31 de agosto de 2012

Get Jiro! Anthony Bourdain, Joel Rose e Langoon Foss (Vertigo)

Não é totalmente despropositado ver neste livro mais uma oportunidade de negócio, um aproveitamento de tendências comerciais contemporâneas, do que um verdadeiro gesto de vontade autoral, algo que se consubstanciasse numa energia expressiva necessária. Afinal de contas, o nome que encima a capa do livro é o do famoso chef Bourdain, destacado dos demais companheiros da equipa criativa (o co-escritor Joel Rose e o artista Langoon Foss), aproveitando a fama e o peso mediático deste. Tratar-se-á, portanto, de uma mera estratégia da parte da Vertigo em diversificar o seu público-base, tentando conquistar franjas até agora mais ou menos alheias à banda desenhada, ou pelo contrário, uma tentativa de fazer com que a banda desenhada se diversifique em direcção a novas preocupações temáticas? É possível. Mas a leitura de Get Jiro! também revelará a própria consciência que o(s) autor(es) têm dessa situação, e exploram-na com alguma distância irónica.
Será fruto de exasperação para alguns a crescente moda da culinária, nas suas mais diversas prestações e escolas, um pouco por todos os circuitos mediáticos. Nunca houve tantos programas televisivos sobre cozinha, documentários sobre cozinhas do mundo, concursos, livros, a proliferação de termos até há pouco tempo apenas conhecidos pelos especialistas, e a própria disponibilização e variedade de instrumentos, ingredientes e cursos breves. Pessoalmente, apesar de considerarmos quase todos os concursos televisivos abjectos e conducentes à indignidade humana, pela forma redutora como transformam tudo em caminhos unidireccionais, unilaterais, competitivos (e não colaborativos), etc., consideramos que a aprendizagem da culinária pode, na sua melhor dimensão, ser uma forma de aprendizagem cultural, um entendimento de tradições locais e autóctones, mas também do outro, e ainda uma indagação de si-mesmo, procurando-se ser-se mais atento, ou passe o pleonasmo, sensível às sensações, etc. E, essa virtude inigualável, o fomento da comensalidade. No fundo, algo bem mais nobre do que os princípios usualmente associados à dependência nacional do futebol e suas novelas, da vida privada e mesquinha dos “famosos-por-substantivo” (isto é, aqueles que são famosos por serem famosos), ou a cada vez mais humanamente esquálida “classe” política. Dito isto, compreendemos que esta cultura da cozinha nova se pode tornar igualmente um factor de diferenciação classista – tirando partido de toda aquela metáfora fundada na estética de Baumgarten, no seu sentido primário associado à sensualidade do corpo antes de atingir as artes visuais, do “gosto” - e, tal como o discurso em torno dos vinhos, rapidamente se podem tornar elementos de um cachet mais falsificado que genuíno. Poderes fátuos, portanto.
Get Jiro! parece estar consciente de todas estas dimensões sociais. A narrativa passa-se numa futura e hipotética Los Angeles. Mas em vez da sombria e pós-tecnologica L.A. de Blade Runner, o que encontramos é uma cidade não só socialmente estratificada como repartida em duas facções, como se se tratassem de territórios controlados por barões da droga. No caso, porém, a divisão é feita entre dois grandes líderes da culinária: o chef Bob, da Global Affiliates, associado à cozinha internacional, molecular, haute/nouvelle cuisine, etc., cheia dos salamaleques de especificidades culturais, novas tecnologias, iguarias raras, mesmo que isso signifique o mau-trato dos animais, a sobreprodução, a exploração de economias menores, ou a absurda comercialização transglobal de certos produtos (o lema dos restaurantes é, aliás, “As melhores coisas/por quaisquer meios”), e a chef Rose, ligados aos movimentos vegan e a toda uma família alargada de preocupações ecológicas, políticas e económicas, sobretudo dedicados a uma produção e consumo localizados. O maniqueísmo é por demais óbvio, e o jovem chef de sushi, acabado de chegar à cidade e com um passado misterioso que jamais é revelado, não só se encontrará no meio dessas batalhas como será ele mesmo objecto cobiçado pelas duas “facções”. De certa forma, seria imaginar que, tal como em Battle Royale a rede escolar poderia seguir regras instituídas por certos reality shows (Survival, et.), teríamos no actual Masterchef o princípio de organização social por vir. Não seria despropositado ver nesta tendência analogias com certos movimentos musicais (o rock, o punk, e a que L.A. está aliada historicamente) associados a certas ideias de revolta social (ou de um tipo de expressão de revolta), mas as modas de cozinha não são usualmente rebeldes, sendo antes instrumentos desde logo de uma qualquer inscrição estratificada.
É impossível não aceitar que a influência quase directa, pelo menos do núcleo da diegese, venha do documentário Jiro Dreams of Sushi (real. David Gelb, 2011), sobre o chef de um restaurante japonês único, detentor de 3 estrelas Michelin, Jiro Ono. Esse é um documentário simples, algo delimitado, mas cujo propósito é construir o retrato de um homem que dedicou toda a sua vida, e procura seguir regras de rigor, exigência e excelência em tudo o que faz, desde a limpeza do estabelecimento à suprema qualidade dos produtos empregues, do exigente treino de todos os empregados – durante anos e anos a fio – aos pormenores ritualísticos da confecção do sushi em frente aos clientes. A visualização dos elementos que compõem o documentário iluminarão sobremaneira as opções narrativas, e pormenores anedóticos, do livro. Por exemplo, o restaurante do Jiro real fica na estação de metro de Ginza, e tem apenas 10 lugares, o que à partida nos faria descrer da sua qualidade e fama. Mas a marcação de um lugar, e o seu pagamento, impede logo que qualquer cliente possa “entrar desprevenido”. Esta diferenciação das mais usuais expectativas de restaurantes de luxo espelha-se neste livro pela localização do restaurante do Jiro ficcional num banal complexo de pequenos restaurantes à beira da estrada nos arredores da futura Los Angeles, fora do seu “círculo principal” (controlado por barreiras de controlo, como impedimento social e económico). A tensão palpável que se nota no documentário, ao termos um mestre desta culinária a dar os últimos mas decisivos toques no que nos é servido a escassos centímetros do nariz, é transformada depois no livro numa tensão num grau maior, precisamente pelo filtro dos filmes de gangsters, mormente pela romanticização pós-moderna e ultraviolenta à Tarantino. Questões de etiqueta e identidade do sushi (não colocar molho de soja no arroz, não deixar os pauzinhos espetados nas malgas, não pedir “California rolls”, etc.) levam a reacções de atrocidades guerreiras. Por outro lado, o humor inerente a todos os exageros verificados na história, e o tema, enfim, também são reminiscentes ou pelo menos comparáveis ao inefável “ramen western” Tampopo (real. Juzo Itami, 1985), na sua busca dos “ramens perfeitos” e os inúmeros sketches em torno da cultura gastronómica. Todos aqueles discursos tipificados e ilusórios de “honra”, “códigos”, à la samurai, etc., que pululam em torno dos mitos nipónicos, encontram-se aqui exacerbados, mesmo que entrosados noutros géneros.
Aquela disputa entre os defensores da cozinha internacional e os vegans não deixa de ser algo desequilibrada. Apesar de ambas as escolas serem retratadas como exageradas e hipócritas, parece-nos que, no final de contas, a primeira é vista com maior simpatia (afinal de contas, Bourdain pertence mais a essa escola do que a outra), e a segunda associada a toda uma panóplia de movimentos diversos (cita-se mesmo os Occupy, por exemplo), por sua vez vistos como tendências passageiras, hipócritas, iludidas e inconsistentes. Contra o exagero desses dois pólos, a figura de Jiro surge como uma espécie de paladino (sushi samurai é o descritivo repetido nas recensões) a uma maior diversidade e liberdade de escolha, e que encabeçará uma revolta de produtores menores, cozinheiros de menor escala, etc., desde um velhote vietnamita de sopas pho a um chef francês tradicional, à escala familiar (e vítima do feudo).
É difícil compreender a quem pertencerá o trabalho de ideia original e argumento, mas pela distribuição e ênfase dos nomes, estaremos em crer que as ideias serão de Bourdain e a planificação, pelo menos em parte, serão de Rose, com basta experiência, sobretudo editorial, neste campo. Bourdain tem a sua própria cultura de banda desenhada, sobretudo do underground dos anos 1970, mas falamos aqui é da escrita específica que leva às estruturas visuais do texto final. Todavia, se formos mais longe que o notório “cool” desta narrativa, uma análise cuidada revelará que estruturalmente o livro apresenta alguns desequilíbrios (o uso, apenas uma vez, de uma legenda de um narrador externo, que leva à sua dispensabilidade quase total; uma caracterização das personagens que nem sempre nos parece ser a mais ponderada; situações que não são jamais resolvidas, num caso demasiado óbvio de “querer manter o mistério”, mas por isso sem subtileza; e algum abuso de clichés, que só podem ser aceitáveis se se considerar este um exercício ligeiro). Já no que diz respeito à camada visual, digamos que o trabalho de Foss é competente, sem ser brilhante. Como grande parte da tendência contemporânea da banda desenhada norte-americana, a composição é feita um pouco ao acaso, com raras excepções onde se procuram formar estruturas mais dinâmicas, interessantes e significativas. A figuração plástica e ligeiramente estilizada (abonecada) remete para os corpos de um Corben (de que Bourdain é fã, pelos vistos), por exemplo, sem esquecer uma larga influência da mangá mais clássica, sobretudo nos rostos (o chef Bob parece um Clark Kent mais velho), mas o uso de establishing shots, planos gerais e cheios, encaixes de vinhetas de planos de pormenores extremos, muitas piadas privadas, textuais ou visuais (desde o stand no mercado de peixe do capitão Haddock às sapatilhas tabi de Jiro), cenas de acção sem texto, e as várias estratificações de informação visual nas imagens, aproximá-lo-ão – também pelas cores vivas de Villarrubia – de um Seth Fisher ou um Geof Darrow, mas sem a vivacidade e dinamismo do primeiro nem a compulsão ou brio de detalhe do segundo.
Get Jiro! é, portanto, um curioso e divertido exercício de cruzamento de géneros e tendências. Violento (gore, mesmo, nalguns momentos), procura ser sensível a toda uma série de questões – desde as ecológicas às de respeito para com as várias culturais globais, passando pela identidade cultural que passa pela culinária (questões por vezes de grande sensibilidade) -, e, como não poderia deixar de ser, é condimentada com breves cenas “enciclopédicas” (empregamos um termo de Fresnault-Deruelle), na qual se demonstram de uma forma esquemática, mas aparentada às “receitas filmadas”, algumas receitas (associando este título, mesmo que tenuemente, a coisas como Oishinbo e/ou The Art of Pho, ou mesmo Le gourmet solitaire, de Taniguchi). Há dois momentos também em que o prazer sensorial de Jiro, face a cozinha dos outros, se expressa graficamente, mas infelizmente essa não será uma das dimensões mais exploradas. Toda a narrativa está imersa, ainda assim, no conhecido humor descontraído e informal de Bourdain, que torna este livro mais um entretenimento bem construído do que outra coisa.

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