira massa crítica se não se revisitarem e tentarem os limites quer  dos instrumentos já desenvolvidos por autores anteriores, internacionais, quer empregar os saberes entretanto já explorados para colocar novas interrogações ou propor novos desenvolvimentos. Por exemplo, existem aqui dois ou três ensaios que, a título estritamente pessoal, tocam em assuntos ou matérias que já abordámos, não só sob a forma dos textos neste blog, como de ensaios ou estudos mais desenvolvidos. E, tendo a cada um desses casos auscultado algum do discurso já lavrado, não é sem alguma surpresa que estes novos textos pareçam passar ao lado dessas outras pesquisas feitas por autores norte-americanos ou franceses, imaginando serem aqueles que mais peso têm no diálogo internacional (por razões que vão para além da qualidade dessas pesquisas, e têm a ver com acessibilidade económica, a presença das línguas, etc.). Ora, para que o diálogo seja feito, tem de haver necessariamente um conhecimento prévio dos estudos específicos a esta área, ou surgem ocasiões para um certo diletantismo, que, mesmo que possa revelar bruscas e excelentes iluminações (que nascem precisamente dos conhecimentos sólidos das outras áreas que são trazidas à colação e confronto com este objecto de estudo), podem muitas vezes ser manchadas por afirmações um tanto ou quanto generalistas demais, se não mesmo erradas.
O primeiro ensaio é de André Cabral de Almeida Cardoso, que estuda alguns títulos, exclusivamente de produção norte-americana (Watchmen, The Invisibles, The Sandman, Shade, the Changing Man) para demonstrar como as anti-utopias consubstanciam uma matéria correntemente explorada por essas fantasias. Quer dizer, em vez de se apresentarem como veículos para a fomentação de ideais ou utopias, estes títulos em particular (curiosamente todos escritos/criados por autores ingleses, questão já abordada por muitos ensaios) mostram antes “os lados negros” e falhados das tentativas de realizar essas mesmas utopias. Como o autor termina o seu ensaio, “a utopia deixa de ser um ponto a ser atingido, que implicaria a saciedade do desejo e, portanto, o seu fim, e passa a ser um perpétuo movimento, sem direção e sem destino” (23). É claro que a utopia é ela mesma um fantasma que move o desejo, o que permitiria então ler estas contra-utopias como novos modos utópicos, transformados por um novo sintoma que atravessou o século XX, de acordo com Svetlana Boym, a saber, o da “nostalgia”, mas este movimento perpétuo da acção, essa protelação do fim é algo quase sintomático deste tipo de narrativas, até pela sua integração num sistema mercantil muito específico. Pensamos ainda que uma problematização do conceito do tempo seria bastante produtiva nesta pesquisa, quer em termos narratológicos, quer em termos diegéticos, quer ainda em termos filosóficos (Sandman bebe de vários episódios históricos para criar um fundo geral e irmanável das utopias e contra-utopias, The Invisibles envolve várias viagens no tempo e mesmo fugas ao tempo, Watchmen ausculta os limites da percepção temporal graças aos poderes de Dr. Manhattan, etc.), mas o texto tem toda uma série de linhas de fuga e associações pertinentes sobre estes textos.
O estudo de Ciro Inácio Marcondes sobre as “contra-narrativas” de guerra na obra  de Harvey Kurtzman e H. G. Oesterheld tem afinidades com um estudo nosso, feito há uns anos (e centrado em representações do corpo), e contribui substancialmente para a continuação da mistificação de ambos os autores nos seus contextos específicos. A obra de Kurtzman são, claro está, as histórias que escreveu para a Two-Fisted Tales, sobretudo centradas na Guerra da Coreia, cujos “princípios”, nas palavras citadas, no artigo, de Bradford W. Wright, “pareciam inclusive vagos ou se tornavam desmoralizados”, o que desde logo contribuía para a posição de Kurtzman, temperando a ideia dele ser totalmente forasteiro aos discursos vigentes de então. A obra de Oesterheld é Ernie Pike, na sua fase original com Pratt, e cujo tratamento humano é de facto memorável e que vem corrigir todas aquelas ideias feitas de que os autores seguem necessariamente éticas do seu tempo (como se a própria ética não fosse fruto de uma permanente negociação social e cultural). No entanto, quando Marcondes fala do desaparecimento de Oesterheld como “confirmando” aspectos da sua arte (41), entrega-se a um exercício fugaz de biografismo insustentável e, lá está, mistificador (o uso da palavra “selvagem” para falar de uma personagem da Nova Guiné é também um deslize de colação à obra que merecia maior cuidado).
Pablo Gonçalo faz uma leitura de Valsa com Bashir, de Ari Folman, nas suas versões cinematográficas e de banda desenhada (sem, no entanto, especificar que esta segunda não é mais do que uma pobre estruturação das imagens do filme, não perfazendo propriamente uma obra autónoma), para auscultar os modos como “evidencia a invenção da memória como uma construção psicológica e social” (43), seguindo os passos de autores como Maurice Halbwachs, Marc Bloch, ou mais contemporaneamente, Alon Confino ou Susan Crane, ainda que não dialogue directamente com estes nomes. Seguindo essa esteira de que a construção da memória não é feita somente pelo indivíduo, mas sim por este nas suas sucessivas redes de relação, o trabalho de Folman na sua interrogação dos outros companheiros pela “experiência comum” permite “deslindar e redescobrir a experiência íntima e individual” (45). Citando a crítica Beatriz Sarlo, Gonçalo quer demonstrar como neste filme, “A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a do seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas de sua lembrança” (idem), e as interrogações do filme de Folman têm de facto a ver com a temporalidade dúbia da memória (aliás, numa outra citação de Sarlo fala-se do conceito de “pós-memória”, cunhado por Marianne Hirsch, e que tem um papel politicamente basilar neste filme). O ensaio levanta questões prementes, mas ao mesmo tempo revela alguns aspectos incompletos e que têm a ver precisamente com a ausência de citações a estudos já tentados e específicos: por exemplo, quando se escreve que “Algumas interpretações classificam Maus como uma narrativa de pós-memória” (48), conviria estipular quais e criticá-los (o de Hirsch é apenas um); o flashback não é propriamente um “recurso cinematográfico clássico” (48-49), mas nascido não apenas na literatura, autobiográfica ou não, como é a própria condição da memória humana, seja ela voluntária ou involuntária, se bem que a sua intensidade seja diferente; e ao se falar de uma “identificação e projecção” do espectador em relação a Valsa, a questão do como é que elas se estruturariam retira-lhes a pertinência, já que esses termos não têm poder explicativo em si mesmas. A análise das imagens reais, videográficas, no final do filme, é vista por Gonçalo como um retorno ao real, com o seu “poder de choque” (cf. Sontag, 54), mas pensamos que essa é uma forma problemática de as ler, sem as confrontar com a restante estrutura imagética do filme, que coloca em causa toda a sua relação com as questões, precisamente, de memória, verdade e testemunho.
Segue-se um estudo de Ligia Diniz que articula a leitura de Persepolis e Fun Home em relação à construção de identidade, associando-a aos contextos distintos nacionais, culturais e, claro, de género e sexuais tão importantes - mas bem diferentes - de ambas as obras. A ensaísta interroga, portanto, como “construir uma narrativa coerente para os personagens que somos” se estrutura nestes dois livros, mas há momentos - não apenas pelos recursos a entrevistas mas por afirmações textuais - em que não estamos seguros se a autora distingue de um forma explícita e cientificamente nítida a identidade textual, construída, destas personagens nos livros, e aquelas empíricas que corresponderão às autoras no mundo real. A autobiografia é um projecto que pode levar precisamente a crises nessa distinção, mas por isso mesmo o cuidado a ter deve ser redobrado. Quando discorre sobre o passado e a sua relação com o presente, falando-se de um passado “real”, parece apontar-se a uma ideia de que existirá um passado reificado, objectivo, passível de revisitação, o que é muito problemático: toda e qualquer memória é sempre uma construção e, para mais, dinâmica no seu próprio tempo. Quando Diniz escreve que “E o que pode representar melhor a fantasia de uma identidade plena do que uma autobiografia?” (61), infelizmente o papel da fantasia em Satrapi e Bechdel não é analisado. Mesmo o uso das imagens parece ser apenas pontual, com chamadas repetidas às imagens reduzidas à expressão “observe”, sem a consequente close reading que despertaria os conceitos inerentes à pesquisa. A identidade é algo holístico, quer pelos papéis sociais quer pelas opções de representação: “Se o dilema sobre sua [de Marjane] identidade cultural é a marca mais forte da obra, isso não elimina o fato de algumas de suas melhores páginas discorram sobre temas como o desenvolvimento da sexualidade e da feminilidade, a sua formação como artista plástica e o relacionamento com sua família” (69-79). Mas não é a identidade de Satrapi a cultural e a sexual e a de mulher e a de artista e a de membro de uma família? Uma citação de Bakhtin sobre um “excendente de visão” é muito promissora para a análise destes textos, e a distinção que Diniz faz entre a autora iraniana como construindo a sua identidade “revivendo o passado” e a norte-americana “relembrando-o” (67) é extremamente interessante. No entanto, um estudo mais completo da performance de Bechdel em termos de produção, o seu uso de documentação e sua integração transmediada na obra, e a camada fantasiosa de Satrapi poderia mesmo inverter estes termos, parece-nos. No entanto, como espaço heurístico, as questões levantadas por Diniz face a estas duas obras fundamentais da contemporaneidade criam um espaço de partida bastamente amplo.
Segue-se Stella Montalvão, com um estudo igualmente sobre a construção da identidade, mas desta feita focando-a num contexto de imigração, e elegendo o livro de Gene Yang. Obra complexa, de vários níveis narrativos e de representação, que jogam com estereótipos e géneros, e tendo em atenção que se está a falar aqui dos vários graus de imigração, exoticismo, a negociação intercultural, a assimilação versus a tradicionalidade, etc., a articulista destaca desde logo que “há o que se pode hibridar, mas há também o que não se deixa hibridar” (78): O chinês americano é um texto em que essas diferenças são visíveis e analisáveis. A descrição estrutural e narratológica do livro podia ser um pouco mais clara, sobretudo permitindo àqueles leitores que não leram a obra perceberem as estratégias de Yang, mas de facto ela consiste numa “amálgama” (80), que importa destrinçar analiticamente. A autora estuda as opções formais, as ligações intertextuais, a hibridação de géneros, e os limites desses mesmos encontros, que resultam precisamente em crises ou aporias de representação ou acção das personagens envolvidas.
Ludimila Moreira Menezes estuda em exclusividade Epiléptico, de David B., a nosso ver uma das grandes pedras de toque da emergência da autobiografia moderna em banda desenhada, querendo estudar nela “traçados de subversão” face à construção da identidade de Jean Christophe (o irmão mais velho de David, que sofre de epilepsia) pelo filtro da doença e da “moralização” que ela incute nos vários agentes societais. Bebendo acima de tudo de Foucault, como não podia deixar de ser, mas também Erwin Goffman, é analisado o longo e doloroso processo do surgimento da doença, as respostas tentadas e a forma como ela vai insuflando e moldando a vida da família, sob a forma da “ronda” que fazem em busca de tratamentos, experimentando de tudo um pouco. Na pg. 94, quando Menezes elenca todas as “curas” tentadas pela família de Jean Christophe, escreve “As intervenções de cada campo procurado engendravam além das atualizações dos estereótipos, regulamentações e normatizações ao corpo que deveria ser corrigido”, destacando-se a dimensão dos “desvios comportamentais” que estariam no cerne da doença. No entanto, há um problema que se engendra em termos de argumentação. A autora escreve “Ao redimensionar a estrutura de uma narrativa autobiográfica incorporando a linguagem gráfica, o autor distende o conceito de literatura…” (96, nosso itálico). Mas, David B. não incorpora uma linguagem gráfica a uma preexistente narrativa autobiográfica. Ele cria uma autobiografia em banda desenhada (ou uma autografia, no conceito de Gillian Whitlock); esta é uma banda desenhada, em toda a sua autonomia e especificidade. Um tal pressuposto teórico lançará de imediato a análises isoladas entre texto e imagem, em vez de se procurarem os modos holísticos que se seguem. Por exemplo, ao dizer-se que o “domínio do preto e branco esboça força, realismo, dor” (90), importaria perceber como é que isso sucede. A análise da dimensão visual, o como é construído visualmente um sentido, como é que uma metáfora visual (e em David B. elas são fundamentais) elabora um significado, revelará sempre pistas prementes: por exemplo, a ronda acima citada não deixa de revelar, da parte do meganarrador, uma espécie de desprezo por todas as curas e um prazer em revelar o quão falhas elas são enquanto discursos. Menezes apresenta alguns momentos de close reading das imagens, falando mesmo do “espaço imagético da narrativa”, mas não as suficientes, como por exemplo a falta de clareza sobre o modo como a doença é representada. Não se trata tão-somente de uma “entidade zoomórfica” (97) que surge como tal. Seria preciso, e permitam-nos citarmos da nossa própria tese de mestrado, ver essa doença como um “contínuo impermeável e imbatível” e que “L’ascencion du Haut Mal dá conta precisamente da evolução, das metamorfoses desta doença, como se se tratasse de um ser independente, paralelo”. Apenas a título de uma análise é que essa separabilidade pode ou deve funcionar, mas para regressar sempre ao seu corpo completo. Mas independentemente disso, “a narrativa autobiográfica de David B. constrói um espaço político de resistência social ao questionar se essas buscas incessantes não apagaram as possibilidades identitárias do irmão mais velho” (98) e o modo dessa resistência é esclarecido extraordinariamente por Menezes.
Maria Clara Carneiro apresenta aqui algumas considerações propedêuticas do seu projecto de doutoramento, em torno da Oubapo, ou de várias abordagens experimentalistas à banda desenhada. Fazendo sobretudo uma introdução histórica da Oubapo (explicitando as suas relações com a Oulipo), um arrolar das suas estratégias, trabalhos e publicações, e em que medida é que ela responde ao seio de autores e trabalhos da L’Association, tenta perceber-se como é que estas experiências insuflam um fôlego diferente neste meio artístico. Porém, arvorar L’Association a um zénite na ausência de um enquadramento maior, que abarcasse outros projectos como a ego comme x ou a Amok+Fréon, não abona à clareza dos contornos conseguidos. Citemos o que escrevemos em correspondência com a autora: “O ‘corte’ que L’Association faz é menos radical do que esses outros agentes da banda desenhada contemporânea francófona: essa casa editorial, aliás, confirmam muitos dos pressupostos desenvolvidos nos anos 1960 e 1970 de um crescimento ‘literário’, sem com isso querer dizer que a parte visual foi descurada, claro está. Por outro lado, é divertido o ataque de Menu aos 48CC, mas a verdade é que ele mesmo, e os seus comparsas, também instituíram políticas de formato fechadas na própria editora, apesar das liberdades individuais de cada projecto. E é irónico, claro, que muitos desses formatos (sobretudo o Ciboulette) foram copiados por editoras mais convencionais, e por vezes mesmo a política de criação de autobiografias, famílias estilísticas, etc. Outra coisa tem a ver com o facto de que esse ‘corte’ serviu para depois alguns autores arranjarem trabalho no seio do mundo comercial: Trondheim, Menu, Sfar, David B., não só fizeram trabalhos para editoras comerciais (Dargaud, Dupuis, Delcourt, Gallimard, a nova Futuropolis, etc.) como até se tornariam editores de certas colecções... Mais, independentemente de ser ‘irónico’ ou não, coisas como Lapinot, Donjon, Le chat du Rabbin, etc, confirmam os géneros clássicos da banda desenhada e suas estratégias comerciais”. Um estudo deste grupo de trabalhos é muito necessário, até para reforçar a própria potencialidade artística da banda desenhada, mas ela não pode ser isolada teoricamente do seu contexto histórico, económico e social. Quiçá por via da necessidade de tornar todos estes artigos mais “suaves” à recepção da academia, e como outros autores destes ensaios, Carneiro opta por descrições algo desviantes dos objectos que eles são. Por exemplo, diz-se de Désoeuvré que “Trondheim escolheu realizar tal ensaio em desenhos” (105), mas mais uma vez estamos numa espécie de vergonha em admitir que é possível escrever seja o que for em banda desenhada
O único estudo que aborda a banda desenhada japonesa é de Otavia Alves Cé, que se concentra num só título, Fruit Basket, um shoju mangá de Natsuki Takawa, visto sob a perspectiva da construção de género de Butler e Haraway. Este é um ensaio de análise pormenorizada e de crítica textual, que se concentra na figuração e comportamento das personagens, para encontrar, no seio de um título que, à vista desarmada, pareceria confirmar as expectativas dos papéis sócio-sexuais, na verdade apresenta alguns pontos de diferença e mesmo resistência. Se bem que não se entenda muito bem o que significa a “linearidade masculina” (121) que é superada pela mangá, e parecendo-nos que há mesmo uma lata reificação da produção japonesa por oposição a uma outra reificação da banda desenhada ocidental, a análise cultural desta série é muito informada por teorias contemporâneas, e tendo em atenção a multimodalidade desta arte, prestando contas dos nomes das personagens, linguagem empregue, aspectos relacionados com os trajes, comportamentos, relações interpessoais e utilizando a “gramática visual” de Kree e Leeuwen para o exame das imagens. Além do mais, a autora é de um cuidado extremo e salutar em não se desligar ela mesma no seu papel activo de observadora/criadora de discurso: “ideologia é aqui concebida como parte do processo interpretativo, no qual estou implicada como produtora de significados” (123). Um aviso excelente de quem nem sempre os críticos e investigadores estão alertas.
Paulo Ramos é o único autor de todos estes ensaios que se centra num caso de estudo brasileiro, circunscrito às reacções polarizadas em torno de cartoons ou charges publicadas em jornais. A primeira é de João Montanaro, que saiu na Folha de São Paulo, após o desastre ocorrido no Japão a Março de 2011. Outra é de Solda, no Paraná On-line, em relação à visita do Presidente dos EUA, Obama, ao Brasil. Através de uma leitura das cartas ao jornal, das várias opiniões, e comparações com outros casos similares, o autor mostra como os cartoons, pela sua própria natureza, convidam, incitam ou permitem uma “leitura plural” (143), a qual pode ganhar contornos de extrema controvérsia, como os casos das famosas caricaturas a Maomé do Jyllands-Posten (citado) ou outros. Um dos aspectos importantes desta recepção social é haver uma grande parte do público que considera este formato (mais que um género) necessária ou essencialmente humorístico, o que leva então a uma reacção fortemente crítica do trabalho de Montanaro. De certa forma, essa “cegueira aspectual” não é muito diferente daquela que informa uma visão da banda desenhada como necessariamente infantil, ou de escapismo, ou narrativa, etc. Ramos emprega a noção de “parceiros legítimos”, oriundo de um analista de discurso, Dominique Maingueneau (que tem algum trabalho em torno do uso de imagens relacionadas com texto), para, nesse sentido, explicar a formação de um “acordo, pressuposto, não declarado (contrato, que faz parte do jogo comunicativo)” (146), no interior do qual os interlocutores entendem que papéis devem cumprir. Assim, há uma “produção textual” que não se cinge somente ao autor, mas sim ao acto a sua recepção, o que leva à tal multiplicidade de sentidos, informada por outras dimensões sociais, e é o fabrico dessa diversidade que Ramos aborda.
Benjamin Picado apresenta um artigo denso e de abordagem geral, intitulado “Retórica e poética do traço: o estilo na caricatura e a estrutura episódica do humor gráfico”. De uma forma sucinta, podemos dizer que o autor tenta auscultar a essência original do humor gráfico como estando menos relacionado com o mecanismo do gag do que com uma especificidade formal das figurações no seu interior. Bebendo de princípios desenvolvidos pela escola da “figuração narrativa” e (alguma) história da caricatura, o autor chega a ideias como “a essencial plasticidade do desenho que está em jogo aqui, ou seja, os princípios pelos quais sua forma é apta a sofrer modificações, sem que os aspectos de recognição dos motivos visuais se percam”. O autor estipula uma diferenciação em dois princípios de modificação da forma visual, a metamorfose (“comparação entre o afigurado e algum segmento da ordem do mundo vivente”, 150) e a anamorfose (“a expressividade global do modelo revela aspectos dignos de destaque no desenho de humor”, 151), mas na ausência de exemplos concretos (apenas um, o de Daumier, é dado), mesmo que textualmente, impede a que os conceitos fiquem totalmente esclarecidos, e estamos em crer que a diferenciação criada seria desarmada por autores contemporâneos como, a título de exemplo, Hanoch Piven. O autor é muito sensível a um aspecto da caricatura, que, em vez de mergulhar na sua raiz etimológica (“carregar”, “adicionar”), enfatiza a sua “incompletude” (152), o seu aspecto “lacunar”, e de facto há nela mais um apagamento de características desnecessárias à recognição e cognição dos novos sentidos, do que um acrescento (como é provado mesmo por alguns testes cognitivos feitos nos anos 1980); “sua virtude comunicacional residiria precisamente na incompletude pela qual os traços do desenho favorecem uma regência textual de sua significação” (157) é a frase crucial deste estudo, a nosso ver. Picado faz uma integração histórica muito problemática, contudo, quando fala do advento da banda desenhada no final do século XIX – em vez de procurar as suas várias acepções e usos “cultos” no seu segundo quartel – ou do “sucesso da caricatura precisamente nesse período” (153-154) o que, não sendo incorrecto, parece apagar o seu uso fulcral no século XVIII em Inglaterra, sobretudo, com todas as linhas de força que isso implicou na história das estampas, desenho de imprensa, humor, cartoon, narrativas visuais, mass media, etc. e uma associação dessa mesma história aos parâmetros tecnológicos revelar-se-iam frutuosos (de uma maneira análoga ao que Bukatman faz no seu livro, em relação a outra época). No entanto, a promessa de se estabelecer a partir da discussão de Picado uma “arqueologia das formas do discurso visual, o lugar mesmo da plasticidade do desenho dos quadrinhos (sua matriz caricatural) e de seu modo específico de favorecer o desenvolvimento a trama (sua dimensão mito-funcional)” (159) é o fito deste ensaio, conquistado com elegância e exigência pelo autor.
Vinicius da Silva Rodrigues apresenta um estudo que bebe de uma experiência directa de ensino escolar, procurando entender – e de uma forma exemplarmente não-instrumentalizadora, e muito atenta às especificidades formais, conceptuais e temáticas da banda desenhada – como é que o conceito de “herói” (no seu sentido narratológico) pode ser abordado nas aulas de português, lendo livros de quadrinhos. Os seus exemplos principais são retirados de exemplos do mainstream norte-americano de super-heróis, mas as suas conclusões e ferramentas podem ter outros contextos. Existem alguns aspectos pouco desenvolvidos (por exemplo, a ausência de exemplos concretos não nos ajuda a compreender que tipo de “poéticas visuais estão também associadas ao texto escrito” (166), e remeter para “a história social das artes” não satisfaz; e a consideração de que “a ética prega [o] que todos deveriam fazer” (174) não contempla a construção social e interpessoal da ética, e não esclarece como é que os heróis arrolados respondem a esses princípios, mesmo que gerais). Mas por outro lado, a consideração das teorias de Georg Lukács, vários académicos brasileiros (Flávio Rene Kothe, Aeon J. Skoble) e até mesmo das reduções de Joseph Campbell, permitem ao investigador um retrato global muito forte, em que “as mudanças conceituais obtidas a partir das diferentes respostas que nos dão os heróis da ficção são as mudanças contextuais exigidas ao personagem no mundo real dos leitores/espectadores” (180).
O ensaio de Rafael Soares Duarte parte das teorias de recepção de Wofgang Iser, mas relacionadas com a teoria de McCloud, para explorar como é que o “vazio” entre vinhetas, vazio “textual”, mas também aqueles “vazios intersemióticos” (204) existentes entre desenho e texto, “duas formas distintas de compreensão”, se podem constituir como “criadora de conectabilidade textual” (203), tema deveras promissor. O autor identifica muito bem, e contra Iser, que esses vazio, físico até, não é meramente “adicional ao informacional” mas antes “parte essencial e constante de constituição e organização sintática e semântica” da banda desenhada (205). E deveras é. Mas já discordamos da ideia de que esse vazio criaria “imagens de segundo grau” (207) tout court, uma vez que essa terceira imagem criaria outros números de intervalos, dando início a uma infinita, e ad absurdum, multiplicação de vinhetas/imagens e vazios/intervalos irreais. Se nos é permitido, a argumentação solidamente filosófica e sofisticada de Duarte, bebendo de Nancy, Blanchot, Deleuze, Agamben, recorda-nos um outro trabalho académico nosso, jamais publicado, com afinidades temáticas e metodológicas. Esse ensaio era intitulado “Ponto nulo”, e tentava compreender o alcance de uma interpretação desses intervalos da banda desenhada, assumissem eles as formas que tivessem, a partir do conceito das “pequenas percepções”, estabelecido por Leibniz mas no seu filtro por Deleuze, e pela noção deste último de “virtual” (e que até ganhará novos contornos se considerarmos os estudos mais recentes de um filósofo contemporâneo como Brian Massumi). A argumentação de Duarte é, como dissemos, sofisticada, mas mais uma vez se peca por se formular à margem das discussões havidas sobre estes mesmos temas no seio dos “comics studies”. Tivesse esta perspectiva e análise teórica encontrado um diálogo com o trabalho sobre artrologia de Groensteen e as críticas consequentes de Neil Cohn (que também aborda McCloud), encontraria alguns instrumentos aperfeiçoados de análise dos vários modos da tal sintaxe e semântica, precisamente corrigindo a noção de que a ideia “fantasmática” que une quaisquer duas imagens emerge “entre” as vinhetas, já que, cognitivamente, ela só se pode formar após a leitura de ambas, retrospectivamente, aumentando a carga fantasmática dessas “vinhetas imaginárias”. E, tivesse o autor arrolado exemplos provindos de campos mais experimentais ou de um quadro de referências mais alargado (imaginemos que incluindo Warren Craghead, Molotiu, Manouach, Coché, Koch, e até Buzatti, entre outros), teria exemplos concretos de bandas desenhadas que estão fora do “campo da prosa” que ele vê usualmente associado a esta arte (cf. 214). Infelizmente, mesmo com as descrições que faz de obras de Laerte ou de Samuel Casal, a ausência de imagens impede uma compreensão cabal (não identificámos a de Laerte, no seu blog). No entanto, a forma como o autor tece a compreensão de Maurice Blanchot das metáforas como “facilmente desvendáveis”, e preferir uma detecção (no caso, a poesia de Mallarmé) de “imagens-negações” (211), ou o modo como as lições de Jean-Luc Nancy permitem pensar nas relações entre texto e imagem como conduzindo a um “cruzamento d[e] dupla referência” (214), abrem toda uma possibilidade de interpretações poderosas das percepções específicas a este meio em particular. E o fito do ensaio de Duarte, seja como for, é auscultar a coincidência entre “um limite métrico” e “um limite sintático” (palavras de Giorgio Agamben) na própria banda desenhada, possibilidade essa que leva à existência do enjambement, ou transição de sentido, na estrutura própria da banda desenhada (cf. 215 e ss.), e como os sentidos se constroem sempre pela existência de um vazio, ele mesmo, fundador da relação de significação. Fito esse, claro está, decididamente conquistado.
O texto de Duarte é o último da colecção, mas há um outro, que agora abordamos. “Os sons das palavras: possibilidade e limites da novela gráfica”, de Elvira Vigna. A leitura do seu título remeteu-nos de imediato para uma série de artigos reunidos no fundamental The Language of Comics: Word and Image (da UPM), e criou-nos um certo horizonte de expectativas. Ora, mesmo que aceitemos que esses horizontes possam ser corrigidos ou postos em causa, não se esperaria uma sua derrota total. E este é o ensaio mais problemático de toda a colecção. Uma frase no primeiríssimo parágrafo modela o problema: “a necessidade de um pensamento sobre sua estrutura específica [da novela gráfica], sua potencialidade, assim como seus limites, neste seu novo papel pretendido de suporte a uma expressão artística de realce a narrativas ficcionais. Este pensamento, pouco desenvolvido em nível acadêmico internacional…” (185). Apetece perguntar, de uma forma enfática, “Como?”. Mesmo aceitando que a autora pretendesse apresentar uma provocação em relação aos discursos existentes e tecidos em torno desta arte, que pudesse patentear, ancorado numa área disciplinar qualquer, uma crise nos pressupostos da teoria ou teorias da banda desenhada, isso só seria aceitável no seio de um conhecimento e domínio da bibliografia existente. O problema continua: “O tempo e a manipulação de suas pausas é o que a novela gráfica tem de interessante, e é também o que a ameaça tolhê-la para sempre em um nível pouco sofisticado de qualidade literária” (186). De novo, repetimos a surpresa. Vigna, ao longo do seu texto, aborda a questão da diferença entre a percepção temporal específica a este meio, a diferença entre tempos da história e do discurso, as relações entre texto e imagem, a existência de “subtextos prévios” a qualquer imagem, o suporte material e os formatos, a estrutura e composição de página, as camadas emotivas possíveis de se libertarem na recepção, e aspectos que se relacionam com as várias dimensões das fontes ou tipos de letra usadas na banda desenhada… Porém, quando pensando que toda esta argumentação é feita sem apresentar sequer um único exemplo deste território, preferindo falar do campo das artes plásticas (Holbein, Paul Klee, Mira Schendel), mas não para construir um panorama contrastivo, e na conclusão, escrever: “Mulheres, gays, negros ou qualquer outro grupo que receba valoração negativa na cultura dominante (…) talvez criem novelas gráficas que ataquem de algum modo os quatro pilares de sustentação e sedução descritos neste artigo” (199, nosso itálico; e continua, “A representação desses grupos dentro de novelas gráficas, aliás, é muito pequena”… “se acontecer…”), só podemos chegar à conclusão de que se institui aqui um grande equívoco. E a única presença de Will Eisner como referência específica aos estudos de banda desenhada leva à corroboração desta ideia. Tal como na lei o seu desconhecimento não desculpa o incumprimento, o desconhecimento aparente da autora dos trabalhos de Groensteen, Peeters, Chavanne, Baetens, Hatfield, Magnussen, Kunzle, Beröna, Cohn, Kannenberg, Harvey, Ault, Lefévre, Inge, Wolk, Robbins, Miller, Smith e Duncan, Witek, Singer, Gordon, Coogan, Merino e muitos outros, já para não falar mesmo de McCloud ou de trabalhos que importam aproximar da banda desenhada, retiram totalmente o poder das considerações que deseja tecer, as quais ora repetem lições feitas há muito, ora, por vezes, de modo pouco sofisticado face a esses mesmos discursos. A autora até poderá conhecer alguns ou todos esses exemplos, é verdade. O “pouco desenvolvimento internacional” é, obviamente, falso. Mas o facto de não os mencionar, ou a dar um só exemplo – alguns dos quais presentes nesta colecção e seguramente que nas Jornadas - dos autores “mulheres, gays, negros” que, de facto, criaram “novelas gráficas” que poderiam ser auscultadas nessa óptica, tornam a discursividade deste ensaio inaplicável e insustentável.
O cômputo geral do livro é positiva, sem dúvida, mas há muitos aspectos em que se desejaria um maior controlo e integração destes estudos num diálogo mais alargado, em termos do saber lavrado da área. Muitos autores ainda insistem na ideia, redutora, de a banda desenhada ser uma “literatura feita de palavras e imagens” (Diniz, Menezes, e, com um ligeiro acerto, Duarte) ou um “género” (Montalvão), o que obriga ao desejo de uma maior sofisticação no seu tratamento. Há também quem repita a ideia de ser um “híbrido” ou uma mistura entre imagem e texto, mas sem fazer menção a estudos que tenham esclarecido os contornos desses termos, ou as potencialidades teóricas que eles despedem. De novo, estas são palavras que não têm poder explicativo em si, não são mágicas, e importaria ser mais específico. A forma como certos termos estrangeiros são traduzidos, como o francês suite (por “suíte”) ou o inglês closure (por “conclusão”) também não contribuem para um aumento apropriado do vocabulário crítico em português, já que esses termos têm significados muito específicos e desde logo significativos que devem ser cuidadosamente transpostos.
Numa última consideração, menos formal e superficial, o livro peca por uma gritante falta de revisão textual (as gralhas são muitas ao longo dos textos) e por um arranjo de composição gráfica por vezes confuso e de pobre reprodução das imagens.
Nota final: agradecimentos à editora, Regina Dalcastagnè, pelo envio do volume, e a Maria Clara Carneiro, pelos esclarecimentos e troca de correspondência. 

22 de março de 2013

Três Sombras. Cyril Pedrosa (Polvo).

Depois da edição em português de Portugal, cujo sucesso se deve mais a circunstâncias locais do que a qualidades inerentes da própria obra que a permitissem ombrear outras num contexto mais alargado, não é de todo estranho que se procurem modos de distribuição de outros seus trabalhos, sobretudo aquele que mais tem angariado crítica em seu torno. É dessa forma que Três Sombras surge, nessa economia de circulação.
Se por um lado, não pode haver dúvida de que, no crescimento social e estético da banda desenhada verificado na última vintena de anos (que serve de contrapeso à sua progressiva perda de significado em termos de presença mediática, linguagem de massas, etc.) temos verificado obras cada vez mais maduras, complexas e capazes de se integrar em tendências artísticas, culturais e intelectuais suas contemporâneas, e não mais ora a reboque de alguns aspectos superficiais lavrados sobretudo noutras linguagens (cinema, artes visuais, literatura) ora totalmente isolada dessas tendências, ao mesmo tempo não deixa de ser pertinente a crítica a fazer, de que muitos trabalhos surgem, no interior da banda desenhada, que mimam fórmulas de sucesso, ou aspectos da sua própria superfície, mas sem jamais serem tão profundos como os seus melhores exemplos. Isso é inevitável, e faz parte mesmo dos ritmos internos, da respiração, de qualquer meio, mercado ou tecnologia (termos diferentes que podem, cada um a seu modo, descrever ou constituir a banda desenhada).
Três sombras, parece-nos, é um livro que se encaixa nesse corpo de trabalhos. Aparentemente, pela sua apresentação física, temas nominal, e explorações de estilo, tratar-se-á de um livro que parece querer almejar uma espécie de monumentalidade que nunca alcança, que pretende mimar uma gravidade que não se consubstancia, por uma contemporaneidade no tratamento dos afectos que não se consolidam. Acaba por ser mais uma rábula leve, com alguns pontos de interesse, sem dúvida, mas sem rasgos de imaginação que o tornem de facto excepcional.
Esta é a história de um amor paternal, de um sacrifício a que, em princípio, qualquer progenitor se proporcionaria na defesa da sua cria, de uma viagem cujo preço não é nunca negado nem adiado. Face à prospectiva morte do seu pequeno filho Joaquim, anunciada pela chegada de três cavaleiros (as “três sombras”), as quais depois apercebemos, sem nunca serem nomeadas como tal, as Parcas (uma das figuras segura uma tesoura, recordando inevitavelmente Atropos), o pai decide fugir-lhes, alongando dessa forma a vida do filho. Essa fuga dá entrada ao livro de outros troços narrativos, divididos em “episódios”, “momentos”, dando-lhe uma estranha estrutura de partes desiguais, mas que não deixam de contribuir para a aventura iniciática que todo o enredo significa.
De facto, todo o ambiente do livro - trajes, arquitectura, modos de viagem, urbanização, objectos, tecnologia, alimentação - apontam para um intervalo em torno do século XVIII, provavelmente em França, claro, mas há também pontos de escape dessa era, e uma ausência de balizas temporais ou geográficas exactas (a tradução dos nomes, nesta versão, para português, corrobora essa deslocação) reforça a ideia de fábula, no seu sentido popular, necessariamente ahistórica. A fuga do pai e filho para uma suposta terra dos antepassados permite a leitura fácil e biografista de que se encontraria aqui uma ideia percursora do autor revisitar as suas próprias raízes familiares, que se confirmariam em Portugal, mas em nenhum caso se fazem sentir explorações verdadeiramente ancoradas em especificidades culturais que permitissem encontrar uma  dimensão forte. Tudo fica na esfera do fabuloso (enquanto qualidade da fábula, compreenda-se).
A relação entre pai e filho, por exemplo, nunca é explorada senão em torno da dependência do segundo pelo primeiro, ou da bonomia do pai para com a criança, na cena idílica, pretérita, das primeiras páginas, que parecem confirmar toda aquela ideia nostálgica que fazemos da própria infância (se bem que aqui é o pai que a forma, o que tampouco é de estranhar). Não há aqui de forma alguma espaço para as dúvidas e as brechas negativas que existem, de facto, nas relações filiais, nem nas distracções e autonomias dos pais para com os seus filhos, mas uma linha quase neutra de “felicidade”. Tudo o que se segue é uma fiada mecanicista, de causa-consequência, com algumas ideias mais ou menores expectáveis das moralidades contrastantes entre as “boas gentes” e os “aproveitadores”, que apenas corroboram, sempre, esse tal ambiente popular e infantil de um conto moralizante.
O livro atravessa de facto vários registos, que apenas retrospectivamente são subsumidos a uma só unidade, entendida até do modo mais clássico em termos literários ou cénicos. Esses registos tanto têm a ver com modos – o realista, o fantástico, o fabuloso, o parabólico – como com géneros – “capa e espada”, “piratas”, “high fantasy”, etc. Pedrosa parece beber de toda uma série de tradições da banda desenhada francesa, quer a mais clássica quer a mais contemporânea, mas que navega nas águas familiares destes géneros, para lhes responder com uma espécie de colagem.
Em termos visuais, mais do que em Portugal (em termos de produção original, anterior a este livro), Pedrosa não abandona aqui os instrumentos que terá adestrado na indústria da animação. Existem diferenças internas, e delas falaremos. Mas quase tudo se pode agregar numa única ideia, que é a do esboço, a do apontamento a lápis, o da pesquisa basilar. Algumas páginas, algumas vinhetas, parecem aqueles estudos primeiros que existem para projectos de animação, o mais próximo que existe da tradução da visão interna do criador, antes da entrega aos instrumentos técnicos que a tornarão possível. Muitas vezes, esses mesmos materiais podem ser fruto de admiração estética, e se não tiverem conhecido essa sua realização final ganham uma espécie de patina de maravilha acrescida (pensamos nos desenhos de um Kay Nielsen ou de Sylvia Holland para os vários projectos da Disney que nunca foram feitos). Sobretudo por haver neles, e isso é visível no trabalho de Pedrosa, uma espécie de abandono na alegria do próprio acto de desenhar, sobretudo notável naqueles elementos de “excesso”, que ultrapassam a mera necessidade representantiva (voltaremos a esse “excesso”).
A figuração também é bastante devedora de uma certa escola da animação, na qual a plasmaticidade e a notória estilização bem demarcada – e até formulaica, poder-se-ia dizer – das personagens leva a uma clareza total na legibilidade das mesmas (o aspecto formulaico prende-se com as opções de desenhar um pai/homem hercúleo, as mulheres diáfanas e élficas, a criança em modo quase-chibi, etc.). Aliás, quase nos perguntamos se não é por trabalhar no interior dessa mesma estratégia figurativa, que convida ou constitui um fundo emocional restrito, que Pedrosa se circunscreve nessa exploração afectiva mais usual, expectável, em vez de mergulhar numa mais surpreendente e incómoda interrogação das relações entre membros de uma família, e o espaço que está reservado ao amor, ao medo, à morte (tão bem explorado noutras obras, como as de Ware, Bechdel, David B., e, noutro grau, Peeters, Gallardo, ou outros).
É precisamente o convívio dessas figuras legíveis e claras e os excessos lúdicos do lápis ou do pincel que dão a Três sombras uma qualidade algo etérea. É preciso temperar esta descrição na medida em que esse trabalho final não se trata tanto de uma exploração pela materialidade da grafite como pode ser verificada em autores distintos como Vähämäki, Marco Mendes ou Chihoi, mas não deixa de haver uma busca pelas várias intensidades possíveis com os lápis e pincéis: desenhos de linhas negras simples contra fundos despojados e brancos, outros mais densos, com figuras bem demarcadas mas integradas em espessos rendilhados (como que no Mattotti de Stigmata), episódios com pinceladas meio-secas, moldando-se objectos esquálidos e isolados, outros ainda onde se joga com inscrições brancas sobre fundos negros recordando a linogravura, e muitos com vários planos em que cada um deles segue essas regras várias… Todavia, cada uma dessas opções procura uma razão diegética, ou cria-a, cada “estilo” remetendo para um ambiente propício ao que é representado ou incutindo-lhe o timbre apropriado, por assim dizer.
Todavia, o balanço final é o de um livro que apresenta os seus elementos de uma forma elegante, fluida, mas cujo impacto emocional é muito restrito e convencional. Um livro que  encontrará seguramente um público alargado, sobretudo num sector mais jovem e em aprendizagem precisamente das questões mais prementes da vida emocional, mas que não atinge a sofisticação que, como dissemos acima, parece por vezes querer alcançar.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

20 de março de 2013

El Iluminado. Ilan Stavans e Steve Sheinkin (Basic Books)

Tendo recebido este livro, a sua leitura e apreciação depararam-se de imediato com uma série de resistências, sobretudo visuais, que colocaram em cheque a forma de o abordarmos. Comecemos de uma forma relativamente óbvia. Este livro é uma colaboração entre um investigador académico, crítico e editor literário, Ilan Stavans, e um artista e escritor (sobretudo de literatura para jovens adultos, mas de uma mão-cheia de projectos de banda desenhada, como os das aventuras do Rabbi Harvey), Steve Sheikin. A primeira dimensão que importa salientar é que, em muitos aspectos, El iluminado não deixa de se mover no interior de uma economia de género muito aparentada a sucessos da literatura de massas como os thrillers de Dan Brown ou o seu congénere nacional, José Rodrigues dos Santos.
El Iluminado trata da busca, no Sudoeste dos Estados Unidos da América, ou para ser mais preciso, no Novo México (cuja história e relação com o resto da União sublinha sobremaneira as várias camadas linguísticas, étnicas, religiosas e políticas que compõem a sua identidade e aquela mais geral do país e dos territórios vizinhos), pela comunidade dos “marranos” locais, isto é, os cripto-judeus, toda aquela população judaica que se viu obrigada pelos reis de Espanha (e, mais tarde, de Portugal) ou a fugirem dos reinos respectivos ou obrigados a converter-se ao Cristianismo, para manterem as suas tradições ocultamente. Recordemos, de uma forma esquemática, e na óptica do tempo, que a Inquisição não perseguia os judeus, mas sim os conversos, ou aqueles cristãos “judaizantes”, isto é, que tinham práticas ou cumpriam ritos “heréticos” face aos apostólicos romanos. No fundo, a conversão dos judeus permitia persegui-los no interior dos quadros legais e eclesiásticos em vigor, uma vez que já não eram judeus, mas heréticos. Apenas uma das facetas da ginástica conceptual e legal de que a Igreja dispunha para levar a sua avante, e que ainda hoje nutre lições para muitas esferas dos poderes em vigor. Essas acções espoletariam, portanto, uma diáspora que ainda hoje continua a fazer sentir a sua presença e consequências, sendo uma das suas dimensões a dos “marranos”. Parte desta população ter-se-á deslocado no interior dos territórios “mexicanos”, ao ponto de ter sobrevivido, ocultamente, até aos dias de hoje. Não apenas ocultos dos poderes institucionais, como, e eis o grande problema, como ocultos de si mesmos, já que até o descritivo de “judeu” desapareceu, e as práticas dessas comunidades são vistas, pelas mesmas, como “tradicionais” mas associadas ao Cristianismo geral, e não a uma religião diferente. A sua “recuperação” tem sido lenta, mas cada vez mais assertiva, apesar das resistências (novas) quer dos próprios membros dessas comunidades, quer dos representantes das hegemonias sócio-culturais em questão, quer ainda dos defensores de um judaísmo homogéneo (as mais das vezes, os ashkenazi, que quase se impõem como norma de pureza, dogmática e, em algumas ocasiões, raiando o racismo), em vez de abraçar desde logo a multiculturalidade do judaísmo (histórico e contemporâneo).
Ora, todas essas linhas e problemáticas encontram-se embrulhadas neste livro, ainda que no interior de uma intriga relativamente linear. O título, e grande parte da matéria do livro, diz respeito a uma figura história real: Luis de Carvajal, o Novo. Esta figura viveu no México no século XVI como cripto-judeu e, depois de muitas peripécias, fugas e processos, acabou por morrer num auto-de-fé sem abjurar a Lei de Moisés. Aliás, o seu “testamento” é apresentado no seio desta história, como uma prova da sua resistência, que pode servir de modelo aos judeus (ou outras pessoas que daí saibam tirar partido). A intriga parte de um caso policial em torno de uma outra personagem, fictícia, Rolando Perez, que em muitos aspectos “repete” os passos de Carvajal, mas num contexto contemporâneo, nos Estados Unidos - multicultural mas não sem crises. Rolando compreende que algumas das tradições familiares - como acender as velas à Sexta-Feira, preparar o pão ázimo, fazer o mínimo no Sábado, etc. - os ligariam possivelmente aos cripto-judeus de outrora. A única diferença, e este é um padrão que se repete noutros locais, como em Portugal, cuja história das comunidade sefarditas ocultas apenas começou a ganhar contornos de regresso à vida pública no início do século XX, e mesmo hoje se mantém à margem de uma discussão ou conhecimento público (insiste-se na monocultura católica portuguesa na esmagadora maioria dos canais), é que estes modernos cripto-judeus não o sabem ser: as tradições repetem-se mecanicamente mas sem associação ao seu significado religioso. Essas memórias mantêm-se não na consciência, mas nos gestos. Ora Rolando foi capaz de ver para além dessa mecanicidade e, através de alguma investigação e da fantástica descoberta de manuscritos secretos (de Carvajal, mas fictícios), de aceder a essa memória ancestral, que põe em movimento toda a parte “policial” de El Iluminado. Logo, poder-se-ia argumentar que parte do programa deste livro é discutir, pôr em causa, revisitar, a falsidade das “culturas únicas” de uma nação-país, e de explorar as complicadas raízes, e os modos de mescla que efectivamente ocorreram, a nível da religião, da cultura e, porque não?, das próprias línguas e sangues.
Um aspecto curioso da narrativa é que o próprio autor, Stavans, surge como ele mesmo na diegese, enquanto académico (que é) e “detective” (no livro apenas?). Isso permite que possam surgir largos momentos de exposição (ironizados pelas próprias personagens), a um só tempo alertando para o seu aspecto maçudo e imposto e justificando-os. Stavans, claro, não é propriamente um herói. Se, como o Professor Langdon de D. Brown, os seus conhecimentos históricos e documentais lhe permitem algumas pequenas descobertas e soluções, estamos longe quer da escala do que esses outros livros e adaptações fílmicas implicam quer do aparente supernatural poder da personagem mais famosa. Aliás, são variadíssimos os pormenores da vida quotidiana, banal ou mesmo aborrecida do professor universitário Stavans, apesar de surgir uma personagem, uma espécie de arqui-inimigo basilar, na figura de outro professor académico, rival, chamado - trocadilho propositado, seguramente - Contreras. Curiosamente, algumas das acusações que Contreras faz a Stavans, como as de traduzir para Spanglish os livros de Tintin ou entregar-se a exercícios de uma divulgação mais popular da história e da cultura, correspondem, na verdade, às actividades de Stavans-o-autor. Não deixa de ser uma curiosa, e não sem falta de humor, do autor fazer-se publicidade a si mesmo através daquilo que os seus detractores lhe dizem…
Uma outra dimensão estimulante do livro é a sua matéria verbal, que se é esmagadoramente em inglês, mistura muitas expressões ou troços de espanhol, tocando nessa realidade que é o Spanglish, e não há, obviamente, pela parte de Stavans (que nasceu no México, mas é “branco”), um esquecimento de frases feitas do iídiche. Muito do humor que percorre estas páginas está associado precisamente à linguagem, aos diálogos. É possível que isto levante algum problema para leitores monolingues, pois não se providenciam jamais traduções, mas essa é parte do seu charme.
Aquela resistência a que aludimos no início do artigo é, como dissemos, de natureza visual. Basta olhar os desenhos aqui colocados para perceber parte do problema. Mas como responder-lhe? Já em ocasiões anteriores falamos do possível emprego da banda desenhada - enquanto linguagem, estrutura, conceito, etc. - a objectivos que não necessariamente artísticos. Por exemplo, fitos comunicativos (que todos conhecemos, desde os panfletos de segurança aérea a recenseamentos eleitorais ou instruções de montagem). Ou então explorações narrativas que tornam, de certa forma, secundária a camada visual, reduzindo-a quase a uma inconografia mínima para “prender os actores”… É o que ocorre em alguma mangá e é o que nos parece ocorrer aqui.
O desenho de Sheikin é difícil de julgar. De uma forma quase epidérmica, apetece dizer que é feio, ingénuo, fraco. E não o deixa de ser, sendo básicas não apenas a figuras, como toda a dimensão visual: a aplicação da cor, o trabalho de composição, a perspectiva e elaboração de cenários, a flutuação pouco elegante entre vinhetas vazias com a excepção das personagens e outras mais cheias mas confusas. A palavra naif deveria cobrir todos esses aspectos. Quando lemos algumas leituras deste livro e se fala de uma contribuição para a própria ideia da “graphic novel”, não compreendemos como é que isso possa ocorrer, a não ser pela possibilidade de nos desligarmos em absoluto do aspecto visual, o que nos parece ser um contra-senso na banda desenhada. Será o trabalho de Sheikin desprovido de validade? Não, claro que não: ele não deixa de ser o veículo através do qual estamos a ler este livro, esta aventura, estas personagens e os seus diálogos. Quereremos ou poderemos dizer que El Iluminado é um livro mais fraco por causa dos desenhos?
Não sabemos o que responder. Porque as suas forças residem alhures.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

18 de março de 2013

Flic. Bénédicte Desforges e Séra (Casterman)

Como temos por vezes discutido a propósito de outros títulos, a banda desenhada encontra nos dias de hoje um movimento de expansão incomparável a qualquer outro momento da sua história, no que diz respeito a géneros, estilos, propósitos e até mesmo ontologias (a única expansão que não se verifica é a da circulação cultural e consolidação financeira). Isso assegura que cada vez mais “banda desenhada” se torne apenas um descritivo quase formal, enquanto meio, e sejam necessários outros termos, mais individualizantes, para se entender o que se está a falar quando dizemos que “este é um livro de banda desenhada” (e mesmo o emprego da palavra “livro” abre desde logo toda uma série de outros problemas).
Estamos em crer que o caso presente, Flic, não seja propriamente uma crise total, mas pelo menos uma sua pequena inflexão ou ponto interessante. Bénédicte Desforges faz parte de um grupo crescente de pessoas que transformou os blogs em plataformas, de facto, de espaço para as suas próprias vozes, ou até mesmo de criação das suas próprias vozes, as quais usualmente estavam afastadas do “espaço público” permitido pelos meios tradicionais de comunicação, aos quais a literatura, sem se subsumir a eles, com eles se engrena. E que depois, por razões dos fenómenos contemporâneos do mercado livresco, se veriam transpostos para livros. Isto ocorreu com categorias profissionais variadas, de cozinheiros a educadores, de trabalhadoras do sexo a, com Desforges, agentes policiais. Tudo isto pertence, porém, a um objecto de análise que outros críticos saberão melhor expor e discutir.
Desforges foi tenente da polícia de Paris, trabalhando sobretudo nos banlieues de Paris, desde logo entendidos como conceito carregado de significado sociológico, político e cultural, “fronteiras interiores” como escreveu um psicanalista. Mas estas memórias, se assim as podemos chamar – ou sejamos mais exactos, aquilo que sobre-vive neste livro de banda desenhada -, não constituem propriamente um olhar de análise dessa mesma realidade social. Menos do que uma autobiografia, são uma colecção de pensamentos, ideias, e episódios da vida de Desforges. Havendo dois livros publicados, baseados no blog da autora, mas cujos textos não lemos, não podemos confrontar as duas realidades textuais, ainda que tudo aponte para que a produção e estruturação deste livro seja do próprio Séra, aproximando-se até de um certo estilo ou voz desse mesmo autor, que já havíamos lido anteriormente. Ainda que existam com frequência uma sequência de algumas vinhetas ou mesmo páginas que acabam por compor uma estrutura narrativa simples, o seu conjunto é mais fragmentário, fluido, dissemelhante, e por isso mesmo aproximando-se de “analectos” ou “aforismos”.
Apesar dos documentos que acompanham e apresentam Flic falarem de “adaptação”, é algo mais complexo que isso mas menos complexo do que aqueles projectos que trazem crises muito sentidas dos conceitos de memória, autobiografia, representação e voz própria como os casos de Emmanuel Guibert com Alan Cope e Didier Lefèvre, ou de Alissa Torres com Choi Sungyoon. Quer dizer: Flic é mais complexo que “uma adaptação literária” pois não é apenas uma transmediação, uma transformação da matéria escrita numa outra (banda desenhada), se bem que tenha atravessado esse processo de produção, pela parte do autor cambodjano-francês Séra. Pelas próprias características de trabalho deste autor, há aqui uma procura pela fabricação de um encontro mais intenso de vozes, personalidades e criação do que a mera transposição das “histórias” ou das palavras para outro veículo. Porém, é menos complexo no sentido em que não se trata propriamente de uma colaboração íntima entre os dois autores, nem uma procura através do artista pela voz do narrador-protagonista, que é o que ocorre nos casos de Cope e Torres, que não veiculariam a sua história caso não houvesse o encontro com os autores de banda desenhada respectivos (cada qual com as suas especificidades e circunstâncias de extrema importância; e a que agora acrescentaríamos o exemplo de Kunwu e Ôtié, que trazem uma outra dimensão a explorar).
Ou seja, Séra terá feito as suas escolhas e o seu trabalho de moldagem sobre os textos de Desforges, escolhas essas pouco consuetudinárias com as mais repetidas adaptações, e que deixam, como numa metáfora de W. Benjamin, as marcas sobre a narrativa como o oleiro deixa as marcas no seu trabalho.
Talvez por essas razões, porém, estamos aqui longe de qualquer exploração psicológica de algo que pudesse constituir um centro traumático na vida da protagonista, já que a violência surge repetidamente na sua vida, sob as mais variadas formas – o namorado espancado por jovens, suicídios violentos, cadáveres caudados por várias mortes, do esquecimento ao assassínio, violência doméstica. Ou melhor, não se seguem as costumeiras vias dessa exploração, como por exemplo o desarrumo temporal que ainda assim imporia uma fábula organizada e linear, ou diferenciações de momentos através de intensidades visuais-afectivas. A estrutura de pensamentos soltos derrota desde logo essa capacidade ulterior da parte dos leitores em reconstruirem uma intriga centralizada. E a tensão permanente na vida de uma agente de polícia fica visível a cada página.
Mas não há uma total ausência também de momentos de distensão, de pequenos humores ou prazeres ou interrupções dessa vida. Aliás, nos momentos em que a própria Bénédicte é representada “fora das acções”, ela está a tomar um banho de imersão prolongado, o que traz uma estranha camada a todo o projecto. Por um lado, é uma forma da narradora-protagonista-autora estar fora da matéria que narra, um intervalo nos acontecimentos, um enquadramento da sua pessoa, mas por outro parece cair naquelas fórmulas sobejamente conhecidas da banda desenhada franco-belga de “fan service", em que contemplamos o corpo da heróina desnuda, sem uma razão diegética plausível. Fetiche do ilustrador? Narcisismo ou mesmo exibicionismo pela parte da autora? A força da gravidade das fórmulas bedéfilas? Ou talvez uma mistura disso tudo…
Em todo o caso, talvez seja necessário temperar o que afirmámos acima, de não haver “um olhar de análise dessa mesma realidade social”. Afinal, olhar há, e duplo. Primo, o da própria Desforges, fruto da sua experiência pessoal (corroborada por várias estratégias, desde as do “pacto autobiográfico” dos paratextos e do pronome na primeira pessoa à integração de vários aspectos que remetem ao “mundo real” como imagens transformadas de jornais, vídeos, revistas, etc.) e conduzida pelas suas palavras no blog e seus dois livros. Secundo, aquelas transformações operadas por Séra, que não deixa de apostar em grandes planos sobre rostos, quer da protagonista quer das inúmeras pessoas que compõem aquelas paisagens, passando por estratégias significativas de fragmentação das composições e das cores (usualmente soturnas, glaucas, azuladas-escuras, para fazer salientar aqueles desenhos apenas a linha, ou os brancos, ou os súbitos vermelhos, ou os luminosos amarelos) que não são de forma alguma canais desapaixonados e “objectivos” dessa mesma realidade. A própria existência do livro, e o seu modo, aponta a um olhar social passível de análise. Simplesmente está ausente uma consideração verbalizada ou intelectualizada desse mesmo olhar. Mas será ela necessária?
Flic, traduzível como “chui”, ou mais correntemente “bófia”, pretende criar uma imagem mais correcta, equilibrada e rés-da-vida da polícia, por uma polícia. Por isso lemos, logo ao início, “As pessoas sempre adoraram histórias de bófias. Mas as pessoas não gostam deles”. E continua, enumerando os papéis que lhe são atribuíveis, de “chui culturalmente conforme”, “o emmerdeur institucional”, “o torcionário latente”, “o subproletário pugilista da função pública”, ao mesmo tempo que – estratégia somente de Séra, ou já presente nos livros? – se mostram imagens emprestadas de filmes, séries de televisão, bandas desenhadas, todas elas com os detectives à paisana no meio do seu trabalho de investigação. Nunca mostrando o ritual de passar multas, de identificar prostitutas, de vigilar manifestações, de atender a suicídios, assassínios e casos de violência doméstica, muito pouco românticos, nada espectaculares, bem pelo contrário deprimentemente correntes.
Não se pode esperar que uma agente das forças da lei criasse uma crítica alargada da própria instituição de que faz parte. Não obstante, há várias frases, ou mesmo episódios, nos quais se não se tecem propriamente críticas há pelo menos um reconhecimento da percepção que certas camadas da população sentem em relação aos polícias. Afinal, e em França haverá contornos particulares diferentes mas análogos aos da polícia portuguesa, não há falta de casos de violência e abusos da parte das forças policiais, a contínua e miserável política da “interpelação”, os erros de juízo, a forma como essas forças contribuem para as opressões mais ou menos veladas dos poderes vigentes (através das multas, dos despejos, dos cordões de segurança, etc.).
A maneira como ela não esconde os abusos verbais de um comissário bêbado perante uma vítima de maus tratos continuados, a amizade ou estranho companheirismo que parece nutrir por uma prostituta toxicodependente, ou os prostitutos transsexuais, e aspectos quotidianos ou quase idiotas da vida de um polícia de giro, podem fazer surgir algumas brechas no possível discurso heroicizante ou que desculpam as próprias forças oficiais. Mas ao mesmo tempo, a subsunção de todo o aparato legal e de força que a polícia representa a uma só voz particular poderá apagar precisamente a edificação e naturalização dos seus processos.
Enquanto modo de voz própria, Flic não deixa de ser, porém, um projecto estimulante, e até mesmo provocador, e que aumenta, a seu modo, a circunferência dos géneros da autobiografia, das memórias pessoais, dos retratos sociais das pessoas e das sociedades a que pertencem ou que as definem. Aliás, uma questão de fundo deste livro é mesmo entender qual a equação correcta: se é uma colecção de cidadãos que perfaz uma sociedade ou se é esta que é condição dos cidadãos, nos seus diferentes papéis.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.    

15 de março de 2013

O baile. Nuno Duarte e Joana Afonso (Kingpin Books)

O baile tem, a nosso ver, dois ingredientes cuja mistura o torna num projecto, ainda que não propriamente inédito, bastante interessante: a junção de dois géneros e duas matérias, a saber, a nossa própria história recente, raríssimas vezes explorada pelos autores de banda desenhada, e menos ainda de modo sustentado ou inteligente, e a potencialidade de um folclore fantástico autóctone. Nuno Duarte, o escritor ou argumentista, aparte a sua carreira profissional noutras esferas, já demonstrou estar interessado em explorar variadíssimos modos, géneros e estilos de banda desenhada, provavelmente não lhe interessando tanto criar um corpo coeso de trabalho, no sentido de um estilo próprio de escrita, de imaginários confinados, etc., mas antes num mergulho na própria tarefa do “escrever para outro meio”, que não o estritamente literário. Olhando, em retrospectiva e em conjunto, Paris Morreu, a Fórmula da Felicidade e O baile, a característica comum a sublinhar no seu trabalho é a proficiência e adaptabilidade do lavrar narrativo para o fito pretendido, e aliado de maneira inconsútil com o artista com quem colabora. Um título “alternativo pós-moderno”, uma “fábula realista” e agora uma exploração de “género horror/fantástico” vão abrindo o leque dessa exploração. (Mais)

13 de março de 2013

Ilustrações para Mário de Sá-Carneiro e Lígia Mendes. Tiago Manuel (Kalandraka/Campo de Letras)

Na leitura de muitas entrevistas ou declarações de artistas visuais, ou artistas, que trabalham na ilustração - por razões económicas, por uma qualquer questão de estratégia, de circulação, etc. - há por vezes um desconcerto com essa tarefa, demonstrada através do desagrado ou mesmo desprezo pela palavra em si, como se essa atitude desde logo revelasse uma superioridade à acção que cumpriram. É muito corrente dizerem que “não fizeram ilustração” ou que “não é bem ilustração o que fizeram”, etc. Ora, é claro que esta observação é demasiado generalista para ter alguma importância analítica, mas ela é uma constante nalguns círculos. As mais das vezes ela é também um sintoma do facto de que as imagens são criadas sem qualquer articulação com os textos que as acompanham. Não é que procurar as linhas de força e de intensidade que podem nascer de um encontro fortuito não possa levar a resultados surpreendentes, e até produtivos para o pensamento, mas a maior parte das vezes é uma questão de displicência: o artista prefere seguir as suas fórmulas de criação imagética a encontrar inflexões próprias, questões levantadas, dúvidas que possam nascer, se não dos textos propriamente ditos, da ocasião desse mesmo encontro.
Ora, a nosso ver, um artista é tão poderoso ou mais quando entende de uma forma mais interessada essa mesma tarefa. Quando não se escuda numa diferenciação social e de prestígio cultural pelos apodos policiados de “artista” e “ilustrador” - o primeiro de glória e o segundo de abaixamento, as mais das vezes - e simplesmente faz mover a sua mão para um gesto de resposta aos textos ofertados. Recorrentemente, Tiago Manuel tem esse papel acabado. Os adjectivos que se lhe queiram impor são de somenos importância. O que interessa é ver as brechas que ele provoca entre os textos que ilustra e as imagens com que os ilustra. Brecha essa que não é uma fenda negativa, mas antes o espaço de reflexão a que obriga.
Não é, de forma alguma, a primeira vez que Tiago Manuel se entrega aos prazeres da tradução das letras. Recordemos o já longínquo José do Telhado, de Camilo (1990), ou um número da Colóquio/Letras dedicado a João Cabral de Melo Neto, que se irmanará de modo oblíquo e algo disconjunto das lâminas em torno de Dante ou de Mishima, nas suas duas exposições respectivas.
São dois livros que trazemos agora à consideração. A antologia de Mário de Sá-Carneiro faz parte da colecção da Kalandraka que tem reunido uma mão-cheia de poemas de poetas de referência absoluta na poesia portuguesa (Bocage, Florbela Espanca, Cesário Verde), encontrando este título, aí, um lugar natural. Não se tratando de edições críticas, de estudo, ou que perseguem uma qualquer linha de análise particular, estes finos volumes servem, de um modo directo e descomplexado, dois propósitos, parece-nos. O primeiro é mais chão e comum: tratar-se-iam de volumes que podem servir de introdução à obra destes poetas, ora breve livro de oferta, ora compra para um jovem, ora de chave para um estudante... Nesse aspecto, estariam a concorrer com muitos outros títulos. Porém, mesmo que fosse esse (apenas ou sequer) o caso, os volumes da Kalandraka tinham desde logo uma vantagem: é que em vez de propiciarem um “florilégio da poesia portuguesa” preparada para crianças, em que se procurariam caminhos de relativo falta de exigência e  brio e redução do acto poético a “conteúdos fáceis” ou “próximos da experiência real” ou seja o que for, estas antologias, ainda que cingidas a nomes canónicos indiscutíveis (mas que não têm necessariamente de solicitar uma cega obediência de todos), fazem avançar o acto poético original, custoso, denso, pouco familiar, que verdadeiramente pode afectar os seus leitores atentos. Mas o segundo propósito detectado pertencerá ao universo de referencialidade da editora, que é o da criação de imagens. Na frase que tanto repetimos de Tsvetaeva, de dar a ver algo de novo pela primeira vez, encontramos em plena afirmação o que se passa neste projecto, e como sempre, de forma particularmente intensa com Tiago Manuel, cujo instrumentário parece coincidir desde logo mais próximo ao acto literário do que, digamos, ao design, à fabricação de imagens, à modelação de figuras. Aliás, numa nota final deste volume, o artista escreve mesmo, depois de uma explicação, que “escrev[eu] os poemas e [Mário de Sá-Carneiro] fez os desenhos”. Essa circularidade não é de toda desprovida de sentido, e mais do que uma apropriação metafórica, ou acto de retórica, deve ser lida como um encontro e entrosamento de uma matéria na outra.
Por instrumentário, queremos falar menos dos pincéis e tintas do que da experiência, do discernimento, da acutilância muito própria de Tiago Manuel em se apropriar do acto literário e refundi-lo pelas imagens. Não deve, claro está, chocar o nosso uso da palavra “apropriar”, já que não se trata de uma substituição, de uma usurpação, ou de um qualquer tipo de apagamento dos poemas. Não é só a sua sobrevivência textual e material que se mantém, mas é precisamente a sobrevida deles que se garante nestas revisitações.
Poeta da confessada “dispersão interior”, encontramos em Mário de Sá-Carneiro uma mescla entre um lirismo que vinha de trás, de Baudelaire, onde o sujeito se abandona às teias do que parece ser o destino, e umas soluções repentinas que ecoam as vanguardas com as quais o poeta ombreava. Não está aqui incluído o magnífico Manucure, pois arriscar-nos-íamos a dizer que esse poema é a sua própria ilustração, no seu sentido pleno de imagem, mas há um conjunto coeso da sua produção lírica que revela bastamente todas as contradições internas de Mário de Sá-Carneiro. Desde um erotismo muito pouco velado (“- Se me dói hoje o bem que me fizeste”) a tentativas de colocar o espírito em esferas mais nebulosas (“Sou esfinge sem mistério no poente”). E Tiago Manuel faz balançar o seu trabalho por modos igualmente contraditórios, diversos, de forma a acompanhar essa mesmo baloiçar sobre várias águas: imagens escuras e carregadas de pormenores ou manchas, outras de brancos imaculados, umas coloridas ou texturadas com jouissance e outras mais nocturnas, ou líquidas ou mesmo parcimoniosas.
Para As adivinhas da tia Lígia, Tiago Manuel opta por uma continuidade das suas conhecidas explorações de metáforas visuais - e mais uma vez, seguimos o seu sentido restrito tal como proposto por Noël Carrol - mas operando no interior da economia proposta pelos textos, a esmagadora maioria das quais são, apetece dizer, quadras ao gosto popular, que instituem pequenos e simples enigmas textuais para adivinhar a que animal se referem. Propósito o qual, diga-se de passagem, é algo derrotado, mesmo para os seus leitores mais jovens, se tiverem acesso ao livro e à leitura eles mesmos (em vez de se entregarem a uma escuta lúdica), uma vez que bastará olhar o animal - presente em figura, silhueta ou outras estratégia visual ligeiramente mais complexa - para obter a resposta, mesmo em detrimento do texto. A economia a que nos referimos desarmam a mordacidade usual do artista, que desmonta, por uso precisamente da sua montagem objectual nessas metáforas, de uma qualquer camada escondida nas nossas máscaras sociais. Não é que estas novas metáforas não operem sob o mesmo princípio, mas os sentidos que fazem deslocar - de uma esfera do apenas distraída senão inconscientemente válido para a do expresso - são relativamente domesticados: um cão-conforto, uma formiga-carrinha de ferro velho, um elefante-veículo/circo/universo...
Sem qualquer desprimor para com os poemas de Lígia Mendes, estes tratam-se de composições mais simples, com um público e um fito muito particulares e muito endereçados. Mas, talvez por essa mesma razão, esta poesia evita moralidades, evita lições de cultura à força, evita precisamente a ideia de uma "poesia barata”, delíricodoce muitas vezes em voga, sobretudo por escritores que navegam noutros territórios e que, por uma outra razão, julgam-se na obrigação de escrever géneros que lhe darão um qualquer tipo de prestígio na moda (escrever para crianças, escrever um livro de receitas, um livro de viagens, etc.). Estas “adivinhas” em forma de poemas de estrutura simples recuperam uma espécie de alegria lúdica que não deixa de encontrar junto às crianças - pois aqui é a elas que é dirigido, sem criar caminhos de confusão entre leitores (bem-vindos noutros projectos e esferas, mas que não tem de ser repetido por todos) - as reacções e os afectos mais correctos. O timbre certo. Não obstante, estes poemas não se coíbem de alguma dimensão ética que ultrapassa a mera descrição e identificação dos animais: são vários os momentos em que os animais confessam a melancolia em se verem reduzidos, na nossa sociedade, a criaturas controladas nos zoológicos ou circos ou a caças (o leão, o elefante, a baleia), ou em que renegam a sua comparação aos seres humanos por serem mais nobres que esses, cuja apelidação com os nomes dos animais aponta a comportamentos indizíveis nos bichos originais (o camelo, o macaco). A poeta não abdica de mergulhar nalgumas ideias feitas ou nos comportamentos atribuídos a certas espécies, mas isso serve em contínuo aquela simplicidade e felicidade a que aludimos. Não se trata de um tratado de biologia, nem de aferição de conhecimentos, mas uma espécie de tratado dos afectos e das relações através dos animais mais comuns.
Mais sentido em Adivinhas do que no livro de Sá-Carneiro, o artista procura espalhar as manchas gráficas inclusive naquele espaço que estaria reservado em exclusividade ao texto. Se a poesia do poeta modernista se encontra composta tipograficamente em páginas imaculadas, com a página ao lado totalmente coberta (havendo esta e aquela generosa em brancos) pelas imagens, Adivinhas não só “espalha” a imagem por cada unidade, composta de duas páginas (um página dupla), como os textos são compostos muitas vezes no interior ou em complementação directa com o trabalho plástico da ilustração. E quer num caso quer no outro não há falta de exemplos de ilustrações que incorporam ou manipulam a matéria verbal dos textos, sob a forma de um verso repetido, uma constelação de palavras soltas, ou estruturas significativas típicas da banda desenhada (balões de fala, balões ocupados por outras imagens, pontos tipográficos flutuantes, riscos de surpresa das personagens, etc.), desdobrando essas mesmas palavras em duas camadas concorrenciais, duas intensidades paralelas, ou perscrutando a possibilidade de isolamento simbólico de um qualquer “centro” desses mesmos poemas. Nenhum destes pormenores de execução são alheios às pequenas obrinhas de exemplares únicos que Tiago Manuel tem criado, fazendo circular num grupo restrito de amigos, e de que alguns já foram alvo de exposição pública.
Uma análise dos elementos que compõem cada imagem - isto é, a violência de as escortinhar em troços ruinosos fora do seu corpo uno - poderá revelar as características estilísticas repetidas, que podem ou não possuir um significado em si mesmas, mas o qual só é acessível aos seus leitores. Não deixa de ser curioso esse exercício, quando confrontamos por exemplo a textura de um cérebro na cabeça do papagaio das Adivinhas e de um piano no poema de Sá-Carneiro, “El-Rei”... Mas ao ler o verso, desse mesmo poema, “Meu Dislate a conventos longos orça” coloca-nos logo o aviso de seguir esse caminho com cuidado...
Nota final: agradecimentos a ambas as editoras, e ao ilustrador, pela oferta dos livros.