28 de maio de 2012

Celluloid. Dave McKean (Fantagraphics)

É com Foucault, na sua História da Sexualidade, que aprendemos ser o prazer do corpo algo que é moldado e sujeito a discursos sociais que se vão alterando historicamente (como explica, é fito da sua pesquisa “mostrar como dispositivos do poder se articulam directamente com o corpo”). Ou seja, em vez de compreender o prazer humano como algo eterno, ahistórico, imutável e transcendente (por exemplo apelando para o mito de Tirésias, ou outros), ele é visto como sendo algo produzido por configurações de poderes e instituições - como as leis, a medicina, a psicologia e, também, na contemporaneidade, a pornografia - que guiam esses prazeres para determinados fins. O filtro dessas instituições torna rígidas as identificações do prazer, e não as torna fluidas. A razão pela qual a pornografia parece ser tratada como um todo não é, de forma alguma, uma generalização absoluta, mas relativa. Apesar da área de Porn Studies ser ainda mais recente que a dos estudos de banda desenhada, e ter vindo ao lume académico com Linda Williams, os instrumentos de análise são desde logo musculados. Seja como for, seja pelo ponto de vista dos estudos feministas, da psicanálise, dos estudos cinematográficos, não há dúvidas de que a esmagadora maioria da produção e do público-alvo da pornografia como um todo (sem qualificativo, isto é) continua a confirmar as ideias primeiras que se têm em relação à mesma. Como escreve Williams no seu Hard Core: Power, Pleasure and the “Frenzy of the Visible”, “uma constante da história da sexualidade é o falhanço em imaginar os prazeres [da mulher] fora de uma economia dominante masculina”. Ora, na indústria pornográfica - sobretudo cinematográfica, mas igualmente fotográfica, videográfica, da internet, etc. - essa economia masculina é muitas vezes exacerbada, tornada até confortável o suficiente para vir a ser, se não empregue, pelo menos citada enviesadamente pela publicidade, o cinema mainstream, etc., e a expressão de quaisquer sexualidades alternativas são ora apagadas ora dominadas pelo discurso homogéneo (cenas lésbicas para gáudio do público masculino, cenas homoeróticas para serem negadas, confirmando a heteronormatividade).
A banda desenhada não é alheia à pornografia, mas a sua introdução em produções visíveis, comercializadas legalmente e até mesmo celebradas publicamente é algo de muito recente, podendo apontar-se, no Ocidente, para os primeiros movimentos do underground comix na década de 1960 - com autores como S. Clay Wilson e Crumb e que rapidamente atingiriam explorações histéricas com títulos tais como Bizarre Sex, Young Lust, entre tantos outros - e no eixo transformador das publicações afectas a Eric Losfeld no final dessa mesma década em França, e que permitiria a introdução de um erotismo (ou pura e simplesmente cenas de “fan service”) mais directo na banda desenhada mainstream, por um lado, e, por outro, o surgimento de pornografia no meio com distribuição comercial e “visível”, desde autores inovadores em mais do que um factor, como Guido Crepax, a outros que ainda procuram uma torção interna qualquer, como Roberto “Magnus” Raviola, àquelas mediocridades de grande sucesso, como Milo Manara ou Paolo Serpieri… Compreender-se-á igualmente que, apesar de tudo, estes autores profícuos no desenho só poderiam surgir num ambiente que lhes permitisse desenvolver os instrumentos, e a Itália parece ter sido um território perfeito, ao contrário de Portugal ou Espanha, que preferiam a “porno-chanchada”, com histórias derivativas e desenhos verdadeiramente medíocres, salvo raríssimas excepções. Em França, poder-se-ia falar de Varenne, de Pichard, de Forest. A aliança entre a pornografia e o humor é vetusta, das Tijuana Bibles a projectos como os de Wallace Wood, Firkin de Hunt Emerson e Tim Manley, ou os volumes Dirty Stories, a alguns dos títulos da Eros Comix. E a procura por nichos de mercado especializados (e por vezes na corda bamba da legalidade) não está ausente desta equação tampouco, desde as Bondage Fairies à Softpaw Magazine.
Porém, qualquer tentativa em criar pornografia na banda desenhada mais interessante, quer do ponto de vista narrativo, político, gráfico ou até meramente sexual - quer dizer, que explore a sexualidade ou as relações sexuais de uma forma mais cabal, integrada, variada e subtil - é não só rara como difícil de ocorrer. Existirão alguns casos e algumas das histórias de True Porn ou da XXX Strip Burger que poderão estar próximos desse fim, ou a obra de Alex Barbier, mas a “universalidade” sexual é uma contradição de termos, desde logo… E se envolver questões de ética, por exemplo, a discussão torna-se ainda mais complexa, apaixonada e difícil, sobretudo com trabalhos como Elles de Frédéric Boilet ou Paying For It de Chester Brown. Celluloid, ainda assim, é uma dessas tentativas, em que Dave McKean parece reunir todas as suas forças e metodologias criativas para nos ofertar uma experiência de leitura que seja, a um só tempo, titilante, apelativa, aberta e subtil.
O livro não tem texto, e apresenta quase sempre uma  imagem por página, e por vezes recorre mesmo à dupla prancha. Nos casos em que há subdivisão do plano de composição ou é para dar conta de um movimento rápido, ou de um pormenor, ou tira partido das especificidades materiais da película de filme, que não só dá nome ao livro como é o seu mote. A história em si é tanto clara como complexa. Uma sua descrição é simples de obter: uma mulher entra num apartamento, não consegue convencer o seu parceiro a visitá-la (ele está ocupado com trabalho), e ela resolve tomar banho. Nele, acaricia os seios e depois deita-se nua no sofá, ofertando desde logo os seus dotes e beleza ao olhar do leitor - que pela economia usual, é um olhar masculino ou masculinizante. No centro da sala encontra-se um projector (de 16 mm, parece-nos), que a protagonista acciona, e que projecta um filme pornográfico - as imagens, fotográficas e riscadas, não são claras, mas percebe-se ser uma mulher com uma máscara fantasiosa veneziana, de gatas, e um homem por trás. McKean tira proveito de uma “montagem paralela”, em que numa página temos três “fotogramas” do casal, e na outra página a protagonista masturbando-se. O filme acaba por queimar-se e quebrar, e revela-se uma porta projectada na parede, que não estava ali antes. A mulher abre-a, dando início assim a uma travessia de várias paisagens que podemos chamar de oníricas, em cada uma delas dando-se encontros sexuais de naturezas diferentes.
Até certo ponto, McKean identifica esses espaços ao atribuir-lhes marcas distintas, ou melhor, ao alterar as técnicas de representação correspondentes a cada um deles, reforçando a ideia de diferença e travessia. Podemos identificar talvez sete espaços. A sala de estar, que corresponderá ao momento “real”. Uma praça exterior, com uma fonte, do outro lado da porta projectada, em que a protagonista encontra vários casais envolvidos, e onde ela projectará um segundo filme, que a “acariciará”, e que lhe abrirá passagem a uma espécie de paisagem natural. Essa paisagem, verde, onde se envolverá com uma primeira personagem, espécie de deusa Artémis de Éfeso fantasiosa (pelos muitos seios) e Baco embriagado (pelos cachos de uvas por cabelos). Um espaço interior e nocturno, para o qual acorda, e onde dará prazer oral a um demónio à Fuseli. Um quarto etéreo onde observa uma sósia a receber prazer oral de um homem. Um terceiro projector abre uma porta no interior da qual uma imensa e desincorporada vulva despede um homem fantasmático com o qual faz amor (na posição a quatro patas idêntica à do filme primeiro). Segue-se um espaço de passagem interno, intervalar, em que a protagonista - agora representada de modo fotográfico e claro, sem quaisquer manipulações - se apresenta a um público que aplaude, e logo a seguir, de novo na sua forma desenhada, desaparece  no interior de uma luz pura. A última parte do livro, espécie de prólogo, mostra o amante a chegar a casa, procurando-a e a recorrer ao projector, onde troca olhares com a actriz, talvez fazendo pensar numa comunicação transcendente ou então uma repetição do padrão.
Se esta descrição é longa demais, e revela em demasia a história, a verdade é que a sua leitura analítica exige um cuidado particular, precisamente para entender que forças estão patentes nesta obra de McKean.
Esses aspectos estruturais da história fazem recordar narratemas comuns, e que encontraremos desde Alice no País das Maravilhas a, mais óbvio neste campo, o filme Behind the Green Door: A passagem para um outro mundo, aparentemente paralelo ao real, serve para dar a ver a protagonista e entrar numa esfera que tanto pode ser vista como sendo a das fantasias, dos sonhos, e ao mesmo tempo servirá de uma “defesa” do real. No entanto, uma vez que as passagens propriamente ditas são ora “horizontais”, dando a sensação de simplesmente se atravessar para um local à frente - como nos casos em que a protagonista atravessa - ou “de nível”, em que parece entrar numa esfera espacial ou existencial interior à de que parte - como no caso das projecções nas paredes - essa ideia de viagem torna-se complexa e impossível de cartografar. Assim, deveremos apreciar cada “episódio” como se fosse um bloco específico de sensações, a ser apreciado em si mesmo. A ausência de texto apenas confirma a ideia da pulsão escópica contínua. Afinal, um livro que não tem palavras parece convidar apenas ao olhar (é claro que a leitura ocorre, pois cognitivamente fazemos associações e gestão dos acontecimentos que se desenrolam com as personagens, mas ela é, pelo menos aparentemente, suspensa; dir-se-ia, comummente, “não tem história”, é “muda”, etc.), podendo mesmo tornar-se mais “rápida” de ler, ou, por outras palavras, convidar ao frenesim de Tom Gunning, citado por Linda Williams no título indicado.
No entanto, eis outro aspecto que se torna complicado. A transformação do óptico em háptico é absolutamente clara, e não somente por haver mãos que tocam corpos, ou os seus próprios corpos, ou o autor empregar imagens que convidam à ideia de texturas tácteis, inclusive pelo uso de planos aproximados ao centímetro (algumas imagens fotográficas são explícitas, invasivas, pormenorizadas, como as do clítoris da actriz). Por exemplo, da superfície da segunda projecção, onde a imagem se deveria formar, brota uma enxurrada de mãos (claramente masculinas) que se dirigem à mulher e a acariciam sexualmente: metáfora clara da tal “interactividade física” da pornografia? De como um filme nos pode “tocar”? Não pode ser por acaso, também e seguramente, que a imagem fílmica (fotográfica) na primeira instância se começa a queimar precisamente pelo olho da actriz. São vários os momentos em que os olhos das personagens explodem em luz, por vezes como que uma metáfora do orgasmo. Mas é importante notar igualmente que há momentos em que o enquadramento e a focalização dos olhos, sobretudo da “actriz/modelo” de carne e osso, faz pensar em que ela nos olha, isto é, como se ela ganhasse consciência e pudesse, dessa forma, desvirtuar parcialmente a natureza voyeurística do tal olhar heteronormativo, como se essa consciência limitasse a objectificação possível e em curso, e lhe ofertasse algum grau de controlo na entrega ao prazer do leitor, ou leitora.
Uma vez que a esmagadora maioria da pornografia é produzida por agentes e dedicada a um público heteronormativo, e sobretudo masculino, é mais raro encontrar produções pornográficas fora do âmbito das sexualidades minoritárias que seja capaz de criar discursos não apenas inovadores como para além da mera defesa do próprio género (se o quisermos chamar assim, se bem que não seja a palavra apropriada). Seria expectável encontrar algum tipo de “crescimento” ou complexificação ao longo da diegese, mas não nos parece que isso ocorra. A mulher não ganha um papel cada vez mais activo, nem a sua posição - mesmo no interior da variedade sexual - aumenta em relação aos seus parceiros sexuais. Seria interessante encontrar nas dimensões materiais de cada método gráfico uma espécie de avanço, e até certo ponto isso pode ser argumentado, mas mesmo tendo em conta que a cena final mostra a protagonista na sua forma real (em relação à nossa realidade) e fotográfica, ela não ganha mais “volume”, uma vez que se apresenta como uma actriz, surpresa em descobrir um público a aplaudi-la. Quer dizer, se ela é sujeito observador no princípio, passa a parte activa nalguns episódios mas acaba novamente observada (e observando?). O facto de usar máscaras e o público também, aliada a um porta-chaves que remete a Paris, faz apenas recordar clubes reservados e festas particulares BDSM nessa cidade, cuja secretividade e jogos eróticos fazem aumentar a disponibilidade, a liberdade de gestos, a ultrapassagem de barreiras sociais, mas ao mesmo tempo poderá acarretar a impossibilidade da comunicação entre personalidades totalmente alertas ao outro. Por outras palavras, as relações sexuais desprovidas da palavra, da personalidade, e por um total e abandonado contacto físico que tipo de vantagens e problemas acarreta? Celluloid não responde a essas e outras questões, mas contribui para a sua formulação.
Uma vez que a banda desenhada é um meio que vive da multiplicidade de imagens, ela apresenta, a um só tempo, alguns dos prazeres escópicos que são permitidos pela fotografia, o desenho e o cinema, a saber, a representação, a indexicalidade, e o movimento. McKean, ao empregar estratégias pluridisciplinares e a própria natureza usual da banda desenhada, consegue tirar partido de todas essas dimensões. Apesar de um desenho não ser indexicalizado como uma fotografia, isto é, não tem elementos que façam pensar na realidade física e tangível da presença de um corpo que se representa, o uso da fotografia, da montagem e da ideia do modelo, em Celluloid, leva a essa noção.
Não podemos operar uma separação brutal entre as técnicas artísticas empregadas por McKean do que elas mostram, mas é isso o que faremos, por necessidade analítica. Como é de esperar deste artista pluridisciplinar, ele emprega todas as ferramentas que tem ao seu dispor, desde o desenho de linha, que tanto atravessa a sua famosa abordagem estilizada-expressionista (por vezes recordando Egon Schiele na figuração esquálida, feita de linhas finas, e tons cálidos, mas numa outra fase fazendo pensar num Fernand Léger diluído), empregando pincel, caneta ou grafite, à fotografia, sempre trabalhada de algum modo, digitalmente ou não, em sequências ou isoladas, a cores e nitidez absoluta ou a preto-e-branco e com um alto grau de grão (imitando o filme de 8 ou 16 mm que dá início à diluição do mundo), à manipulação digital de imagens, passando pela colagem, utilização de objectos (que regressam ou se tornam em símbolos recorrentes, ou então ganham uma presença destacada no plano de composição), passando por o que parece ser pintura. Cromaticamente, Celluloid também é variado: existem imagens a preto-e-branco e cinzentos, segundas cores (vermelho) sobre composições a negros densos, sépias, ilustrações coloridas que tiram partido de uma escolha limitada de cores mas explorando os seus tons, a outras que manipulam texturas e cores reais (fotografia e digitalização) para criar composições ou estruturas impactantes. A associação entre certos frutos e o sexo da protagonista é, nalguns casos, um cliché bastas vezes repetido - maracujás, papaias, figos abertos a meio, expondo ou espalhando as sementes e os sucos, uma pêra cortada em quartos e mal-ajustada - mas ainda que sem a exuberância e a efectiva eroticização do não-humano de Nobuyoshi Araki, por exemplo, serve o propósito narrativo, episódico, das várias “alianças” da personagem principal.
A comparação, inevitável talvez, surgirá com Lost Girls, outro dos projectos contemporâneos que tentam reempregar a pornografia enquanto género ou modelo passível de transmitir uma obra de arte de banda desenhada acabada em termos visuais e conceptuais. Todavia, os contrastes são imediatos e radicais (no sentido verdadeiro da palavra, de ser algo “de raiz”, a sua natureza): se a obra de Moore e Gebbie era uma espécie de doutrinação verborreica e quiçá demasiado nítida nos seus propósitos e simplificação da relação entre Eros e Thanatos, a de McKean segue a via da ambiguidade, permitida pela ausência de matéria verbal e pelas estratégias visuais que podem ser alvo de algum grau de interpretações diferentes; se Lost Girls apresenta até certo ponto uma multiplicidade de sexualidades (que podem ser nalguns casos controversas e problemáticas, como as que envolvem menores ou cenas de violação), Celluloid deixa-se ficar pela heteronormatividade - a cena lésbica da protagonista com a estranha personagem feminina não deixa de se inscrever na característica “cena lésbica para olhares masculinos” (acentuada pelas tais associações, visuais-literais, à fruta).
É também complicado, parece-nos, entender se existe alguma emotividade neste livro. É verdade que a expressão das personagens, quer aquela procurada através das regras da fisiognomonia gráfica quer aquelas que pertencem desde logo à linha deixada sobre o papel (a “lei de Töpffer”, cf. Gombrich), a ausência de texto não nos permite ter a certeza. Além do mais, a gestão dos acontecimentos aponta para a possibilidade de uma espécie de hipnotismo ou delírio onírico, o que suspende a vontade, o arbítrio, as decisões plenamente conscientes da personagem.
Não deixa de ser de uma extrema significância que o autor faça um livro de banda desenhada intitulado “Celulóide” e empregue a fotografia para transmitir esse outro meio. Acabamos por ter aqui um exercício multidisciplinar que usa o corpo, objecto visual de contemplação e de manipulação erótica, e mais especificamente a pessoa e o prazer de uma mulher, para repensar todas estas questões. Ou seja, McKean cria não apenas uma “máquina de desejo”, como querem Deleuze e Guattari, que se reformula sem cessar, que procura várias intensidades e personalidades nele mesmo (expressos pelos vários “estilos” e pelos vários “parceiros”, mas também pelos “corpos sem órgãos” e os “órgãos sem corpo” que se vão formando na sua passagem), mas ainda uma “máquina pensante”, fazendo com que Celluloid possa dirigir-se igualmente ao mais importante órgão sexual do ser humano: o cérebro.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muita parra e pouca uva!

Pedro Moura disse...

Ao contrário do caro Anónimo, cuja argumentação é concisa, directa e claríssima!
Obrigado,
Pedro Moura