8 de agosto de 2011

A.D.B. [Ano do Bumerangue]. Diego Gerlach (Prego)

Parece-nos haver uma tendência no Brasil de “novos quadrinhos” mais ou menos consistentes entre si, por algumas razões: a opção por estratégias narrativas fragmentárias ou lacunares; o uso de técnicas gráficas muito estilizadas mas descontraídas, através de uma abordagem caligráfica rápida, figurações flexíveis e composições menos convencionais; uma capacidade de mergulhar numa densa rede de referências e criar a partir delas textos novos, numa espécie de neo-antropofágico; um movimento de colheita, para essas referências, que tanto beberá da “alta cultura” como da “baixa”, sem recusar ligações directas ao mundo da banda desenhada, por vezes a mais popular - que agem mesmo como “desfibrilações” dessas outras criações, as mais das vezes.
Não queremos arriscar criar os contornos dessa cena, por um lado devido à nossa ignorância, por outro por podermos arriscar um cercado que não tem qualquer lógica senão a nossa circunstância de contacto com estes autores. Todavia, há alguns indícios de elos entre estes autores, por chamadas dos blogs de uns para outros, colaborações, e outras evidências mais ténues e sólidas. Mas Diego Gerlach, Marcelo d’Salete e Pedro Franz parecem pertencer a uma geração autoral relativamente próxima nestes termos. Recordando as experiências literárias de Michael Chabon, Jonathan Lethem e outros, mas indo mais longe em termos formais e de escopo, colocaria neste grupo Bruno Azevêdo, autor de duas novelas quase indescritíveis de contemporâneas que são: Breganejo Blues e O Monstro Souza, da qual esperamos também vir a dar conta neste blog ou outro espaço associado.
Ano do Bumerangue - ainda que no título da revista se leia apenas a sigla A.D.B., que poderia ser lida de uma forma alegórica mais misteriosa - é uma aventura do Fantasma que Caminha, a famosa personagem criada por Lee Falk. O autor brasileiro abre a sua publicação com um pequeno texto biográfico sobre o seu amor pelos gibis antigos dessa personagem, sobretudo citando Ray Moore e Wilson McCoy como proponentes de estilos relativamente perros, cáusticos e rústicos, que parecem ser a chave de resposta de Gerlach. Homenagem, pirataria, antropofagia, liberdade nada condicional de recriação?
A acção passa-se em Morristown, a capital de Bengali (Bangalla na versão brasileira), como sempre nas histórias do Fantasma [nota do autor: "embora o Fantasma tenha uma cronologia/mitologia confusa, em geral mudando ao gosto da diretora que eventualmente opciona o personagem, a capital de Bangalla, na cronologia americana, chama-se Mawitaan. Morristown seria o nome da capital no período pré-emancipação, quando o país ainda integrava a Commonwealth. Inclusive, a menção a um 'congresso na Suécia', feito por um dos personagens, é uma alusão ao fato de que, na Escandinávia, esse detalhe foi ignorado na cronologia do personagem (que tem suas histórias produzidas localmente), a título de não 'confundir os leitores'"]. Mas em vez de vermos a clássica representação de uma nação africana graciosamente protegida por um grande defensor democrático e, píncaro dos valores reconhecíveis, branco (leia-se “colonialismo” e até “neo-colonialismo” aos leitores ainda cegos a essa realidade), Gerlach utiliza uma fortíssima dose de realismo político actual, e não só, com vários partidos digladiando-se para ganharem as eleições, e revelando ao mesmo tempo as fracas costuras desses regimes, reforçando-o com temas de magia simpática africana, rituais indizíveis e até mesmo a intervenção do Fantasma como uma alucinada personagem, misto de vigilante, agente desinformado e branco perdido no mar de uma negritude que não compreende e provavelmente não compreenderá jamais. Fumos, drogas, prostituição, barbeiros baratos, insectos e bairros miseráveis, e suor profuso fazem também parte dos elementos que moldam a matéria da história. Não é uma narrativa totalmente clara nem conclusiva - misturam-se aspectos de descrição sócio-económica, integração na política internacional contemporânea, elementos de magia - , e testemunhamos um evento final terrível para o Fantasma, mas jamais saberemos o que significa: uma morte irredimível? Simplesmente um traumático acidente?
Diego Gerlach usa e abusa da personagem emprestada, chegando política e artisticamente mais longe do que se poderia num outro contexto mais convencional, como no uso permanente da personagem nos mesmos pressupostos. A que se referirá o bumerangue do título? O que regressa? Tal como queriam os antropofágicos, é o refluxo brilhante. O que regressa é a violência do colonizado, desta feita armado com as ferramentas da ironia e da criatividade reconstrutiva [nota do autor: "trata-se de um aceno a Sarte, no prefácio de 'Os Condenados da Terra', de Frantz Fanon: «É o momento do bumerangue, a terceira fase da violência: ela se volta contra nós, atinge-nos e, como das outras vezes, não compreendemos que fomos nós que a inauguramos.»"].
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do zine. Valeu! As notas inseridas no corpo do texto são provenientes de correspondência pessoal.

4 comentários:

Berliac disse...

D'Salete, Franz, Gerlach. ¿Quién será el 4to jinete del apocalipsis? Me atrevo a postularme como candidato, los kilómetros son mi poder oculto.

Thales Lira disse...

De certa forma inspirado pelos seus textos, escrevi sobre a mesma HQ aqui: http://enui.tumblr.com/post/9813065014/hq-02

Espero não passar por um mero propagandista, a intenção é de compartilhamento.

Pedro Moura disse...

Oi, Thales, obrigado. Gostei dos trabalhos no "Enui". Será só na web ou virá versão papel?
Abraços,
Pedro

Thales Lira disse...

A princípio só na web mas se virar papel não seria de todo um mal.
Ando envolvido em outras atividades, mas pretendo escrever mais.
Abraços