8 de fevereiro de 2012

Scary Godmother. Jill Thompson (Dark Horse)

A artista Jill Thompson mostra ser uma executante da sua arte com uma grande versatilidade, havendo empregue o seu trabalho em variadíssimos géneros, obras com vários intuitos e públicos, humores e contornos estéticos. Esta é a sua obra-prima enquanto autora singular, dedicada a um público muito jovem.
Se bem que os seus instrumentos gráficos variem num núcleo mais ou menos concentrado, de um linha solta, dinâmica, suave e romântica, ora próxima da shojo mangá ora de uma certa ilustração de moda, o facto de estarem ora aliadas a histórias mais contemporâneas, adultas e com grande desenvolvimento de personagens, como o Sandman de Gaiman ou The Invisibles de Morrison, ora a géneros mais ou menos vogando águas familiares, e votadas a um público mais juvenil, como Beasts of Burden e Scary Godmother, vão encontrar-lhe inflexões particulares. É muitas vezes a união justíssima entre linha de desenho e cor - que, recordemo-nos, na indústria da banda desenhada americana é, as mais das vezes, hierarquizada, taylorizada, e não procuradas ambas enquanto instrumentos de expressão matérica nelas mesmas (como o será mais na banda desenhada europeia, se bem que isto tudo dependa sempre de que autores estamos a falar) - que a torna uma autora capaz de fundear as personagens que faz representar numa perfeição formal dificilmente ultrapassável, e que faz desenvolver, na perspectiva do leitor, uma possível hierarquia de gostos. No nosso caso pessoal, parece-nos ser Jill Thompson quem criou as mais acabadas figuras de Delirium e de Ragged Robin (das séries já citadas), precisamente por os seus instrumentos se coadunarem com a personalidade diegética das mesmas.
Este volume reúne a totalidade das histórias que Thompson desenvolveu nas últimas décadas com uma sua personagem, a “Madrinha-Bruxa” (fisicamente um possível avatar da própria autora, e que nos remete de novo para aquelas personagens femininas citadas, cujo “libertinismo” formal lançará aqui grandes afinidades), publicadas numa variedade de publicações. Scary Godmother já se inscreve numa particular tradição bastante populada nos Estados Unidos, que junta a tradição local do Halloween com uma sua variação cómica da literatura (ilustrada ou não), cinema, séries televisivas e banda desenhada. Mais o menos próximos do nosso tempo temos os exemplos do filme Monsters Inc., o livro Oyster Boy de Burton e a mais recente série televisiva (mas bem mais comercial e esteticamente fraca, ainda assim no interior do género”) Monster High a constituir parte desse corpo.
O objectivo não é, portanto, explorar os medos das crianças, mas antes explorar os clichés do que fazem esses medos para criar personagens adoráveis, divertidas e que possam acompanhar os jovens leitores em pequenas aventuras. Nesse sentido, Thompson vai mais longe no seu desenvolvimento do que os títulos atrás indicados - todos eles, de modos diferentes, obedecendo a regras internas dos géneros e constritos a uma brevidade narrativa -, aliando-se precisamente a uma longa linhagem da banda desenhada (ou picture books) que compreenderia a série The Little Monsters (da Gold Key), The Addams Family de Charles Addams, Melvin Monster de John Stanley, ou, mais tarde, a série de livros ilustrados Little Monster, de Mercer Meyer (publicados parcialmente em Portugal na década de 1980). É uma longa companhia.
Scary Godmother utiliza como ponto de focalização uma menina muito nova, que serve de âncora aos leitores principais, e é curioso que ela surja no seio de uma relação intricada com outras personagens mais velhas, pré-adolescentes que se encontram naquela fronteira da “não-crença”. Dessa forma, a autora procura manter a “magia” necessária ao Halloween, criando ao mesmo tempo uma forma de diferenciação (mas igualmente protecção, fortaleza, autonomia, etc.) em relação a esses outros personagens mais velhos. Depois seguem-se as variações de todas as categorias de “monstros” possíveis: o vampiro, o monstro debaixo da cama, os morcegos, o esqueleto no armário, o lobisomem, etc. E a introdução das pequenas aventuras que se tecem num espaço relativamente circunscrito e coeso de um bairro de classe média, politicamente correcto e que procura um equilíbrio étnico mais ou menos fictício… enfim, o conforto burguês expectável nesta classe de narrativas.
A autora opta também por fazer flutuar a sua escrita entre a poesia rimada e uma legendagem mais escorreita, encontrando-se toda a espécie de explorações e cruzamentos estilísticos da matéria verbal. No entanto, a opção por deixar espaços largos entre as vinhetas a branco cria sempre uma certa sensação de desequilíbrio nas páginas finais, imaginando-se que a continuidade das suas vinhetas cheias, texturadas e coloridas poderiam muito bem encaixar-se umas nas outras numa continuidade plástica e cromada mais feliz. Composicionalmente, também não existem quaisquer regras recorrentes, o que se explicará sobretudo pelos vários formatos e circunstâncias de edição do material original - alguns trabalhos apresentam duas grandes vinhetas por página, outras composições mais clássicas. E os graus de complexidade narrativa nunca fazem romper um respeito por um eixo simples, como é de esperar num trabalho dirigido a um público bastante jovem, demonstrando que a banda desenhada infantil não tem necessariamente de ser pautada por trabalhos de qualidade medíocre.
Existe uma versão animada desta série, mas estamos em crer que não se tratará da melhor das produções. Na verdade, parece-nos que todo o ambiente de Scary Godmother, pautando-se por aquela bitola apontada atrás da banda desenhada infantil dos anos 1960, seria melhor servida por uma abordagem “retro”, plana e frenética, próxima de, por exemplo, Foster Home for Imaginary Friends.

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