14 de janeiro de 2012

Les Meilleurs Ennemis 1. Jean-Pierre Filiu e David B. (Futuropolis)

O título completo desta obra é Les meilleurs ennemis. Une histoire des relations entre les Étas-Unis et le Moyen-Orient. Première partie 1783-1953. É uma colaboração entre Jean-Pierre Filiu, antigo político do gabinete de Jospin e autor de algumas obras de referência sobre o Islão, o seu mundo cultural e as suas relações com o Ocidente, transmutada na linguagem gráfica de David B., querendo dizer com isto que não se trata propriamente - ou com grande probabilidade - de termos um argumento escrito por Filiu seguido de um cumprimento de David B., mas talvez de uma discussão e eleição de quais os acontecimentos importantes a explorar, quais os instrumentos expressivos possíveis de colocar à disposição dos leitores, que tipo de argumentação possa emergir do nosso confronto com o que é contado, e que estratégias seguir em termos de inclusão, exclusão e focalização desses mesmos eventos. Essa atenção para com a História é indelével e imperiosa. Ao contrário do que se costuma afirmar, naquelas frases feitas que, mais do que de senso comum, são constituídas por erros comuns, contra factos há argumentos, pois a história não é uma esfera estanque que compreende factos incólumes e inalteráveis, mas antes um processo narrativo cujos mecanismos interpretativos contribuem sobremaneira para a sua própria constituição. Não existem factos inexpugnáveis por argumentos, mas factos cujos arcobotantes são precisamente argumentos, os quais, mudados, reconstituiriam os factos (como aprendemos em lições de E. H. Carr ou David C. Harvey).
O título completo deste livro é portanto nítido no seu programa, e o que os autores cumprem é esse papel da história: colocar à frente dos olhos dos leitores uma colecção de factos de uma determinada maneira, factos esses também retratados de uma certa maneira, para que os leitores atinjam um certo grau de conhecimento. Mais, trata-se, a nosso ver, de um acto de resistência, resistência de discurso, considerando que o retrato do Islão é muitas vezes deturpado em nome de uma agenda propagandística ocidental, muitas vezes que nem sequer é entendida como tal (disfarçando-se de “objectividade”, de “civilização”, etc.). A banda desenhada não é alheia a essa propaganda, seja ela feita de modo mais ou menos disfarçado e subtil ou sem consciência (mais do que inconscientemente) seja ela feita de modo aberto e por isso não só ridícula como perigosa (como o miserável e grotesco Holy Terror de Frank Miller).
Um aspecto nada dispiciendo, da esfera social, da parte de “quem fala”, é o facto deste livro sair na nova vida da Futuropolis (no grupo Gallimard), a qual, ao ser relançada na sua junção com a Soleil, causou alguma sensação de medo e estranheza, pelas políticas aparentemente mais comerciais e massificadas dessa outra editora. No entanto, tendo em conta que o patrão da Soleil, Mourad Boudjellal, é irmão de Farid Boudjellal, autor de uma magnífica trilogia, intitulada L’Oud, (publicada nos anos 1980 precisamente na Futuropolis dos editores originais, Robial e Cestac), obra que dava voz aos árabes-argelinos na primeira pessoa, a entrega não é frágil. De certa forma, ao contrário dos medos primeiros, a aliança entre a Gallimard e a Soleil, e a dos seus editores (Boudjellal e Patrice Margotin), levou a que se criasse uma linha de produção atenta à esfera do político, numa atenção particular a novos modos de produção ou de, a palavra é justa, engajamento da parte da banda desenhada com o mundo real, amplo e diverso em que vivemos (mas que nem sempre a banda desenhada, tal como os meios de comunicação social institucionalizados, parecem querer dar a ver). O modelo, de acordo com Margotin, era a colecção Aire Libre, da Dupuis. Apesar da sua diversidade interna, editando obras como as de Debeurme, podemos dizer de certa forma que esta Futuropolis dá continuidade exacta à anterior, ainda que se pautando por novos instrumentos - por exemplo, a total abdicação de enquadramentos ficcionais, o aumento do grau informativo, a inscrição dos autores enquanto actores autobiográficos nas narrativas desenvolvidas, etc. É assim que projectos como o Les Ignorants, de Davodeau e Richard Leroy, a biografia de Pierre Goldman por Emmanuel Moynot, ou as edições de Sacco e de uma obra colectiva intitulada Immigrants, cotejam este esforço de Filiu e David B.
Como se afirmou acima, Les meilleurs ennemis é uma “colecção de factos”, e essa palavra não é utilizada sem importância. É que este livro apresenta-se menos como uma narrativa habitual, com a costumeira fluidez diegética e a integração de todos os elementos visuais e estruturais na história do que como uma série de pontos (há uma excepção notável, que abordaremos mais à frente). Não sendo sequente, é consequente. Há aqui uma opção por apresentar cada vinheta como uma frase separada. São muitas as pranchas que apresentam três vinhetas horizontais, como se se tratassem de placas, de clichés no sentido fotográfico, de lâminas individuais. Há outros métodos de paginação, é certo (como esta dupla prancha acima cuja leitura pode ser dupla ou transversal, em termos da acção), mas todas as vinhetas apresentam-se como pequenas unidades quase autónomas. Seria difícil, por exemplo, aplicar o apertado descritor das transições de vinhetas de Scott McCloud sem exercer alguma violência em relação à semântica do livro (e que diz mais dos mecanismos analíticos de McCloud do que de uma suposta falha no livro). Pensamos que a ideia de colocar essas orações-vinhetas de modo contínuo mas individual terá a ver com uma estratégia de querer “deixar falar os factos por si”, mas, como vimos, estes, ao serem apresentados de uma determinada maneira, levam a uma imediata leitura (ou pelo menos a um afunilamento específico das possibilidades de interpretação e reacção). O aparente “apagamento” do discurso do narrador leva a que se tome uma atitude de abertura para com a complexa rede interpessoal, intercultural, que está aqui em jogo, sem que se tome partido quer por um quer pelo outro “lado” (pois o próprio título implica dois “lados”).
Há um outro factor que aumenta a individualidade das vinhetas. David B. é um autor que se presta muito à utilização de metáforas visuais. A definição deste conceito é algo flutuante entre os seus teóricos, mas nós inclinamo-nos por a compreender, na banda desenhada, como quando integrada no programa narrativo e representacional. Todavia, neste caso particular é como se o autor exacerbasse essa sua característica e a desligasse dessa continuidade e fluidez narrativa para a concentrar nessas prestações fragmentárias, em staccato, reificadas. A razão é óbvia. Uma vez que há o desejo de criar um discurso relativamente sucinto e célere de uma história com mais de duzentos anos, é mais eficaz fazer acompanhar as breves exposições textuais com imagens que possam concatenar em si mesmas várias valências semânticas do que optar por uma mais literal figuração dos intervenientes. Além do mais, essas imagens ganham dessa forma uma potência política mais contundente.
Na verdade, como corolário dessa leitura estará uma associação quase directa deste trabalho de David B. a uma tradição antiga do cartoon político, sobretudo aquela associada à caricatura política britânica do século XVIII - mais do que a francesa do XIX. Nomes como os de Gilray, Rowlandson, Bunbury, e outros, surgem nesse arrolar, e as estratégias visuais daqueles ressurgem nas do autor francês num contexto artístico diferente. Encontramos, naqueles e neste, por exemplo, a utilização de escalas diferenciadas entre as personagens, não como sinal de fantasia, mas de valorização actancial na cena. Encontramos fusões entre os corpos dos intervenientes, ou dos corpos e vários objectos (é recorrente os turbantes confundirem-se com globos, cruzados por navios, mote que surge na capa), de maneira a dar a ver uma concatenação de gestos, ou de impactos políticos, ou a transformação de um dado acontecimento num modelo que ecoaria pela história. Há assim tanto construções visuais que apelam para a metonímia como para a metáfora.
A associação a esses desenvolvimentos abriria uma outra via de discussão, que seria a aproximação das estratégias visuais deste autor com aquelas de muitas das caricaturas de personagens afectas ao mundo cultural do Médio Oriente nos tempos mais recentes e que têm levado a conflitos declarados e violentos (os casos paradigmáticos sendo as caricaturas do Jyllands-Posten e o affaire Charia Hebdo). Conflitos que, diga-se de passagem, são atribuíveis de parte a parte num diálogo de surdos culturais, e que parecem encontrar a sua defesa pobre e de vistas curtas em conceitos tais como o do “choque de civilizações” de Samuel P. Huntington, bastas vezes citado, e ora descontexualizado e não se apercebendo da violência que exerce ora compreendendo-a e aceitando-a como “natural”. Todavia, essa é uma maneira tendenciosa de ver as coisas. “O inferno são os outros”, é certo, mas quem os demonizou, quem os tornou em demónios, podem muito bem ter sido “nós mesmos”: a história do Irão recente é, por exemplo, um caso gritante de como companhias privadas, aliadas aos Estados-clientes, iam moldando e se imiscuindo na política interna de um país para defenderem interesses capitalistas (olhar para o Irão agora desligando-nos da sua história é um acto de má-fé e ignorância; o mesmo se diria de todo o Médio Oriente, de certos países na Ásia, da América do Sul de esquerda, da “África” negra, subjugada a uma só história singular - mas falsa - de pobreza, fome e guerras intestinas). Em parte, é para isso que Les meilleurs ennemis contribui, não se eximindo das responsabilidades que cabem aos franceses, mesmo não estando eles no centro das atenções (curiosamente, Portugal está afastado mesmo dos figurantes desta história, já que o nosso Império Colonial acidental não apenas lidou com outros Outros, como a questão muçulmana era tão-somente vista como resistência se não perigo em relação ao domínio português, mas eventualmente num grau reduzido, e não faz parte sequer dos nossos mitos, contemporâneos!, da suposta coexistência entre os povos que o integravam).
A maneira como os autores apelam para os textos da Epopeia de Gilgamesh para abrirem a sua narrativa aponta a um só tempo para a possibilidade de se poder falar em constantes culturais na história da humanidade, como na de sublinhar especificidades de uma área do mundo. Mas essa segunda opção pode tornar-se, ela mesma, um problema, se for tomada demasiado à letra. Quer dizer, mesmo tendo em conta que os autores tentam ser equilibrados nos seus retratos dos povos antagónicos, precisamente por os seus leitores (nós, para já) se inscreverem mais claramente no campo “ocidental”, pode levar a que o tratamento dos muçulmanos ou dos árabes pareça algo deficitário e sucinto demais. Afinal de contas, mas é possível que falemos do interior da nossa própria ignorância somente, quão imediata é a compreensão do feudo que existe entre xiitas e sunitas, a intricada novela palaciana tecida ao longo de séculos de paxás, sultões e emirados, pequenas dinastias breves e famílias reais enraizadas? Todos esses aspectos são abordados e explicados, mas a falta da familiaridade leva a que o tratamento idêntico dado às “partes”, mas num contexto mais familiarizado com uma delas, possa incorrer em novos desequilíbrios. Para sermos claros: a obra é equilibrada em si, mas a sua circulação é feita junto a públicos cujas condições podem ser desequilibradas. A leitura não é por isso desprovida de escolhos.
Seja como for, a forma judiciosa (e explícita) com que os autores fazem tecer as citações de Gilgamesh com os novos actores internacionais, leva a que se reconsiderem todas aquelas frases feitas em torno da história, desde a que a sapiência dos homens impedem os erros de se repetirem, ou que ela não volta a passar pelas mesmas águas, ou que há uma qualquer objectividade possível de lavrar… E a lição final desta relação de inimizade longa , de quase dois séculos, tem um denominador comum: o comércio. Sempre, o comércio, o capital, os interesses privados. E não foi preciso esperar pelo advento do uso industrializado, na passagem da 1ª Guerra Mundial, do petróleo e seus derivados, se bem que este tenha vindo a tornar acerbas as relações e os actos. Daqueles estandartes dourados da democracia, da liberdade, da autodeterminação dos povos e da concórdia universal, nem sombras. Entendido esse comércio de maneiras diferentes e antagónicas por cada parte, vemos como se encaixam variadíssimas questões: territoriais, de esferas de influência, de tratados económicos e de circulação de bens, de acumulação de capitais, de relações comerciais e de transformação infraestruturais, de relações particulares e tingidas por princípios xenófobos (do anti-semitismo ao anti-islamismo, à supremacia ocidental de todos os paladares ao desabrido - mas historicamente apoiado - fundamentalismo religioso).
Quando dissemos atrás que há uma inscrição da parte dos leitores (os portugueses?) no mundo ocidental, isso não quer dizer que se o faça acriticamente, atenção! Bem pelo contrário, e juntando-se aos autores do catálogo da Futuropolis citados, ou de outros quadrantes, estes são livros que contribuem para a aprendizagem e uma nova discursividade. Estamos muito longe do entretenimento com estes livros.
Mais, quando se falou de árabes e muçulmanos, não se pretendia dizer que estes termos são sinónimos nem que são permutáveis, e são mesmo perigosos como descritores “transparentes” (pense-se em, ou melhor, com, Bhabha, Spivak, Agamben), mas utilizamos estas palavras por facilidade (esperamos que não com facilitismo) para nos referirmos a esse complexo cultural abordado no livro…
Haverá, porventura, uma crítica mais visível às políticas dos Estados Unidos (potência que os autores entendem como herdeira, mas transformadora profunda, dos regimes coloniais anteriores), é certo, mas a razão para isso é que usualmente as suas justificações, e aquelas dos seus aliados (Portugal, graças a Durão Barroso, não se pode dirimir das suas responsabilidades), são contornadas por uma propaganda que se esconde a si mesma. O nosso discurso parece ser o mais correcto contra a violência dos outros, e talvez seja isso o que choca - esperemos que o faça - ao sabermos de que violência nós somos capazes. Isso pode surgir nas fotografias de Abu Ghraib contrastadas com uma estela suméria (no livro), mais uma vez destacando a universalidade da violência. Mas também poderia surgir, e surge, no júbilo das palavras de Condoleezza Rice face à morte de Kadhafi (não no livro), e que poderia ser contrastado por sua vez com aquele verso homérico, dito por Ulisses à ama Euricleia, depois dele mesmo ter morto os pretendentes de Penélope: “É coisa ímpia o regozijo sobranceiro sobre os cadáveres dos mortos”. Les meilleurs ennemis, à sua maneira, cria um gesto contra essa impiedade e essa sobranceira.
Acima indicámos que, face à estrutura fragmentária do livro, havia uma notável (quase) excepção. O único momento em que o discurso parece mudar de regime, para apresentar duas páginas (94-95) mais habituais, é o episódio em que os grupos de pressão americanos e britânicos se encontram com a princesa Ahsraf Pahlavi, irmã gémea do Shah do Irão, Mohammad Reza Pahlavi, em 1953, na Côte d’Azur. O propósito é convencê-la a pressionar o irmão, “un minable”, a apoiar o derrube (com o apoio de vários esbirros, incluindo o jovem mullah Khomeini) do governo de Mossadegh, que havia nacionalizado a indústria do petróleo . Para além da irmã sentir que o poder estaria melhor nas mãos dela, a persuasão dos ocidentais é conseguida através da oferta de uma mala, supostamente com uma soma avultada - que não nos é dada a ver - e um belíssimo casaco de peles. Não nos podemos deixar de interrogar o porquê da libertação desta cena em particular, aparentemente tão menos importante que outros acontecimentos ao longo desta história, do regime fragmentário (na verdade, a queda de Mossadegh é assim tratada parcialmente nas páginas seguintes, e teremos de ler o segundo volume para nos apercebemos do programa global). Tratar-se-á de uma espécie de intervalo para mostrar, de novo, o único papel à mulher nesta história: a de seduzida e sedutora? Mas há outra coisa que revelaria de uma leitura tão pessoal da nossa parte, tão abusadora e perigosa, mesmo insustentável, em relação à obra e aos autores que não nos atrevemos a dizê-la senão em enigma. Os acontecimentos retratados coincidem com aqueles aventados noutras obras, sem dúvida, inclusive de banda desenhada, uma das quais bastamente discutida. Haverá aqui uma ironia velada na representação, um reflexo enviesado? Para bom entendedor…
Nota final: agradecimentos ao Frederico Duarte, pelo empréstimo do livro.

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